Danadinha
Toda noite é assim.
Espero alguns minutos, até minha mãe entrar e sair do banheiro, pegar a
jarra de água na cozinha e fechar a porta dos seus aposentos. Sei que daí a
pouco estará dormindo, que o meu pai já dorme há mais de uma hora, que nesse
instante a casa passa a ser só minha, do meu computador e dos meus amantes
virtuais.
Pulo da cama para a mesinha onde fica o laptop, estrategicamente
instalado de forma a que a câmera tenha um bom alcance do cenário, e começo a
teclar.
Danadinha entra na sala.
Demorô, Danadinha.
É o Fabão, um que parece ficar vinte e quatro horas aceso.
Danadinha: Acordado essa hora, menino?!
Fabão: Esperando você. Liga a câmera.
O maluco está se masturbando, como sempre.
Fabão faz umas caretas, se contorce todo e dá um tempo. Deve ter ido
tomar banho. Além de ver, gosto de imaginar o que os amigos fazem fora do
alcance da câmera.
Entra um novato, cheio de intimidades.
Macho Viril: Oi, gostosa. Tira
essa camiseta.
Eu tiro.
Macho Viril: Tira a calcinha.
Eu tiro.
Danadinha: Sou muito obediente.
Ele já está nu.
Viúva entra e sai da sala.
Madruga está só espiando.
Entram Foderoso, Maguila, Cruel, Macho2015 e até uma tal de Afrodite,
perguntando se eu gosto de meninas. Não gosto, mas respondo que só curto as
feias.
Afrodite: kakakakakaka!!!
Macho Viril sai
Aí ele entra, na hora de sempre.
Deixo sem respostas as perguntas de Gostoso Solitário, Casalsacana, Caio
de Boca, Louro Pelado, Gato Sarado, Piruzão e Putaça.
Toda madrugada é assim.
Zebu: Oi, princesa!
Danadinha: Oi, meu touro bravo!
Zebu: Todos dormem aí?
Danadinha: Todos! Menos uma!
Zebu: Quem?!
Danadinha: A sua peludinha...
Zebu: Eu sabia!
Danadinha: Acordada, quente e molhada.
Carne em brasa!
Zebu: Só acredito vendo!
Danadinha: Estou indo aí!
Saio da sala de bate papo, mas não desligo a máquina. Ponho uma camisola
por cima do corpo nu e pego a bolsa de lona preta no fundo do armário,
escondida sob as roupas. Abro a porta do quarto, prendendo a respiração,
descalça para não fazer barulho. Aravesso o corredor, a sala, a cozinha, e saio
pela porta dos fundos. Desço os lances de escada que separam o meu apartamento
do quarto do zelador do prédio, na garagem.
Empurro a porta, que está apenas encostada. Cícero sorri, esparramado na
cama de solteiro, peladão. Abro a bolsa, retiro um por um os objetos que vou
colocando em cima da cama: algemas, chicote, um estilete de ponta fininha e a
coleira que ele gosta tanto quando eu uso.
Repetimos as brincadeiras que me deixam machucada, porém feliz. Quando
ponho a coleira, ele aperta até eu quase desmaiar. Vai me conduzindo de quatro,
a chicotadas, de um lado para o outro do quartinho. Põe para tocar o funk
horroroso, que fica repetindo “Vem cachorro, vem cachorro, diz que vai me
enlouquecer... “ Só depois consegue se satisfazer, aos gritos de “Cadela
vadia”.
“Vai acordar o prédio inteiro, maluco!”
Lembro-me de minha amiga Tati, que é toda certinha. Quando conto essas
histórias que minha avó diria “do arco da velha”, ela diz que não consegue
imaginar alguém que fala três idiomas e estudou filosofia praticando “uma
baixaria dessas”.
“Para você ver”, eu digo.
“Tudo tem limite. Coleira no pescoço é demais!”
“Relaxa, Tati. A modelo e atriz, famosíssima, usou coleira no desfile da
escola de samba e ninguém achou estranho.”
“Ali era de brincadeira. Uma declaração de amor ao marido.”
“No meu caso também é uma declaração de amor, ao Zebu.”
“Maluca!”
Vou dizer mais o quê? Cada um sabe de si.
Quando Cícero afrouxa o meu pescoço, eu consigo respirar, mas ainda com
dificuldade. Ele diz que qualquer dia aperta até eu não poder respirar.
“E depois?”, eu pergunto.
“Jogo seu corpo na lixeira do prédio!”
“E depois?”
“Depois o caminhão do lixo completa o serviço.”
“Ui! Malvado.”
Volto para casa, novamente na ponta dos pés. Arrumo os objetos na bolsa
e a bolsa no fundo do armário. Preciso de um banho, urgente.
Lembro-me das palavras de Cícero Zebu, no meu ouvido:
“Qualquer dia eu aperto até você não poder respirar.”
Só então me dou conta de que não tirei a coleira.
Cruzo com minha mãe no corredor, ela saindo do banheiro.
“Acordada, filhinha?”
“Estou, mamãe.”
“O que é isso no seu pescoço?”
“Uma coleira antidistônica. Ajuda a dormir.”
Minha mãe balança a cabeça. E segue lentamente para o quarto.