Para não perder a viagem
Das nuvens densas e nebulosas do sono ele viu saltar o rosto vincado,
afogado em rugas e no ódio. Levantou o braço na direção da parede, procurando o
botão que alerta o enfermeiro, mas o gesto foi interrompido pela mão áspera e
cabeluda, que o segurou pelo punho:
– Não chame ninguém. Precisamos conversar a sós.
A amizade com o homem que agora, diante do seu leito no hospital, o encarava
com travo de bebida amarga, começara na infância, nos primeiros anos do
ginasial, e prosseguira na juventude.
O visitante inesperado estava irreconhecível, com a barba por fazer e os
dentes maltratados. O enfermo amparou com os dedos a boca retorcida,
comprimindo os lábios e disfarçando a baba:
– Bom revê-lo, Ranulfo.
– Mentira, Genésio. Eu sou a última pessoa que você esperava ou gostaria
de rever.
Os olhos de Genésio, nublados pela tristeza e o medo, procuraram a
lembrança longínqua de uma rodovia que ligava a pequena cidade à capital do
estado, os dois jovens amigos, cheios de esperanças no futuro, contavam os
carros que passavam na direção contrária.
Os olhos de Ranulfo, incendiados pela raiva, o faziam rever os cabelos
soltos ao vento de uma louca paixão.
– Helena morreu. Uma coisa ruim no fígado – disse Genésio.
– Deus a tenha.
– Então, sem mágoas, não é?
Ranulfo não respondeu.
Arrastou o banquinho que ficava num conto para perto do leito e se
sentou, depois de empurrar com a mão todos os frascos e caixas que estavam em
cima.
– Meus remédios, Ranulfo. São os meus remédios... – o outro gemeu.
– Você não vai mais precisar deles.
Dividiram o primeiro quarto na pequena
pensão, os primeiros pratos feitos no balcão de bar das vizinhanças, as tardes
de domingo no estádio, torcendo pelo mesmo time. Ranulfo foi o primeiro a
arrumar emprego no supermercado, no depósito, depois deu um jeito de levar o
amigo.
Dividiam a cerveja, o tira-gosto e a conta no final do expediente,
quando gostavam de cantar em dupla “Entrei na Rua Augusta a cento e vinte por
hora...” Também dividiam as saudades das famílias. Cada semana era um que
escrevia, sempre dando notícias também do outro. Juntos compraram a primeira
pistola, que deveria protegê-los dos vagabundos de cidade grande, na volta para
a pensão, no meio da noite.
Helena já trabalhava no supermercado, no caixa. Gostava de homens mais
altos, por isto preferira Ranulfo. Genésio, mais baixo, caprichava nos saltos
do mocassim cultivava costeletas fartas, que ela também admirava, e óculos
escuros.
– Seu amigo parece um artista de cinema, quando põe o raiban.
Ranulfo sentia ciúmes. Mas ficava quieto.
Genésio carregava um pente Flamengo no bolso da camisa Lacoste, para
manter sempre em ordem as costeletas e os vastos cabelos pretos.
No casamento, o quase irmão foi padrinho. Ficou na casa dos dois,
ajeitando móveis, enquanto eles viajavam em lua-de-mel. Uma promoção no emprego
encheu Ranulfo de responsabilidades, fazendo com que passasse a chegar em casa
a cada dia mais tarde, trabalhando às vezes até sábado e domingo.
O outro tinha mais tempo, menos compromisso. Acompanhava Helena às
compras ou ao salão de beleza. Sensível, a ajudava até a escolher toalhas de
mesa.
A respiração carregada na nicotina ficava mais rouca e mais próxima. O
enfermo amassava a ponta da fronha do travesseiro. O visitante meteu as unhas
sujas no canudo que transporta o soro.
Genésio molhava os lençóis:
– Éramos tão jovens, inconseqüentes... Poxa, amigo, me perdoa.
Ranulfo diz que tentou esquecer, para sempre, de Genésio e da adúltera.
E por muitos anos conseguiu. Até o dia em que o fantasma voltou, dançando entre
as nuvens densas e nebulosas do sono, o acordando para sempre.
Voltou para matá-la, mas chegou tarde.
Genésio viu quando ele arrancou da parede o botão que convoca o
enfermeiro. Quando levantou e apagou a luz do quarto, a fresta mínima da janela
revelando o brilho do ferro na mão. Conhecia aquela pistola e o seu poder de
fogo, Ranulfo não ia perder a viagem.