quarta-feira, 21 de março de 2018


Mania de outono


Surge a alvorada, folhas a voar
 E o inverno do meu tempo começa a brotar, a minar.
Cartola


     Outono era a moringa na mesa forrada de papel crepom. A caneca de alumínio deixava a água fresquinha, gosto de terra no fundo mais fundo, cheiro de chuva no gargalo. Vento encanado que podia constipar, menino remelento de nariz a escorrer pelos lábios. Peito apertado na cor doce e melancólica de um quase maio.
     A mania de outono eu tenho desde muito cedo. Desde bem pequeno mesmo, lá na província, onde as pessoas nem davam muita bola para essa história de estação do ano. Tinha o verão, com aquele calor medonho dos tempos sem ar-condicionado nem ventilador, e o inverno, que trazia frio de doer nos dedos e obrigar a dormir de pijama. Outono e primavera também existiam, mas a esses ninguém dava muita confiança.
     Comecei a prestar atenção no outono no dia em que a professora Alda exibiu o livrão cheio de fotos coloridas, mostrando como a natureza reagia às boas ou más influências climáticas, como se comportava diante de cada uma delas, se derretendo toda quando o outono anunciava a chegada triunfal. O papel do livro ficava mais cheiroso nas páginas que mostravam árvores se descabelando, montanhas abrindo os braços para os dentes do sol que banhavam tudo de um amarelo meio laranja avermelhado, sol que parecia vir de outro mundo e que jamais passara nem mesmo de passagem pela minha cidade.
     Peguei mania e comecei a colecionar folhas caídas na praça, sobre calçadas e muros da alameda que acompanhava o caminho da escola. E passei a observar, encantado, que aquelas folhas meio marrom amareladas disputavam em beleza com os frutos da última primavera, foram verdes sobre verdes no verão que acabou de acabar e estarão renascendo daqui a pouco, no inverno que o vento mais fino já anuncia. Fazia as contas e cálculos das transformações pelas quais deveria passar a minha vida até a explosão do próximo outono.
     Por que o declínio e a decadência? De onde tiraram as explicações encontradas no verbete do primeiro dicionário que me caiu às mãos? Até aquele dia, outono para mim era beleza e renascimento. Coloquei as impressões no poeminha outonal que fez os colegas rirem bastante e a professora condescender um “ele é sensível”. Também li para minha mãe, à noite, enquanto ela lavava pratos. Depois do ponto final, disse “vá dormir, você está cansado”, e até hoje não sei se o comentário significou uma aprovação. Mas a reação generalizada me mostrou que a compreensão do outono é para poucos.
     Quantas vezes, ainda no meu pequeno mundo, me deitei à tardinha sobre a esteira de folhas das palmeiras, da cajazeira, dos umbuzeiros? Cabeça recostada no travesseiro improvisado de outono e os olhos na impenetrável luz dos fotógrafos e dos pintores, até o sol se cansar de mim e fugir para detrás das montanhas. Logo, logo vem o inverno e eu me fecho em copas, que nem as árvores, escondo os meus frutos.
     Catei folhas na volta da escola, na ida para o trabalho, na vinda dos filhos, na despedida dos pais, sem precisar dar explicações para ninguém. Hoje não mais. Recolho apenas as que as máquinas de limpeza não enxergam, escondidas na grama da beira da piscina. Quando eles descuidam, apanho algumas no tonel de lixo. Só que pouco descuidam e os olhos de verão são fogo em brasa nos meus calcanhares.
     Declínio e decadência. O segurança chuta para longe a belíssima folha da mangueira que veio caindo, caindo e se aproximando de mim. A bota do animal quase esmaga os meus dedos, enquanto se aproxima o enfermeiro vestido de inverno, sem uma gota de luz no semblante, bordando um sorriso de falsa primavera, o mundo girando, girando e me devolvendo o outono que ele traz na pontinha da agulha.
(Do livro "Contos da vida absurda", Editora Casarão do Verbo, 2014. Capa: Hortensia Pecegueiro)


quarta-feira, 14 de março de 2018


Quem que eu era?



