sábado, 28 de outubro de 2017


Bina

     Meu nome é Balbina – se é que Balbina é nome, sei lá de onde meu pai tirou isto – mas o senhor pode me chamar de Bina, como todo mundo aqui: Bina pra lá, Bina pra cá.

     Os mais educados passam boa-tarde, Bina, às vezes até Dona Bina. Os moleques assobiam, gritam Bina Doida, levantam minha saia e bagunçam meu cabelo. Uns vêm com o diabo, outros Deus que manda – como a vizinha Dona Lola, que traz a marmita quentinha mesmo sem eu pedir.

     Eu digo Deus lhe pague, Dona Lola, ela responde Amém e a vida segue, aí olho pro céu e vejo anjos batendo palmas. Vou querer mais o quê?

     Bina não tem um filho sequer que a ampare? Não. Nem sobrinhos, primos, irmãos, nada, nem homem? Deus me livre. Não tenho nem quero ter. E até que já tive, mas não prestou. Filho, até que já fiz, mas não vingou. Ô, leva eu, minha saudade, que eu também quero ir, minha saudade, quando chego na ladeira... deixa estar.

          Deixa estar, que nasci nua e estou vestida. Mais ou menos vestida. Nem sempre fui um traste, nem sempre vivi de esmolas. Areei muita panela de alumínio em casa de rico, lavei lençol sujo de sangue, toalha suja de bosta, sequei coceira, frieira e catarro de menino amarelo.

     Vou me queixa? Pra quê?

     Medo da morte? Por quê?

     Só tenho medo da vergonha, da humilhação, dos desaforos, as tripas soltando o peso, o corpo largando os pedaços, o vento carregando os sonhos. Bina é doida? Vocês que pensam.

     Tentei bolsa-escola, mas não sei ler nem escrever. Também fui no bolsa-família, mas não tinha família para apresentar. Deixa. Vim ao mundo sozinha, sozinha vou partir já, já. Nem fome, nem sede, nem frio me metem medo. Só me assusta a noite. Melhor dizendo, o vento da noite, o barulho que o vento da noite faz.

     Zuuuuummmm é o vento da noite. Nas telhas. Nos ossos. Zuuuuummmm chamando Biiiiinaaa! Cadê tu, menina?

     Era o meu pai.

     Vamos comigo, Bina, prender o gado. Vamos soltar o gado. Ordenhar as vacas. Faz um carinho na teta da vaca, filha, faz, na testa do cabritinho que ficou órfão. A mãe do cabrito morreu. A minha mãe cozinha maxixe nas panelas de barro, no fogão à lenha, meu pai secou até virar um graveto.

     Biiiiinaaa!

     Só na escola, onde entrei, aprendi que eu era Balbina – se é que Balbina é nome. Entrei, mas não fiquei. Saí pela mesma porta. Conversa difícil, palavreado, meu pai morrendo e eu aqui?

     Mãe também se foi. Foi-se o cabrito que a cabra deixou. Foi o marido, o filho, a cerca do roçado, a estrada era uma pedra atrás da outra, vista da carroceria do caminhão.

     Ficou melhor aqui. Vocês que pensam.

     Tome bronca, humilhações. Bina faz isto, faz aquilo.

     Biiiiinaaa!

     Areia panelas, lava lençol sujo de sangue, toalha suja de bosta, seca coceira, frieira e catarro de menino amarelo.

     Tinha vestido florido? Não tinha.

     Tinha passeio no domingo? Não tinha.

     Tinha direito de dormir e sonhar?

     – Biiiiinaaa! Acorda, Bina!

     Não tinha um documento sequer, mas agora tenho todos. Fui tirando, um a um, esse para ser atendida, aquele para os exames, o outro para facilitar a internação. Fui facilitando tudo. Quer identidade? Pois tome. Deite assim, assim ou assado. Deito. Enfia câmara, borracha, ferros, em cima, embaixo, nas veias, nos buracos, na alma, eu ali, Bina, faça força, enquanto me carregam pela mão, tubos arrastando, escadas, luzes, pavores, e eles todos pensando que eu não sei que já vou morrer.

     Que pensem.
(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)