quarta-feira, 27 de junho de 2018


A farinha e o sonho 



O homem velho deixa a vida e a morte para trás
 Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais.
Caetano Veloso



     Sentado no batente da porta, cavoucando as unhas dos pés que se roçam nas pedras, o velho Severino, mais morte do que vida, coça com as juntas dos dedos o osso da cabeça do cachorro Capiberibe. Cheio de fome e de pulgas, o cachorro olha sem qualquer paixão para o umbuzeiro carregado de frutos e de passarinhos.
     Severino diz mais dia menos dia tudo isto se acaba, meu amigo.
     Capiberibe late para o nada.
     O animal estava para o velho como o papagaio Aruaí esteve para o grande imperador Macunaíma. Depois de acompanhar os passos do herói sem caráter e de fazer parte do seu séquito, foi encontrado um dia pelo escritor a quem relatou tudo o que se passara, antes de bater asas no rumo de Lisboa. A tribo de Macunaíma se acabara, a do velho Severino estava chegando ao fim.
     — Cadê a farinha que guardei aqui?
     O papagaio sabia conservar no silêncio as frases e feitos do herói. O cachorro também.
     O calor provoca coceiras em Capiberibe e ensopa de suor o peito de Severino. Ele pede a Deus que mande chuva bem forte, daquelas que parecem derrubar o mundo, água limpa escorrendo pela cumeeira, cada pingo enchendo um pote. Cadê os raios que desciam em disparada, dançando feito minhocas luminosas e tontas? E o barulho que se ouvia por trás da serra, quando pipocavam os trovões, enquanto o muque forte empurrava para lá e para cá a pá de madeira na casa de farinha?
     — Quem sumiu com a ferramenta de trabalho que guardei como lembrança?
     Foi antes de o progresso chegar, do veneno das latas, do barulho das motos. Quando carregava a mandioca no lombo, colocava as raízes na água fresca retirada do tanque para preparar a massa e torrar a farinha. E dividi-la com os filhos e netos e irmãos e amigos, depois encher os cestos para vender o que sobrava. Foi antes de acordar no meio da noite, sonhando com um camaleão de aço que mastigava tudo e lhe triturava as costelas.
     A miséria é a mesma quando o velho Severino apura a vista, na linha do horizonte, no rumo da capoeira, e sente bater-lhe nas faces o vento rebelde que o tropel faz circular entre as umburanas, na perseguição ao touro fugido. E vê, novamente, a boiada no caminho do curral, a água juntando golfos no alagadiço, os bem-te-vis animados no fim da tarde. Enterra a pá de mexer a mandioca no forno, massa pra lá, farinha pra cá, e depois a desenterra:
     — Vou abrir uma cova. É a parte que me cabe.
     Olha para dentro de casa, para se certificar de que não é visto por ninguém, e bota os bagos para fora:
     — Aqui pra vocês!
     Capiberibe corre atrás de um preá que circula o lajedo lá longe. Severino sente medo de ficar sozinho, de ser perturbado pelo espírito do camaleão a tocar fogo nos cestos e no paiol.
     Num tempo em que os homens eram feitos à imagem e semelhança de Deus, vivera a bonança de suas terras, mastigando farinha com rapadura, com tripa de bode, com carne de teiú assada, se fartando com abóboras e melancias, dizendo como queria e como não queria o funcionamento do mundo, com esteira na varanda, rede e água fresca na beira da estrada.
     Dormira em colchão de capim macio, tivera uma negra de peitos e bunda talhados pelo criador para limpar os cabelos, arear os pés, catar piolhos e carrapatos. Sobretudo, para cavoucar suas unhas.
     — Naquele tempo, eu que mandava chover. Depois eu que mandava parar.
     A filha Maria retorna do tanque com o cesto de roupas na cabeça.
     — Falando sozinho, meu pai?
     – Com o cachorro.
     Maria sorri e pisa no alpendre, cantando:
     “Não é cova grande, é cova medida/É a terra que querias ver dividida...”.
     Capiberibe acompanha os passos dela, na esperança de uma sobra de osso na cozinha. Ouvir conversa de velho caduco não enche barriga.
     Cobertor, alpercatas de correia, roupa lavada tinha. O que lhe faltava, então? A filha fazia o possível; mas a vida, não. A vida não tem compromissos. Tivera dias de sonhos, touro na unha, cercas refeitas.
     É assim mesmo, fala pros seus botões, na ausência do cachorro:
     — E depois eu mandava que a chuva chovesse novamente. Para logo ordenar que ela estancasse.
     Sonho ruim vem e muda o verbo do princípio. Vida vem e leva a gente. Vida vem e lava a gente. Vida vem e leva tudo. Como na enxurrada, animais morrendo afogados, mulher e meninos gemendo. O velho vira a moringa e toma uma talagada de aguardente. Começa a dançar no meio do quintal. Capiberibe se anima e morde os seus calcanhares.
     “É a terra que querias...”
     Começa a chover e Severino interrompe a dança, cansado.
     Olha em direção ao tanque, aponta o dedo e atira com a boca — Têi! Tei! — na linha do voo da juriti. O cachorro, também ofegante, pensa em empreender busca ao pássaro imaginário, mas desiste. 
     Senta-se ao lado do velho. O velho deita-se no chão, sobre o travesseiro das lembranças.
     Vai lá longe.
     Vai morar na casa de farinha. Mandioca no lombo, forno de lenha queimando a raiz, o alimento nascendo em seus braços. Matando o porco no quintal, rodeado de netos, a mulher matando galinhas, recolhendo os ovos no ninho, meu Deus, os pequenos morros onde brotavam cactos e que não tapavam a luz do sol, os bodes, lajedos, os preás, a cabeça rodando, a chuva, a barba molhada, o nariz escorrendo, um olhar de tristeza no olhar do papagaio de Macunaíma, uma vontade louca de chorar, se entregando à lama, se mijando todo, o soluço do porco, o sangue da galinha, Maria, minha filha, está chovendo farinha, essa água que não para de cair.
     Não para.   