     Todo dia ele faz diferente, que nem na canção do Chico. Mas hoje, não. Ao chegar, perguntando “Lila, você sabe mesmo quem eu sou?”, vi que o Beto voltava a ser, pelo menos naquele dia, o bom e velho Beto de nunca.
     E vi que isto não seria bom.
     Dia é força de expressão, porque na verdade era à noite que o Beto se transfigurava, inventando personagens que transformavam a nossa cama na galeria mais improvável de tipos humanos.
     “Quem que eu era?”
     E antes mesmo que parasse para pensar, ele emendava:
    “Eu era um marujo grego que chegou aqui em um navio transportando minério. Desembarquei no cais e procurava lugar para tomar uma caipirinha, dizem que a caipirinha daqui é uma delícia, quando conheci você”.
     E vinham ritmos, melodias, acordes e compassos desconhecidos. O nosso quarto hospedava uma orquestra mirabolante, onde os instrumentos nem sempre se entendiam; mas aí é que estava a graça.
     “Beto, só você mesmo...”
     “Não ri, Lila, que desconcentra!”
     E ao contrário do verso de Chico, me desmanchava o vestido, me adivinhava os desejos, e ligava o ar-condicionado, no barulho máximo, para a vizinhança não tirar casquinha em nossas construções harmônicas.
     Deus etíope, intelectual nórdico, cavaleiro negro, senhor de engenho, mercador de joias, construtor de sonhos, diabos e santos vindos nem sei de onde.
     “Quem que eu era hoje?”
     Um valente, gay, um gigolô, um negro, um asiático, um vadio, valetes, rufiões, aventureiros.
     Depois não dormia pesado, botava o disco para tocar, e boca cadeado, corpo fogueira, saía de fininho, deixando o quarto em chamas, sem açúcar, sem afeto, eu e o Chico, eu e o medo, eu e o terço a que me agarrava, contando os rosários até sua volta.
     “Beto, quem você era?”
     Até que hoje o novíssimo personagem que era ele mesmo disse “Não dá mais, Lila, não quero mais, não sou nenhum daqueles, nem sequer sou eu mesmo, Lila”, e foi recolhendo os seus pertences, as lembranças dos muitos e tantos, a bota do caçador, o chapéu do pirata, o cinturão do soldado romano, a espada do Robin Hood, as chaves do carcereiro, o nariz do palhaço, o azedume do senhor do mato, o suor, a salmoura, o lenho, as lembranças, o cheiro, tudo, tudo, e disse fui.
     Corri à janela e ainda o vi dobrando a esquina, pulando em uma perna só, fazendo diferente, vestindo o Saci que jamais despiu para mim.
(Do livro "Aquela música". Myrrha, 2016)


