quarta-feira, 19 de abril de 2017


Danadinha

      Quando minha mãe diz “Boa noite, filhinha, durma com Deus”, o sangue muda de temperatura em minhas veias. Toda noite é assim. Quando ela apaga a luz, joga o beijinho com “Eu te amo” e fecha a porta do quarto, a adrenalina dispara a partir do dedão do pé, fazendo acrobacias nas zonas erógenas e se espalhando pelo corpo.

     Toda noite é assim.

     Espero alguns minutos, até minha mãe entrar e sair do banheiro, pegar a jarra de água na cozinha e fechar a porta dos seus aposentos. Sei que daí a pouco estará dormindo, que o meu pai já dorme há mais de uma hora, que nesse instante a casa passa a ser só minha, do meu computador e dos meus amantes virtuais.

     Pulo da cama para a mesinha onde fica o laptop, estrategicamente instalado de forma a que a câmera tenha um bom alcance do cenário, e começo a teclar.

     Danadinha entra na sala.

     Demorô, Danadinha.

     É o Fabão, um que parece ficar vinte e quatro horas aceso.

     Danadinha: Acordado essa hora, menino?!

     Fabão: Esperando você. Liga a câmera.

     O maluco está se masturbando, como sempre.

     Fabão faz umas caretas, se contorce todo e dá um tempo. Deve ter ido tomar banho. Além de ver, gosto de imaginar o que os amigos fazem fora do alcance da câmera.

     Entra um novato, cheio de intimidades.

     Macho Viril: Oi, gostosa. Tira essa camiseta.

     Eu tiro.

     Macho Viril: Tira a calcinha.

     Eu tiro.

     Danadinha: Sou muito obediente.

     Ele já está nu.

     Viúva entra e sai da sala.

     Madruga está só espiando.

     Entram Foderoso, Maguila, Cruel, Macho2015 e até uma tal de Afrodite, perguntando se eu gosto de meninas. Não gosto, mas respondo que só curto as feias.

     Afrodite: kakakakakaka!!!

     Macho Viril sai

     Aí ele entra, na hora de sempre.

     Deixo sem respostas as perguntas de Gostoso Solitário, Casalsacana, Caio de Boca, Louro Pelado, Gato Sarado, Piruzão e Putaça.

     Toda madrugada é assim.

     Zebu: Oi, princesa!

     Danadinha: Oi, meu touro bravo!

     Zebu: Todos dormem aí?

     Danadinha: Todos! Menos uma!

     Zebu: Quem?!

     Danadinha: A sua peludinha...

     Zebu: Eu sabia!

     Danadinha: Acordada, quente e molhada. Carne em brasa!

     Zebu: Só acredito vendo!

     Danadinha: Estou indo aí!

    Saio da sala de bate papo, mas não desligo a máquina. Ponho uma camisola por cima do corpo nu e pego a bolsa de lona preta no fundo do armário, escondida sob as roupas. Abro a porta do quarto, prendendo a respiração, descalça para não fazer barulho. Aravesso o corredor, a sala, a cozinha, e saio pela porta dos fundos. Desço os lances de escada que separam o meu apartamento do quarto do zelador do prédio, na garagem.

     Empurro a porta, que está apenas encostada. Cícero sorri, esparramado na cama de solteiro, peladão. Abro a bolsa, retiro um por um os objetos que vou colocando em cima da cama: algemas, chicote, um estilete de ponta fininha e a coleira que ele gosta tanto quando eu uso.

     Repetimos as brincadeiras que me deixam machucada, porém feliz. Quando ponho a coleira, ele aperta até eu quase desmaiar. Vai me conduzindo de quatro, a chicotadas, de um lado para o outro do quartinho. Põe para tocar o funk horroroso, que fica repetindo “Vem cachorro, vem cachorro, diz que vai me enlouquecer... “ Só depois consegue se satisfazer, aos gritos de “Cadela vadia”.

