A farinha e o sonho
O homem velho deixa a vida e a morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e
nunca, nunca mais.
Caetano Veloso
Sentado no batente da porta, cavoucando as unhas dos pés que se roçam
nas pedras, o velho Severino, mais morte do que vida, coça com as juntas dos
dedos o osso da cabeça do cachorro Capiberibe. Cheio de fome e de pulgas, o
cachorro olha sem qualquer paixão para o umbuzeiro carregado de frutos e de
passarinhos.
Severino diz mais dia menos dia tudo isto se acaba, meu amigo.
Capiberibe late para o nada.
O animal estava para o velho como o papagaio Aruaí esteve para o grande
imperador Macunaíma. Depois de acompanhar os passos do herói sem caráter e de
fazer parte do seu séquito, foi encontrado um dia pelo escritor a quem relatou
tudo o que se passara, antes de bater asas no rumo de Lisboa. A tribo de
Macunaíma se acabara, a do velho Severino estava chegando ao fim.
— Cadê a farinha que guardei aqui?
O papagaio sabia conservar no silêncio as frases e feitos do herói. O
cachorro também.
O calor provoca coceiras em Capiberibe e ensopa de suor o peito de
Severino. Ele pede a Deus que mande chuva bem forte, daquelas que parecem
derrubar o mundo, água limpa escorrendo pela cumeeira, cada pingo enchendo um
pote. Cadê os raios que desciam em disparada, dançando feito minhocas luminosas
e tontas? E o barulho que se ouvia por trás da serra, quando pipocavam os
trovões, enquanto o muque forte empurrava para lá e para cá a pá de madeira na
casa de farinha?
— Quem sumiu com a ferramenta de trabalho que guardei como lembrança?
Foi antes de o progresso chegar, do veneno das latas, do barulho das
motos. Quando carregava a mandioca no lombo, colocava as raízes na água fresca
retirada do tanque para preparar a massa e torrar a farinha. E dividi-la com os
filhos e netos e irmãos e amigos, depois encher os cestos para vender o que
sobrava. Foi antes de acordar no meio da noite, sonhando com um camaleão de aço
que mastigava tudo e lhe triturava as costelas.
A miséria é a
mesma quando o velho Severino apura a vista, na linha do horizonte, no rumo da
capoeira, e sente bater-lhe nas faces o vento rebelde que o tropel faz circular
entre as umburanas, na perseguição ao touro fugido. E vê, novamente, a boiada
no caminho do curral, a água juntando golfos no alagadiço, os bem-te-vis
animados no fim da tarde. Enterra a pá de mexer a mandioca no forno, massa pra
lá, farinha pra cá, e depois a desenterra:
— Vou abrir uma
cova. É a parte que me cabe.
Olha para
dentro de casa, para se certificar de que não é visto por ninguém, e bota os
bagos para fora:
— Aqui pra vocês!
Capiberibe corre atrás de um preá que circula o lajedo lá longe.
Severino sente medo de ficar sozinho, de ser perturbado pelo espírito do camaleão
a tocar fogo nos cestos e no paiol.
Num tempo em que os homens eram feitos à imagem e semelhança de Deus,
vivera a bonança de suas terras, mastigando farinha com rapadura, com tripa de
bode, com carne de teiú assada, se fartando com abóboras e melancias, dizendo
como queria e como não queria o funcionamento do mundo, com esteira na varanda,
rede e água fresca na beira da estrada.
Dormira em colchão de capim macio, tivera uma negra de peitos e bunda
talhados pelo criador para limpar os cabelos, arear os pés, catar piolhos e
carrapatos. Sobretudo, para cavoucar suas unhas.
— Naquele tempo, eu que mandava chover. Depois eu que mandava parar.
A filha Maria retorna do tanque com o cesto de roupas na cabeça.
— Falando sozinho, meu pai?
– Com o cachorro.
Maria sorri e pisa no alpendre, cantando:
“Não é cova grande, é cova medida/É a terra que querias ver
dividida...”.
Capiberibe acompanha os passos dela, na esperança de uma sobra de osso
na cozinha. Ouvir conversa de velho caduco não enche barriga.
Cobertor, alpercatas de correia, roupa lavada tinha. O que lhe faltava,
então? A filha fazia o possível; mas a vida, não. A vida não tem compromissos.
Tivera dias de sonhos, touro na unha, cercas refeitas.
É assim mesmo, fala pros seus botões, na ausência do cachorro:
— E depois eu mandava que a chuva chovesse novamente. Para logo ordenar
que ela estancasse.
Sonho ruim vem e muda o verbo do princípio. Vida vem e leva a gente.
Vida vem e lava a gente. Vida vem e leva tudo. Como na enxurrada, animais
morrendo afogados, mulher e meninos gemendo. O velho vira a moringa e toma uma
talagada de aguardente. Começa a dançar no meio do quintal. Capiberibe se anima
e morde os seus calcanhares.
“É a terra que querias...”
Começa a chover e Severino interrompe a dança, cansado.
Olha em direção ao tanque, aponta o dedo e atira com a boca — Têi! Tei!
— na linha do voo da juriti. O cachorro, também ofegante, pensa em empreender
busca ao pássaro imaginário, mas desiste.
Senta-se ao lado do velho. O velho deita-se no chão, sobre o travesseiro
das lembranças.
Vai lá longe.
Vai morar na casa de farinha. Mandioca no lombo, forno de lenha
queimando a raiz, o alimento nascendo em seus braços. Matando o porco no
quintal, rodeado de netos, a mulher matando galinhas, recolhendo os ovos no
ninho, meu Deus, os pequenos morros onde brotavam cactos e que não tapavam a
luz do sol, os bodes, lajedos, os preás, a cabeça rodando, a chuva, a barba
molhada, o nariz escorrendo, um olhar de tristeza no olhar do papagaio de
Macunaíma, uma vontade louca de chorar, se entregando à lama, se mijando todo,
o soluço do porco, o sangue da galinha, Maria, minha filha, está chovendo
farinha, essa água que não para de cair.
Não para.