sábado, 23 de setembro de 2017


Irmandade

 

     Lá em casa era assim: a gente apanhava no atacado e no varejo. No atacado, quem agia era o pai. Juntava todo mundo num canto da casa, um colado no outro para não dispersar, e descia o braço. Braço era maneira de dizer. Na verdade, ele vinha com bainha de facão, ripa de madeira, corrente de ferro com cadeado e tudo, e até chapa de aço. Uma lenha. A mãe, com menos força no muque, cuidava da ação no varejo, exemplando de um em um, apoiada no cinturão de couro, tomada de ferro elétrico, cabo de vassoura, o que lhe caísse à mão. Tudo dividido, irmãmente.

     O pai batia melhor quando bêbado. Quando chegava do bar tropeçando nas cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia ser caprichado. Pelo menos um tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos assim. A mãe já tinha outras manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de cabeça crônica, que tinha desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento físico, mais vontade de sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta dor, a pobre, suando frio na fronte. E tome esforço, na tortura da molecada; então, suava mais ainda. O suor materno era um terror para nós.

     A dor da mãe não era mania, não. Nem combustível para animar as surras. Descobrimos isso no dia em que sua cabeça explodiu e os médicos disseram pro pai que ela tinha coisa muito ruim nos miolos. O pai ficou triste. E preocupado, porque não teria mais com quem dividir a tarefa sôfrega. Tanto filho para espancar sozinho, coitado, ninguém merece. Ainda mais com a tropa se desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio taludos e dificultando o manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente, lamentou.

     Mas até que os dias difíceis não foram muitos, porque logo, logo o pai começou a inchar; primeiro as mãos e os pés, depois as maçãs do rosto, e um dia foi carregado pelos vizinhos depois de botar muito sangue pelo nariz. E não foi, como pensaram a princípio, reação violenta de nenhum de nós. Nunca fomos de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que atendeu a nossa mãezinha disse para a gente que o papai não passaria daquela noite. E não passou.

     — Cirrose — disse ele.

     — Surra bastante o fígado, não é, doutor? — eu perguntei.

     — Surra bastante tudo, meu jovem. Todos os órgãos, no atacado e no varejo — respondeu, com um sorriso de canto de boca.

     O doutor era um sujeito engraçado.

     Depois de deixar o corpo do pai no cemitério, dentro de um caixão que os vizinhos fabricaram, voltei para casa e reuni os irmãos. Na qualidade de mais velho, eu tinha que dizer algumas palavras, nem que fosse apenas para desejar boa sorte a todos na novíssima vida que nos esperava.

     Disse a eles que sem mãe, e agora sem o pai, cada um ia ter que cuidar do próprio destino. Depois de tanto tempo apanhando em casa, estava na hora de neguinho aprender a tropeçar com as próprias pernas. Pancada garantida, três vezes ao dia, nunca mais. As meninas, pelo menos, poderiam arranjar maridos que, com sorte, gostassem da pancadaria. Para os meninos, seguramente, o futuro seria mais incerto.

     Fiz a mochila de cada um, passei batom e alfazema nas moças, cortei as unhas e penteei os cabelos dos moleques, e ordenei que pegassem a trilha desejada, em busca do próprio caminho. Também ganhei a estrada, depois de trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o que havia lá dentro, lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o vigor do chute do pai.

     Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei me ajeitando aqui na obra. O trabalho é duro e à noite, depois de um dia de labuta, o corpo reage como se tivesse levado uma surra de vara: entre moído e relaxado, meio sofrido e meio orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá feito deles, se batem nos próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida. Lembro mais deles nos fins de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia um caboclo bebedor. Nesses dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe parece que aumentava.

(Do livro "Contos da vida absurda". Casarão do Verbo, 2014)
 
 

quarta-feira, 13 de setembro de 2017


Compositor inédito

      “A gente começa a beber por causa das más companhias, continua por causa das boas e para quando a vida não faz mais sentido”, disse o velho. “Parei porque a minha está uma merda”, sentenciou, abrindo a garrafa térmica e se servindo de mais um café. Pendurou o copo, mas triplicou a dose de café e de cigarros. Tomava baldes diários e fumava um atrás do outro.

     O velho era meu tio. Assim o chamava, mas ele nem era tão velho. Tinha poucos anos a mais do que eu. Era o meu tio mais novo, sou o primeiro dos sobrinhos, o que encurtava a diferença. Antes de morrer, minha avó pediu:

     “Cuide do seu tio. Só confio em você para essa tarefa”.

     Também antes de morrer, minha mãe fez o mesmo pedido. Eu não poderia negar, nem a uma nem à outra.

     Decidi que viveria para ele e por isso jamais me casei. Há quem não se case porque se dedica aos pais ou a cuidar de um irmão doente. Mas por causa de um tio? Mulher nenhuma entende, claro que não. Eu explicava que a dedicação integral era para ficar mais perto e ouvir suas músicas, pois ninguém além de mim faria isso por ele. Aí elas entendiam menos ainda.

     O velho era compositor. “Compositor inédito!”, como gostava de repetir, com ar orgulhoso. De tanto ele bater nessa tecla, eu até achava, quando menino, que ser compositor inédito era algo muito importante. Nem entendia como alguns permitiam que suas músicas fossem gravadas, quando o bacana mesmo era ficar escondido de tudo e de todos, sem se misturar à algaravia do show business.