    “Vai acordar o prédio inteiro, maluco!”

     Lembro-me de minha amiga Tati, que é toda certinha. Quando conto essas histórias que minha avó diria “do arco da velha”, ela diz que não consegue imaginar alguém que fala três idiomas e estudou filosofia praticando “uma baixaria dessas”.

    “Para você ver”, eu digo.

    “Tudo tem limite. Coleira no pescoço é demais!”

     “Relaxa, Tati. A modelo e atriz, famosíssima, usou coleira no desfile da escola de samba e ninguém achou estranho.”

     “Ali era de brincadeira. Uma declaração de amor ao marido.”

     “No meu caso também é uma declaração de amor, ao Zebu.”

     “Maluca!”

     Vou dizer mais o quê? Cada um sabe de si.

     Quando Cícero afrouxa o meu pescoço, eu consigo respirar, mas ainda com dificuldade. Ele diz que qualquer dia aperta até eu não poder respirar.

     “E depois?”, eu pergunto.

     “Jogo seu corpo na lixeira do prédio!”

     “E depois?”

     “Depois o caminhão do lixo completa o serviço.”

     “Ui! Malvado.”

     Volto para casa, novamente na ponta dos pés. Arrumo os objetos na bolsa e a bolsa no fundo do armário. Preciso de um banho, urgente.

     Lembro-me das palavras de Cícero Zebu, no meu ouvido:

     “Qualquer dia eu aperto até você não poder respirar.”

     Só então me dou conta de que não tirei a coleira.

     Cruzo com minha mãe no corredor, ela saindo do banheiro.

     “Acordada, filhinha?”

     “Estou, mamãe.”

     “O que é isso no seu pescoço?”

     “Uma coleira antidistônica. Ajuda a dormir.”

     Minha mãe balança a cabeça. E segue lentamente para o quarto.

 


sábado, 15 de abril de 2017


Um dia difícil

 
      A menina estendeu a mão para o ônibus em Brás de Pina e entrou pela porta traseira. Gratificou a cobradora e o motorista com uma goiabada para cada um, desfalcando o estoque. Saltou na Central do Brasil e embarcou no Metrô, direção Botafogo, mergulhando por baixo da roleta e fazendo um agrado para o moço da segurança.

     Desceu na estação que fica ao lado do cinema e reabriu a caixa de goiabada no sinal. Vendia a vinte centavos, cada; três por cinqüenta, sete por um real. A primeira freguesa comprou três unidades, disse “meus filhos adoram” e perguntou “que idade você tem, menina bonita?”. Ela respondeu “tenho doze”, mas a mulher nem ouviu porque já seguia em frente. Ainda bem, porque ela estava mentindo: tinha apenas dez. Logo depois um homem comprou também o seu produto e repetiu a pergunta da mulher, “que idade você tem?”, só que olhando fixamente para os pequeninos seios dela e comentando “você é bem gostosinha, sabia?”.

     A menina colocou a caixa de goiabadas em baixo do braço e se afastou. Aprendera que nessa hora é sempre melhor se afastar. A partir daí as coisas começaram a dar errado, porque o guarda que cuidava do ponto exigiu cinco goiabadas para deixar ela vender no sinal, uma mulher mal encarada disse que o preço cobrado “era um roubo” e o moleque que vendia amendoim no mesmo ponto começou a implicar com ela, procurando intimidade e dando petelecos em sua cabeça.

     Quando a tardinha começou a avermelhar a enseada de Botafogo a menina entendeu que estava na hora de voltar para casa, pegando novamente o Metrô e o ônibus na Central, tomando o devido cuidado de guardar um restinho de estoque para gratificar segurança, trocador e motorista. Chegou em casa antes do pai, que era biscateiro, e da mãe, empregada doméstica. Pegou no colo a boneca de pano, já um tanto esgarçada e encardida, deitou com ela entre os braços no colchonete e disse:

       Lilica, minha filhinha, hoje foi um dia difícil. Nem queira saber.
 
