quinta-feira, 27 de dezembro de 2018


O presente não veio embrulhado para presente, porque não podia. Nem veio dentro de uma caixa especial, porque não cabia.

     O presente veio andando, do jeito que sabia.

     E também mugindo, mastigando, berrando, fazendo cocô pelo caminho entre o pasto e o terreiro.

     O presente era uma vaca. Melhor dizendo, uma bezerra – que é uma vaca pequenina, quando ainda menina e antes de virar novilha (que é a vaca quando já mocinha).

     A menina ganhou a vaca de presente do avô, que morava numa fazenda, onde o animal morava e deveria continuar morando.

     A menina estava fazendo sete anos. A bezerra tinha sete meses, o que significa mais ou menos a mesma idade da menina.

     Uma vaca vive entre 10 e 12 anos. Até um ano de idade, ela é uma menina-bezerra. Entre os dois e os quatro anos é novilha-mocinha. Depois, adulta-vaca, até ficar mais velha e continuar vaca até o fim dos seus dias.

     Não foi difícil para a menina entender, porque ela era uma menina; sua mãe, uma adulta; e velho já estava o seu avô.

     – Velho, não! Apenas gasto – dizia o avô.
     E todos riam.
     E a vaca mugia.
     E a vida era de uma simplicidade só.

     A princípio, a menina só visitava a fazenda do avô nas férias de fim ou de meio de ano. Mas aí começou a querer visitar o avô todo final de semana, para brincar com o seu presente.
   
 Brincar com uma vaca? Maneira de dizer.

     Mas acreditem: brincava mesmo.

   
    Para ela, a vaca era montaria.

     Era companhia.

     Para andar nos campos.

     Para a correria.

     Na Índia, a vaca é animal sagrado. Mas disto a menina não sabia. Nem queria saber.

     A menina levava a vaca à porta da casa,  para que ela conhecesse bem toda a sua família.

     A vaca levava a menina aos pastos, onde estavam os seus pais, irmãos, primos, os parentes todos, todo mundo pastando e mugindo. E, claro, fazendo muito cocô no capim.

     A menina tinha fotos da vaca na cortiça do quarto, entre as lembranças dos parentes e amigos.

     Desenhou um retrato da vaca na mochila.
  
     E falava sobre a vaca para todos os amigos e colegas de escola.
    
     Na fazenda, não era diferente. Quando a menina ficava muitos dias sem aparecer, a vaca dava plantão na porta, esperando. Os olhos de vaca, espichados e compridos na direção da estrada.

     – Ela sente saudades – dizia o avô.

     E quando a menina chegava, os três sempre saíam a passear juntos: a menina, a vaca e o avô.

     Um dia o grupo deixou de ser um trio. Velhinho, o avô partiu.

     Mas a dupla continuou unida.

     No eito, no estio, na beira do rio.

     Do rio que passava bem ao lado do pasto, silencioso, observador.

     Que observou a menina crescendo. A bezerra, a novilha, a vaca envelhecendo.

     E que banhou os olhos da menina, agora moça, durante o mergulho mais demorado, no dia em que ela percebeu que a felicidade não dura para sempre (a dor também não): a vaca partiu ao encontro do avô.

     Agora os dois estão guardados bem próximos um do outro, num pedaço de terra que se espalha entre o pasto e o rio.

     E ali a menina coloca flores, em todas as férias, e diz que é o altar sagrado que um dia será mostrado aos filhos dela.

(A menina, a vaca e o avô. Editora Positivo, 2011)


sábado, 8 de dezembro de 2018


A farinha e o sonho


O homem velho deixa a vida e a morte para trás
 Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais.
Caetano Veloso