terça-feira, 6 de março de 2018


Danadinha



     Quando minha mãe diz “Boa noite, filhinha, durma com Deus”, o sangue muda de temperatura em minhas veias. Toda noite é assim. Quando ela apaga a luz, joga o beijinho com “Eu te amo” e fecha a porta do quarto, a adrenalina dispara a partir do dedão do pé, fazendo acrobacias nas zonas erógenas e se espalhando pelo corpo.
     Toda noite é assim.
     Espero alguns minutos, até minha mãe entrar e sair do banheiro, pegar a jarra de água na cozinha e fechar a porta dos seus aposentos. Sei que daí a pouco estará dormindo, que o meu pai já dorme há mais de uma hora, que nesse instante a casa passa a ser só minha, do meu computador e dos meus amantes virtuais.
     Pulo da cama para a mesinha onde fica o laptop, estrategicamente instalado de forma a que a câmera tenha um bom alcance do cenário, e começo a teclar.
     Danadinha entra na sala.
     Demorô, Danadinha.
     É o Fabão, um que parece ficar vinte e quatro horas aceso.
     Danadinha: Acordado essa hora, menino?!
     Fabão: Esperando você. Liga a câmera.
     O maluco está se masturbando, como sempre.
     Fabão faz umas caretas, se contorce todo e dá um tempo. Deve ter ido tomar banho. Além de ver, gosto de imaginar o que os amigos fazem fora do alcance da câmera.
     Entra um novato, cheio de intimidades.
     Macho Viril: Oi, gostosa. Tira essa camiseta.
     Eu tiro.
     Macho Viril: Tira a calcinha.
     Eu tiro.
     Danadinha: Sou muito obediente.
     Ele já está nu.
     Viúva entra e sai da sala.
     Madruga está só espiando.
     Entram Foderoso, Maguila, Cruel, Macho2015 e até uma tal de Afrodite, perguntando se eu gosto de meninas. Não gosto, mas respondo que só curto as feias.
     Afrodite: kakakakakaka!!!
     Macho Viril sai
     Aí ele entra, na hora de sempre.
     Deixo sem respostas as perguntas de Gostoso Solitário, Casalsacana, Caio de Boca, Louro Pelado, Gato Sarado, Piruzão e Putaça.
     Toda madrugada é assim.
     Zebu: Oi, princesa!
     Danadinha: Oi, meu touro bravo!
     Zebu: Todos dormem aí?
     Danadinha: Todos! Menos uma!
     Zebu: Quem?!
     Danadinha: A sua peludinha...
     Zebu: Eu sabia!
     Danadinha: Acordada, quente e molhada. Carne em brasa!
     Zebu: Só acredito vendo!
     Danadinha: Estou indo aí!
    Saio da sala de bate papo, mas não desligo a máquina. Ponho uma camisola por cima do corpo nu e pego a bolsa de lona preta no fundo do armário, escondida sob as roupas. Abro a porta do quarto, prendendo a respiração, descalça para não fazer barulho. Aravesso o corredor, a sala, a cozinha, e saio pela porta dos fundos. Desço os lances de escada que separam o meu apartamento do quarto do zelador do prédio, na garagem.
     Empurro a porta, que está apenas encostada. Cícero sorri, esparramado na cama de solteiro, peladão. Abro a bolsa, retiro um por um os objetos que vou colocando em cima da cama: algemas, chicote, um estilete de ponta fininha e a coleira que ele gosta tanto quando eu uso.
     Repetimos as brincadeiras que me deixam machucada, porém feliz. Quando ponho a coleira, ele aperta até eu quase desmaiar. Vai me conduzindo de quatro, a chicotadas, de um lado para o outro do quartinho. Põe para tocar o funk horroroso, que fica repetindo “Vem cachorro, vem cachorro, diz que vai me enlouquecer... “ Só depois consegue se satisfazer, aos gritos de “Cadela vadia”.
    “Vai acordar o prédio inteiro, maluco!”
     Lembro-me de minha amiga Tati, que é toda certinha. Quando conto essas histórias que minha avó diria “do arco da velha”, ela diz que não consegue imaginar alguém que fala três idiomas e estudou filosofia praticando “uma baixaria dessas”.
    “Para você ver”, eu digo.
    “Tudo tem limite. Coleira no pescoço é demais!”
     “Relaxa, Tati. A modelo e atriz, famosíssima, usou coleira no desfile da escola de samba e ninguém achou estranho.”
     “Ali era de brincadeira. Uma declaração de amor ao marido.”
     “No meu caso também é uma declaração de amor, ao Zebu.”
     “Maluca!”
     Vou dizer mais o quê? Cada um sabe de si.
     Quando Cícero afrouxa o meu pescoço, eu consigo respirar, mas ainda com dificuldade. Ele diz que qualquer dia aperta até eu não poder respirar.
     “E depois?”, eu pergunto.
     “Jogo seu corpo na lixeira do prédio!”
     “E depois?”
     “Depois o caminhão do lixo completa o serviço.”
     “Ui! Malvado.”
     Volto para casa, novamente na ponta dos pés. Arrumo os objetos na bolsa e a bolsa no fundo do armário. Preciso de um banho, urgente.
     Lembro-me das palavras de Cícero Zebu, no meu ouvido:
     “Qualquer dia eu aperto até você não poder respirar.”
     Só então me dou conta de que não tirei a coleira.
     Cruzo com minha mãe no corredor, ela saindo do banheiro.
    
     “Acordada, filhinha?”
     “Estou, mamãe.”
     “O que é isso no seu pescoço?”
     “Uma coleira antidistônica. Ajuda a dormir.”
     Minha mãe balança a cabeça. E segue lentamente para o quarto.


(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)