 

 

sábado, 8 de abril de 2017


Mania de outono

 

Surge a alvorada, folhas a voar

 E o inverno do meu tempo começa a brotar, a minar.

Cartola

 

     Outono era a moringa na mesa forrada de papel crepom. A caneca de alumínio deixava a água fresquinha, gosto de terra no fundo mais fundo, cheiro de chuva no gargalo. Vento encanado que podia constipar, menino remelento de nariz a escorrer pelos lábios. Peito apertado na cor doce e melancólica de um quase maio.

     A mania de outono eu tenho desde muito cedo. Desde bem pequeno mesmo, lá na província, onde as pessoas nem davam muita bola para essa história de estação do ano. Tinha o verão, com aquele calor medonho dos tempos sem ar-condicionado nem ventilador, e o inverno, que trazia frio de doer nos dedos e obrigar a dormir de pijama. Outono e primavera também existiam, mas a esses ninguém dava muita confiança.

     Comecei a prestar atenção no outono no dia em que a professora Alda exibiu o livrão cheio de fotos coloridas, mostrando como a natureza reagia às boas ou más influências climáticas, como se comportava diante de cada uma delas, se derretendo toda quando o outono anunciava a chegada triunfal. O papel do livro ficava mais cheiroso nas páginas que mostravam árvores se descabelando, montanhas abrindo os braços para os dentes do sol que banhavam tudo de um amarelo meio laranja avermelhado, sol que parecia vir de outro mundo e que jamais passara nem mesmo de passagem pela minha cidade.

     Peguei mania e comecei a colecionar folhas caídas na praça, sobre calçadas e muros da alameda que acompanhava o caminho da escola. E passei a observar, encantado, que aquelas folhas meio marrom amareladas disputavam em beleza com os frutos da última primavera, foram verdes sobre verdes no verão que acabou de acabar e estarão renascendo daqui a pouco, no inverno que o vento mais fino já anuncia. Fazia as contas e cálculos das transformações pelas quais deveria passar a minha vida até a explosão do próximo outono.

     Por que o declínio e a decadência? De onde tiraram as explicações encontradas no verbete do primeiro dicionário que me caiu às mãos? Até aquele dia, outono para mim era beleza e renascimento. Coloquei as impressões no poeminha outonal que fez os colegas rirem bastante e a professora condescender um “ele é sensível”. Também li para minha mãe, à noite, enquanto ela lavava pratos. Depois do ponto final, disse “vá dormir, você está cansado”, e até hoje não sei se o comentário significou uma aprovação. Mas a reação generalizada me mostrou que a compreensão do outono é para poucos.

     Quantas vezes, ainda no meu pequeno mundo, me deitei à tardinha sobre a esteira de folhas das palmeiras, da cajazeira, dos umbuzeiros? Cabeça recostada no travesseiro improvisado de outono e os olhos na impenetrável luz dos fotógrafos e dos pintores, até o sol se cansar de mim e fugir para detrás das montanhas. Logo, logo vem o inverno e eu me fecho em copas, que nem as árvores, escondo os meus frutos.

     Catei folhas na volta da escola, na ida para o trabalho, na vinda dos filhos, na despedida dos pais, sem precisar dar explicações para ninguém. Hoje não mais. Recolho apenas as que as máquinas de limpeza não enxergam, escondidas na grama da beira da piscina. Quando eles descuidam, apanho algumas no tonel de lixo. Só que pouco descuidam e os olhos de verão são fogo em brasa nos meus calcanhares.

     Declínio e decadência. O segurança chuta para longe a belíssima folha da mangueira que veio caindo, caindo e se aproximando de mim. A bota do animal quase esmaga os meus dedos, enquanto se aproxima o enfermeiro vestido de inverno, sem uma gota de luz no semblante, bordando um sorriso de falsa primavera, o mundo girando, girando e me devolvendo o outono que ele traz na pontinha da agulha.