sexta-feira, 6 de maio de 2016


Dia das mães

 

     No ano retrasado ele veio, ano passado não. Este ano, só Deus sabe se vem. Pensam que fico esperando? Espero que nem aquela porta espera, aquela mesa espera, aquela planta ali. Não faz nenhuma diferença ele vir ou não vir, com as tolas recomendações de sempre, as mesmas e falsas preocupações.

     Teve um ano que trouxe o filho. E o filho veio com a namorada. Dois jovens abobalhados, olhando para as paredes descascadas com curiosidade mórbida, me encarando com nojo e repulsa. Não aceitaram a água nem o guaraná que ofereci, com certeza por acharem que os copos não são lavados. Meu filho ainda aceitou a cerveja, talvez por saber que o álcool desinfeta tudo.

     A mulher não vem nunca com ele. Nenhuma falta me faz. Fico dispensada dos salamaleques, de fingir naturalidade, falando de doenças ou de novelas. Tão bem criado, tão mal casado. A última vez que ela apareceu aqui, veio direto do salão de beleza. Manteve os dedos esticados, durante os minutos que durou a visita de médico, para não encostar a unha em nada. Meu filho mostrou o quarto onde vivia quando rapaz solteiro. Ela riu, cínica e sonsa. “Como é que alguém pode viver num buraco desses?”, devia estar pensando.

     Barulho no portão, só pode ser ele. Lá vêm flores murchas, presente ordinário, casaco de lã ou meias de nylon, garrafa de vinho de padaria, adocicado e enjoativo, pacotinho de torradas que eu não comia nem no tempo em que tinha dentes. Vai se sentar no sofá que está forrado desde cedo e estirar as pernas no banquinho que só sai do quarto quando ele vem aqui. Claro que não vai demorar, pois tem compromisso com o filho ou com a mulher. Pouco se me dá que venha ou não venha, fique ou não fique.

     Não era ele no portão. Apenas um vendedor de frutas. Pela hora, duvido que ainda apareça aqui. Melhor dobrar e guardar o lençol novo que coloquei no sofá, não quero que pegue poeira. Melhor devolver para o quarto o banquinho de estirar as pernas. Ano que vem pode precisar.
 

 

 

segunda-feira, 2 de maio de 2016


Os inimigos

 

 

     Bateu a porta do quarto com violência e se retirou, a malcriada, deixando um maço de cigarros e a calcinha lilás em cima da mesa de cabeceira.

     Telefonou dez minutos depois, do bar da esquina:

     – Vem aqui. Vamos tomar um chope e esfriar a cabeça.

     Embolei a calcinha com a mão e enfiei de qualquer jeito no bolso do paletó.

     Me esperava numa mesa de canto:

     – Magoado comigo?

     – Toma. Vai no banheiro e coloca isso.

     – Não fica bravo. Só você sabe que estou sem calcinha.

     – Vai no banheiro colocar isso, Elisa.

     – Não leva tão a sério. Foi só para te provocar.

     Acredito? Você acreditaria? Vida que segue.

     Elisa é do tipo explosivo, porém compreensiva. Repensa as brigas, reconsidera e até se desculpa vez ou outra. Não tenho esse espírito e empaco com qualquer bobagem. Mas sou como sou, que posso fazer? O que você faria no meu lugar?

     O analista que ela me convenceu a freqüentar vive a repetir que algo em mim arquiteta as crises conjugais. Que não vivo sem elas.

     – Nem sem ela! – insisto.

     A culpa é dos meus pais. Pobres meus pais.

     – Péssima criação – pontifica, com a superioridade dos bem pagos.

     Isso livra um pouco a minha cara. Depois, meus pais já morreram mesmo.

     Elisa é desembaraçada. Fala coisas originais e perturbadoras na cama, diz palavrão, morde o lençol e eu morro de inveja. Não consigo sequer abrir a boca. Um “ai” ou “ui” de vez em quando, espremido, reprimido, para o travesseiro.

     O analista continua deitando falação, enquanto me estiro no sofá que ele chama de divã e às vezes cochilo, entre uma interpretação e outra.

     Descubro que Elisa não se realiza sexualmente comigo há muito tempo. “Descubro”, na verdade, é força de expressão. Apenas desconfio. Quem me conhece sabe que jamais tive talento para descobertas. Inseguro, não sei o que dizer. E, como era de se esperar, também não sei o que fazer. Fica por isso mesmo.

     Você faria diferente?

     Me arrebento, mas não volto ao freudianista enganador. Dizer o que para ele? “Ela não sente nada comigo?” Eu?

     Um amigo me aconselha a arranjar uma amante, para ver direitinho como é, ter condições de comparar, ponderar melhor. Primeira mulher aos trinta, sem experiência nenhuma, só poderia mesmo dar no que deu: paixão desenfreada e dependência física, mental e moral.

