quinta-feira, 16 de junho de 2016


Garras
 

     A senhoria tinha garras afiadas, sempre pintadas de um vermelho sangue, da mesma cor dos lábios que ela vivia mordendo e exibindo, fazendo beicinhos.

     O que matava era o cheiro de vodca barata.

     – Quero que você seja muito feliz aqui.

     É possível ser feliz dentro de um quarto minúsculo no Catumbi? Engoli em seco:

     – Não tenho do que me queixar.

     Estava quase na hora em que o amante da senhoria costumava chegar. Era enorme. Dava dois de mim.

     – Você tem uns olhos lindos – ela gemeu.

     Ele empurrava a porta sempre a essa hora, com cara de poucos amigos. Às vezes dizia uns palavrões. Às vezes cobria a infeliz de pancada.

     – Gosto muito desse seu sorrisinho safado – ela insistiu.

     O amante era cabo ou soldado da polícia, encostado por

invalidez: perturbações mentais.

     Tem hora que parece que Deus abandonou a gente.

– Não precisa ficar nervoso, seu bobo – a mão melosa em minha perna trêmula.

     – Seu marido deve estar chegando a qualquer momento.

     – Não é meu marido. E hoje ele chega mais tarde.

     As garras no meu queixo, tentando me beijar à força. O cheiro e o gosto de vodca me deixavam tonto. A língua no meu pescoço, o joelho esfregando no meu colo.

     – Essa coisa não fica dura?

     Fechou as janelinhas do cubículo e arrancou as roupas às pressas. Muito feia, coitada.

     Me fechei, as mãos protegendo as partes ameaçadas. Fez pose de zangadinha:

     – Não me quer?

     – Não é bem isso.

     A chave na porta, graças a Deus. O amante chegando do bar, se arrastando pesado. A infiel correndo para o seu quarto, catando roupas íntimas pelo chão. Tranquei a porta por dentro e respirei fundo. Só consegui ouvir o grito, cadela, e o som do que deve ter sido um soco. Ou um chute no armário.

     Tomara que não tenha matado a pobrezinha.
 

 

 

 

terça-feira, 14 de junho de 2016


No dia em que vim embora


 
     A vida de um homem se borda no amor ou no desamor. No afeto ou na indiferença. Pode ser a soma de todas as sobras, de tudo aquilo que não teve, da indelicadeza de uma mãe, o bigode de um pai, a ausência de um cachorro. Também se desenha e se borda em um diálogo assim:

— Você se apresse, que não tenho todo o tempo do mundo para ficar à sua disposição.

— Quase pronto, pai. Mas posso saber para onde vamos?

— Já disse. Para o tal do seminário.

— E por que o senhor resolveu que tenho que ir para um seminário?

— Não resolvi nada. É coisa de sua mãe. Ideia lá dela.

Meu pai falava tudo assim, de um jeito próprio, parecia escarrar e cuspir as frases, sem muito cuidado com as palavras.

      Entendi, mas fiz que não. Com o pé, fiz um carinho no cachorro, que parecia estar tão triste quanto eu. Meu pai percebeu.

— E desmonta essa cara de tristeza. Parece um bezerro a caminho da castração. Não é o fim do mundo, menino.

— Porque não é o senhor que está deixando sua casa para ir não sei para onde.

— Você não vai para não sei onde. Vai para um seminário, estudar para se tornar um homem sabido e temente a Deus.

— Grande coisa!

— Você está sendo mal-agradecido.

— Eu não queria, pai.

— Sua mãe decidiu.

— Eu sei.

— Tá decidido.

— Eu sei.

— É assim que a banda toca. São assim as coisas neste mundo.

— Vou poder levar o meu cachorro?

— Não. Eles não aceitam bicho lá.

    O sol sempre intenso naquele pedaço de mundo parecia mais intenso ainda no dia da minha partida.

     Subimos na carroceria do caminhão que nos levaria até a rodoviária da cidade mais próxima, onde tomaríamos o ônibus. Minha mãe me entregou a sacola de couro com o que chamou de “minhas coisas”: um sapato surrado, alpercatas, camisas mal engomadas, duas ou três calças curtas. O cachorro não veio. Minha mãe me deu um beijo na testa e disse secamente “se cuide”. Meu pai não disse nada. Nem eu.

     Era muito cedo ainda e fazia frio. Quando nos acomodamos nos bancos de madeira da carroceria, meu pai esfregou a mão em minha perna, para me esquentar. Mordia o lábio inferior e apertava com os dentes os fios mais compridos do bigode.

— Vai ser bom para você — ele disse.

— Fingi que não ouvi e tentei me distrair contando as árvores que passavam correndo na estrada, na direção contrária à do caminhão.

— Você vai aprender a ler, conhecer todas as histórias bonitas que existem nos livros, e vai ter comida nas horas certas.

Voltei minha atenção para a conversa dos outros homens sentados nos bancos, os companheiros de viagem. Eles fumavam, sorriam mostrando os dentes estragados e falavam sem parar de gado, de porco, de cabras, cercas e falta de água nas cacimbas.

— Vai ter roupas sempre limpas, filho. E no fim do ano vem passar as

férias em casa.

—Não venho — reagi.

— Não vem?

    Meu pai apertava mais os lábios, coçava a barba e tinha um olho que parecia tremer sem parar. Devia estar triste, nervoso, com saudades de minha mãe.

     Continuei impiedoso:

— Não venho.

— Eu busco você.

— Mas não me traz de volta. Não piso nunca mais os pés em sua casa.

No ônibus que nos levava para o seminário, ele tratou de voltar ao assunto. Eu repeti toda a malcriação.

     A paisagem era mais verde do que na estrada anterior. Uns pingos de chuva dançavam no vidro da janela. Eu via o céu, as árvores passando, e o perfil do meu pai refletindo no vidro da janela do ônibus. Ele estava triste, mas tentou novamente ser gentil:

— Pensando na morte da bezerra?

— Em meu cachorro.

— Sua mãe vai cuidar bem dele.

— Minha mãe não cuida bem de ninguém nem de nada neste mundo.

— Eu cuido dele.

— O senhor não tem tempo.

— Vou cuidar muito bem do seu cachorrinho, você vai ver. Como é o nome dele?

— Não tem. É cachorro mesmo.

— Vou cuidar muito bem de Cachorro — repetia meu pai, enquanto me entregava com a sacola de couro à recepcionista. Que me levou até o quarto onde já estavam uns quinze meninos, que me mostrou o banheiro coletivo e a toalha de banho, que tentava sorrir para mim e que me trouxe de volta até a recepção do seminário quando eu disse, aos prantos, que estava arrependido por não ter aceitado o abraço nem o beijo de despedida que o meu pai deixou parado no ar.

     Daí em diante, foi contar os dias até a chegada das primeiras férias, para ficar parado horas no portão, esperando a chegada do meu pai, os olhos parados na direção da estrada e as calças cada vez mais curtas.

     Mas quem veio foi minha mãe e disse que eu iria com ela para o período de férias em casa, que podia desmanchar a pose de enfezado e parar de esperar pelo meu pai porque ele não viria. Meu pai morreu pouco tempo depois de me deixar no seminário. Não avisaram para evitar sofrimentos desnecessários.

     Cumpri orgulhosamente minha promessa de não voltar nunca mais. Hoje, que já abandonei o seminário e me perdi no mundo, lembro de pouquíssimas coisas daqueles dias: os dentes estragados dos homens na carroceria do caminhão, o olho comprido e acho que molhado do meu pai pesando em minha nuca, enquanto eu acompanhava a recepcionista pelo corredor, e a saudade imensa que eu sentia do meu cachorro.