(Publicado na Revista Brasileira, publicação da Biblioteca Nacional, 1º trimestre 2018)


sexta-feira, 15 de junho de 2018


Gertrud


Luís Pimentel

 

Conheci Gertrud numa casa de shows na Lapa carioca. A noite fervia, com muito samba no palco e gente animada, cantando e dançando no salão. Ela estava com amigos, em uma mesa ao lado da minha. Fui me aproximando e me apaixonando aos poucos. Primeiro pela maneira sensual com que a loura de olhos claros e cabelos escuros mordia os pasteizinhos de carne e grunhia (sempre achei que alemão fala grunhindo, desde os filmes de guerra a que assistia na infância):

Exprêêndidô!

A linda moça entornava chope com disposição típica dos povos germânicos e derramava corajosamente molho de pimenta no petisco, o que a deixava com as bochechas vermelhas e os olhinhos cheios d´água.

Esplêndida.

Depois me apaixonei pelo sotaque (me apaixono fácil por sotaques em vozes femininas, seja alemão, libanês, cearense), enquanto Gertrud acompanhava o som que vinha do pequeno palco e entoava, com delicada alegria:

“Vixto assim do arrto, mas parrece um ceô no chão... Em Mangueirra a poesia...”

Como resistir?

Os dias eram de véspera da Copa do Mundo de 2014, aquela mesma, a fatídica, mas a minha amada germânica não estava aqui por causa do futebol (não gostava nem um pouco do esporte, para o qual se dizia sem “tolerrância” nem “disposición”). Cursava uma espécie de pós-graduação numa universidade pública e fazia pequenos serviços de tradução, para se sustentar por aqui.

No primeiro encontro a dois, em minha casa, vivi a primeira pequena decepção: Gertrud não só não tinha o menor interesse por futebol, como o detestava. O torneio mundial corria solto e, fanático que sou desde menino pelo esporte bretão, assistia a todos os jogos pela tevê. Àquela altura do campeonato, ela já se esforçava para falar sem sotaque, o que demonstrava certa inclinação para me cativar. Essa disposição já facilitava um pouco as coisas.

Chegou-se com jeitinho brasileiro, até estranho para uma representante de povo tão duro, seco e objetivo:            

‒ Que jogo é esse, querido?

‒ México e Camarões!

‒ Vai ver inteiro?

‒ Pretendo, meu amor.

‒ Jura?! México e Camarões?!

‒ Você não entende de futebol, Gertrud. Isso é jogão. Senta aqui, vai! Assiste um pouquinho.

Silêncio… Minutos depois:

‒ Pronto. Já assisti.

‒ Gostou?

‒ Adorei.

‒ De que você gostou mais?

‒ Das pernas desse jogador camaronês.