     Sentado no batente da porta, cavoucando as unhas dos pés que se roçam nas pedras, o velho Severino, mais morte do que vida, coça com as juntas dos dedos o osso da cabeça do cachorro Capiberibe. Cheio de fome e de pulgas, o cachorro olha sem qualquer paixão para o umbuzeiro carregado de frutos e de passarinhos.
     Severino diz mais dia menos dia tudo isto se acaba, meu amigo.
     Capiberibe late para o nada.
     O animal estava para o velho como o papagaio Aruaí esteve para o grande imperador Macunaíma. Depois de acompanhar os passos do herói sem caráter e de fazer parte do seu séquito, foi encontrado um dia pelo escritor a quem relatou tudo o que se passara, antes de bater asas no rumo de Lisboa. A tribo de Macunaíma se acabara, a do velho Severino estava chegando ao fim.
     — Cadê a farinha que guardei aqui?
     O papagaio sabia conservar no silêncio as frases e feitos do herói. O cachorro também.
     O calor provoca coceiras em Capiberibe e ensopa de suor o peito de Severino. Ele pede a Deus que mande chuva bem forte, daquelas que parecem derrubar o mundo, água limpa escorrendo pela cumeeira, cada pingo enchendo um pote. Cadê os raios que desciam em disparada, dançando feito minhocas luminosas e tontas? E o barulho que se ouvia por trás da serra, quando pipocavam os trovões, enquanto o muque forte empurrava para lá e para cá a pá de madeira na casa de farinha?
     — Quem sumiu com a ferramenta de trabalho que guardei como lembrança?
     Foi antes de o progresso chegar, do veneno das latas, do barulho das motos. Quando carregava a mandioca no lombo, colocava as raízes na água fresca retirada do tanque para preparar a massa e torrar a farinha. E dividi-la com os filhos e netos e irmãos e amigos, depois encher os cestos para vender o que sobrava. Foi antes de acordar no meio da noite, sonhando com um camaleão de aço que mastigava tudo e lhe triturava as costelas.
     A miséria é a mesma quando o velho Severino apura a vista, na linha do horizonte, no rumo da capoeira, e sente bater-lhe nas faces o vento rebelde que o tropel faz circular entre as umburanas, na perseguição ao touro fugido. E vê, novamente, a boiada no caminho do curral, a água juntando golfos no alagadiço, os bem-te-vis animados no fim da tarde. Enterra a pá de mexer a mandioca no forno, massa pra lá, farinha pra cá, e depois a desenterra:
     — Vou abrir uma cova. É a parte que me cabe.
     Olha para dentro de casa, para se certificar de que não é visto por ninguém, e bota os bagos para fora:
     — Aqui pra vocês!
     Capiberibe corre atrás de um preá que circula o lajedo lá longe. Severino sente medo de ficar sozinho, de ser perturbado pelo espírito do camaleão a tocar fogo nos cestos e no paiol.
     Num tempo em que os homens eram feitos à imagem e semelhança de Deus, vivera a bonança de suas terras, mastigando farinha com rapadura, com tripa de bode, com carne de teiú assada, se fartando com abóboras e melancias, dizendo como queria e como não queria o funcionamento do mundo, com esteira na varanda, rede e água fresca na beira da estrada.
     Dormira em colchão de capim macio, tivera uma negra de peitos e bunda talhados pelo criador para limpar os cabelos, arear os pés, catar piolhos e carrapatos. Sobretudo, para cavoucar suas unhas.
     — Naquele tempo, eu que mandava chover. Depois eu que mandava parar.
     A filha Maria retorna do tanque com o cesto de roupas na cabeça.
     — Falando sozinho, meu pai?
     – Com o cachorro.
     Maria sorri e pisa no alpendre, cantando:
     “Não é cova grande, é cova medida/É a terra que querias ver dividida...”.
     Capiberibe acompanha os passos dela, na esperança de uma sobra de osso na cozinha. Ouvir conversa de velho caduco não enche barriga.
     Cobertor, alpercatas de correia, roupa lavada tinha. O que lhe faltava, então? A filha fazia o possível; mas a vida, não. A vida não tem compromissos. Tivera dias de sonhos, touro na unha, cercas refeitas.
     É assim mesmo, fala pros seus botões, na ausência do cachorro:
     — E depois eu mandava que a chuva chovesse novamente. Para logo ordenar que ela estancasse.
     Sonho ruim vem e muda o verbo do princípio. Vida vem e leva a gente. Vida vem e lava a gente. Vida vem e leva tudo. Como na enxurrada, animais morrendo afogados, mulher e meninos gemendo. O velho vira a moringa e toma uma talagada de aguardente. Começa a dançar no meio do quintal. Capiberibe se anima e morde os seus calcanhares.
     “É a terra que querias...”
     Começa a chover e Severino interrompe a dança, cansado.
     Olha em direção ao tanque, aponta o dedo e atira com a boca — Têi! Tei! — na linha do voo da juriti. O cachorro, também ofegante, pensa em empreender busca ao pássaro imaginário, mas desiste. 
     Senta-se ao lado do velho. O velho deita-se no chão, sobre o travesseiro das lembranças.
     Vai lá longe.
     Vai morar na casa de farinha. Mandioca no lombo, forno de lenha queimando a raiz, o alimento nascendo em seus braços. Matando o porco no quintal, rodeado de netos, a mulher matando galinhas, recolhendo os ovos no ninho, meu Deus, os pequenos morros onde brotavam cactos e que não tapavam a luz do sol, os bodes, lajedos, os preás, a cabeça rodando, a chuva, a barba molhada, o nariz escorrendo, um olhar de tristeza no olhar do papagaio de Macunaíma, uma vontade louca de chorar, se entregando à lama, se mijando todo, o soluço do porco, o sangue da galinha, Maria, minha filha, está chovendo farinha, essa água que não para de cair.
     Não para.    

(Publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras e no livro "Contos da vida absurda)