     A primeira que ele me mostrou, entoando um violão muito mal tocado (outra característica original de meu tio), tinha um verso que nunca esqueci.

     Dizia assim:

Vou morrer de caganeira, numa esteira

Pelo amor da minha linda jardineira...

     Repetia várias vezes, com variadas entonações, batendo com dois dedos nas cordas do instrumento. E eu achava o máximo. Repetia para os meus amigos os versos tortos e o som atravessado do violão, caprichando na imitação da voz de porta empenada de meu tio, e minha mãe sempre me repreendia:

     “Só você mesmo, para gostar das maluquices que o Abinoel inventa”.

     Maluquices horríveis mesmo, justiça seja feita. Mas eu gostava. E jamais soube porquê, se nem sequer as entendia.

     Abinoel. Esse era o nome do meu tio. Mas eu o chamava de Tio Bino. Ele preferia o apelido Noel. Dizia que era nome de artista, que esse fora um grande compositor, embora tenha fraquejado diante da sedução do sucesso e se permitido ser muitas vezes gravado e regravado.

     Morava num quarto e sala, por isso tive que abrigar meu tio na salinha apertada mesmo. Eu ficava no quarto, e ainda bem que ali tinha uma porta. Assim podia fechá-la quando cansava de ouvir o dindon-dindon desafinado, a noite inteira. O velho virava a madrugada tomando café, fumando e compondo.

     Quando passava para a cozinha, ele me segurava:

     “Escuta essa!”

     E mandava ver.

Cada uma mais maluca do que a outra, que nem essa que ficou tão inédita quanto todas, mas pela qual eu tinha um carinho especial. Dizia:

Meu cachorro me levou para as estrelas

Num foguete de cristal e papelão

Viajei numa poltrona de primeira

E voltei num balão de São João.

     “Essa é bonita, tio Bino. Merece ser gravada”.

     Pronto. Para quê? Nunca mais tocou nem cantou a música.

     Abinoel Bino Noel não queria nenhuma espécie de registro de suas criações, para não correr o risco de chegar aos ouvidos de nenhum cantor desaviado. Quando compunha, eu não podia sequer me aproximar com o celular na mão. Temia que traísse sua confiança. Guardou todas na memória, e só as cantava quando estava com vontade e ao lado de pessoas “que merecem ouvir”, ele dizia.

     Estive sempre entre essas pessoas.

     “Desde que não me venha com conversa de gravação, disco, rádio, mercado, essas besteiras”.

     Um dia, o velho disse “senta aqui”, eu me sentei e ele falou:

     “Escuta o começo desse samba”.

     Futucou nas cordas do vilão, afinando-o à sua maneira, e quando o som ficou pior do que estava ele cantarolou:

Vejo que a morte me acena da janela

Me olha, olho pra ela

Peço que esqueça de mim...

     Parou por aí e ficou me olhando, como se esperasse um comentário qualquer.

     Mantive o silêncio e ele disse:

     “Não parece a atmosfera do Nelson Cavaquinho?”

     “Parece, tio. Tudo que fala em morte me lembra logo as canções do Nelson, especialmente daquelas em parcerias com o Guilherme.”.

     Ele sorriu, satisfeito.

     “Ficaria muito bonito na voz de uma cantora que eu conheço”.

     O tempo fechou.

     Guardou o violão, catou o maço de cigarros e foi tomar café.

     Fui atrás:

     “Tio, me desculpe, mas não consigo entender que um artista não sonhe em dividir a sua arte com o público”.

     “Minhas músicas não são divisíveis. São feitas para mim.”

     “Que atitude mais egoísta, tio Bino. As coisas bonitas que fazemos só se completam eu sua beleza quando chegam a outros olhos, ouvidos, corações.”

     “Palavras.”

     “Podem ser.”

     “E piegas.”

     “Mas acredito nelas. E o senhor deveria acreditar mais em seu taco. Por que tanta insegurança?”

     “Não é insegurança.”

     “Então é egoísmo mesmo.”

     “Você não entende, cara.”

     Continuei não entendendo, mas a pressão deu resultado. Na manhã seguinte, enquanto me preparava para sair de casa, tio Bino Noel me pediu que deixasse com ele o meu gravador. E quando retornei, à noite, recebi a fita onde estava escrito na etiqueta:

     20 CANÇÕES INÉDITAS DE ABINOEL BATISTA

     “Que tal?”, perguntou.

     “Abinoel Batista”, soletrei.

     “Noel que nem o Rosa, e Batista que nem o Wilson. Já ouviu falar da polêmica envolvendo os dois?”

     “Já. E meus parabéns, grande compositor inédito”.

     “Posso deixar de ser, se você conseguir. São suas, faça com elas o que quiser.”

     Passei a noite ouvindo suas músicas, em meu quarto. Na manhã seguinte fui acordar meu tio e o encontrei sem vida, a cabeça despencando do colchão e as pernas estiradas sobre o violão, com quem sempre dormia.

     A fita? Foi no caixão com ele. Eu mesmo a coloquei. Perdeu a graça.
 
(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2017)