Pausa. Depois ela disse:

‒ Vamos pra Lapa, beber cerveja e dançar?

‒ Alemão só pensa em beber cerveja e dançar, não é?

‒ Não. Pensa em namorar também.

‒ Ah, bom!

‒ Vamos namorar?

‒ Agora?

‒ Depois do jogo.

‒ Aí tem outro jogo.

‒ Ah, é? Qual?

‒ Espanha e Holanda.

‒ E você vai ver também?

‒ Claro!

‒ Mas você não é nem espanhol nem holandês...

‒ Não seja boba. Em Copa do Mundo todo jogo é importante.

‒ Então, vamos beber cerveja e dançar, depois de Espanha e Holanda?

‒ Sem chance. Tem Costa do Marfim e Japão.

‒ Não acredito!

‒ Não acredita em quê?

‒ Que você vai ver Costa do Marfim e Japão.

‒ Claro que eu vou! E vou torcer pros japoneses.

‒‒  Eu nem sabia que japonês jogava futebol.

‒Não jogavam. Mas se tornaram experts, depois que o Zico andou como treinador por lá.

‒ Quem é Zico?

‒ Nunca ouviu falar no Zico, o Galinho de Quintino?

‒ Não, de jeito nenhum.

– Meu Deus! Você não entende nada de Brasil nem de futebol brasileiro!

‒ Mas estou começando a entender de você. Não vai levantar mais desse sofá hoje, é isso?

‒ Nos intervalos dos jogos, para fazer xixi, claro!

‒ Não vai nem comer?

‒ Aquela salsicha com molho tártaro e mostarda preta deliciosa que uma moça gentil vai preparar para mim… Isso eu quero!

‒ Não faço comida para homem preguiçoso, detesto machismo!

‒ Foi só uma brincadeirinha, fräulein!

Ela não perdia uma deixa:

‒ Tá. Sairemos no fim de semana, então? Poderemos ouvir música e dançar samba no Trapiche Gamboa… Ou ir à roda de samba do Bip Bip, que dizem estar entre as melhores da cidade…

‒ É a melhor da cidade, do país e do mundo, Gertrud. Mas domingo é dia dos melhores jogos desta Copa. Lamento!

A disputa prosseguia nos gramados, com jogos cada vez mais duros. Dura, também, era a marcação de Gertrud, cada vez mais acirradas. A Seleção, com o seu ataque ,que comecei a chamar de ataque dos nervos, prosseguia nos gramados, em boa medida graças a algumas defesas adversárias. Chegamos às semifinais, e a insistência da moça não saía de campo:

‒ Já sei. Iremos na terça-feira. Terça é dia tranquilo, o Carioca da Gema fica quase vazio e perfeito para se beber, dançar e namorar.

‒ Terça-feira? Justo nesta terça-feira? Pirou de vez> Viajou na salada de batata com cerveja quente, foi? É dia de grande semifinal!

‒ Ah, é? E quem vai disputar essa semifinal?

‒ Ora, Brasil e Alemanha. Nossa seleção de ouro vai triturar os seus patrícios, menina, sem dó nem piedade!

Aí o sotaque voltou com tudo:

‒ Verremos! Verremos entón quem vai vencerrrrrr!

A terça-feira, dia 8 de julho de 2014, começou esquisita. Nublada e neurótica. A manhã se arrastou em meio a um pesaroso mormaço, e à tarde o time do Brasil entrou no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, meio descadeirado. A vértebra fraturada do Neymar pelo zagueiro colombiano, em partida válida pelas quartas de final, não só o tirou da partida como aleijou a coluna vertebral de toda a equipe canarinho. Os conterrâneos da doce Gertrud estavam salgados e dispostos a estragar a nossa feijoada comemorativa. Schweinsteiger, Khedira, Kroos, Özil e Müller se mostraram infernais. Miroslav Klose, que chegara na competição aos 16 gols e batera o recorde de Ronaldo, como maior artilheiro das Copas, era o capeta-maestro, dono do tridente, dos chifres e do rabo maior para surrar nossa defesa.

Gertrud me pediu, com antecedência, para levar à minha casa, para ver o jogo, “um grupinho de três ou quatro” alemães, amigos seus, que como ela também não tinham família nem conhecidos no Rio de Janeiro.

‒ Somos os desgarrados, ressaltou ela, dobrando todos os erres.

Não vi inconveniente em encher a minha sala de adversários e dividir a televisão com eles. Tudo em nome da solidariedade, da amizade, do espírito esportivo e, sobretudo, da deliciosa Gertrud.