     Como não sei me equilibrar sozinho, nunca soube, levo o assunto para casa.

     – Esse amigo seu deve ser veado – diz Elisa.

     E me aconselha a voltar à maldita análise.

     Nem morto. Você voltaria?

     Nem outra mulher nem analista. Elisa, batendo portas e saindo de casa sem calcinha.

     Há outro homem na vida da minha mulher. Parece título daquelas antigas fotonovelas, não parece? Mas é para valer, infelizmente.

     Espero a traidora na saída do trabalho e a acompanho, escondido entre os transeuntes, até o ponto do ônibus. Depois tomo um táxi e vou tocaiá-la perto de casa.

     Bebo dois cafezinhos e um conhaque no bar em frente. Compro cigarros e entro no elevador, ao mesmo tempo em que ela:

     – Onde você esteve até essa hora? – pergunto, com a cara amarrada.

     A frieza dos insensatos:

     – Não seja estúpido, querido.

     Dei para freqüentar bares depois do horário de trabalho, coisa a que não estava habituado. Bebo com amigos, conhecidos e desconhecidos. Arrumei alguns companheiros de bebedeira e uma gastrite. Conseguir fazer Elisa pensar que estive com mulheres, que é a minha intenção, não consigo. Oferece leite gelado e comprimidos contra a ressaca, a sonsa, me aconselhando a tomar cuidado para não fabricar uma úlcera.

     Úlcera. Como se não bastassem os inimigos. Esses vampiros traiçoeiros que os espelhos não refletem.

     Acordo tarde e sozinho. Ciúme e dor de cabeça. Um bilhete pendurado na porta do guarda-roupas me avisa que Elisa foi ao ginecologista. Costureira, cabeleireiro, depilador, compras, casa da mãe, ginástica, tudo mentira. Ginecologistas não passam de uma grande mentira.

     Escovo os dentes fazendo caretas para conter o vômito. Faço um esforço e cuspo na pia a poça escura de nicotina e resíduos de cachaça. “Por que será que todos te enganam, infeliz?”

     Nenhuma resposta. O espelho conspira.

     Encontro Elisa radiante. Transpira felicidade por todos os poros. Voltou do médico com a notícia de uma súbita gravidez. Me aperta contra o peito e coloca minha mão sobre o ventre:

     – Está aqui, ganhando corpo, o nosso filho.

     “Nosso?”

     A desconfiança cresce dentro de mim, como o filho no bucho de Elisa. Se ela tem mesmo um amante, como me diz o meu coração, esse inocente pode ser fruto da traição. Ou será que é mesmo fruto do veneno que sai do meu sangue, através do meu sexo, nas poucas noites em que fraquejo diante do fascínio e das artimanhas de minha mulher?

      Seja como for, se essa barriga não parar de crescer eu vou fazer uma besteira.

     Um pequenino berço dentro do quarto, ao lado da cama. Roupinhas de criança, presentes dos amigos e da família. É o filho que se aproxima e invade os meus pesadelos. Me espera no banheiro, sobre a mesa de trabalho, entre as complicadas companhias noturnas. Um filho que me acompanha, que se diz meu filho, mas que não sabe nada de mim nem dos labirintos escuros da minha alma.

     O pesadelo e o delírio me transportam para uma sala enorme, onde estou rodeado de inimigos. As máquinas fotográficas despejam fachos de luz em meus olhos:

     – Dei um tiro no ventre. Apenas um tiro. No ventre – é só o que consigo dizer.

     Os repórteres insaciáveis querem saber de tudo, com riqueza de detalhes. O delegado encarregado do terrível homicídio faz pose para os fotógrafos e repete que cometi um “duplo delito”. Que devo responder pelas mortes da mulher e do filho de oito meses de gestação.

     O canalha do analista aparece no noticiário da televisão, falando em defesa da vítima. Pobre e infeliz mulher que dedicou tanto amor e atenção ao assassino, monstro em potencial que mais cedo ou mais tarde faria o que fez.

     Médicos e a sociedade têm certeza de que sou um alucinado irremediável, por isso serei transferido para um manicômio judiciário de segurança máxima. Homens e mulheres escrevem para jornais e promotores de Justiça, implorando pela minha execução sumária, para que possa servir de exemplo. Eu, que nunca dei qualquer exemplo na vida.

     Tenho pouca coisa a fazer no cativeiro. Por isso, passo os dias e as noites a folhear revistas coloridas, recortando fotografias de crianças para decorar as paredes da cela.

     Acordo nos braços de Elisa, com o corpo em chamas e a camisa molhada de suor. A cabeça descansa suavemente em seu colo. E o cheiro bom da enorme barriga me faz dormir novamente.