Uma hora antes do jogo eles chegaram, trazendo cervejas, vodca, chucrute e salsicha para tira-gosto, pães, muitos pães, além das inacreditáveis bandeiras, camisas e bonés nas cores da seleção alemã. Considerei um abuso, é claro, mas fiz vista grossa, mais uma vez em nome da hospitalidade brasileira.

Antes do jogo começar eu já estava achando a torcida inimiga (logo, logo tornou-se inimiga) um pouco ruidosa para o meu gosto, o que me fez silenciar e passar pelo constrangimento de ser minoria dentro de minha própria casa. Claro que me arrependi por ter aceitado o pedido de Gertrud, quando me vi acossado por aquele bando de gringos. Mas pensei: deixa o jogo começar, o Brasil meter logo duas ou três bolas na caçapa, que eles baixam a crista.

Amarga ilusão.

O futebol, como se sabe, tem essa capacidade de fazer o torcedor não enxergar a realidade e, o que é pior, de fazer uma antidesportista convicta – como era o caso do meu amor alemão – se transformar em torcedora apaixonada. Foi o que aconteceu naquela tarde, para mexer com os meus nervos e mudar os nossos destinos.

Ah, os destinos!

Se ainda me recordo bem, o jogo começou às cinco da tarde. Dez minutos depois teve início o sofrimento que parecia não ter fim, com a primeira bola invadindo as redes do nosso trêmulo e desesperado goleiro. Só no primeiro tempo meteram logo mais quatro gols, um atrás do outro, aos vinte e dois, aos vinte e três, aos vinte e cinco e aos vinte e oito minutos do primeiro tempo. No segundo tempo enfiaram mais dois, antes de pisarem o pé no freio, como se a humilhação não já estivesse sacramentada.

No primeiro gol deles, os meus “convidados” vibraram discretamente, demonstrando algum respeito pelo anfitrião. À medida  que o massacre ia se desenhando, eles se soltavam, urrando expressões que eu desconhecia, mas que provavelmente eram de palavrões próprios dos estádios alemães, brindando, sorrindo, esmurrando a mesa e escalando meu sofá com suas patas aroamas Claro que à essa altura eu também não poderia mais manter qualquer elegância.

Senti uma profunda vontade de expulsar a vassouradas aquele esquadrão nazista, mas me contive; o amor acovarda a gente.

Só no final do jogo fizemos o nosso golzinho de honra.

Honra de Pirro, claro.

Quando o juiz apitou pela última vez e a lambança acabou no Estádio do Mineirão, a confusão começou em minha casa. Os alemães pareciam estar novamente invadindo territórios alheios em período de guerra, agitando bandeiras, tocando cornetas, subindo no sofá e gritando da janela.

Penso que a vodca e a cerveja quentes subiram à cabeça dos bárbaros que começaram a se sentir em território medieval.

Sempre ouvi dizer que o amor a tudo supera. Até aquele dia.

Orgulho próprio e sentimento de torcedor ofendido, entrei em campo. Expulsei a “alemoada” de minha casa, sem dó nem piedade, muito menos consideração ou nobreza de sentimentos.

Espírito esportivo é o cacete!

Saíram pelas ruas do Rio de Janeiro, comemorando a goleada brilhante como se estivessem em Berlim. Pedi a Gertrud que ficasse comigo, o desabafo não era extensivo a ela, mas a ingrata preferiu ser solidária com o bando de invasores. Sumiu de minha vida batendo portas, para nunca mais voltar.

Fechei a porta, abaixei a cabeça, peguei vassoura e panos de chão e me lancei ao trabalho de colocar minha casa em ordem. Desliguei imediatamente a tevê, claro, pois não havia qualquer interesse naqueles comentários.

Vez em quando ainda dou uns bordejos pelas imediações da Lapa, entrando e saindo de casas noturnas, na esperança de bater o olho naquela linda “alemoa”. Agora, que mais uma Copa do Mundo mexe com os meus sentimentos, volto a me instalar diante do aparelho, sozinho no mundo e no meu sofá preferido. A seleção brasileira está entrando em campo novamente, o coração de torcedor volta a bater forte e uma lembrança amarga, bem amarga, loura de olhos claros e cabelos escuros vem com ela e se instala em meu peito.
Do livro "Sete a um", vários autores, editoras Cousa e Dália Negra.