terça-feira, 20 de abril de 2021

 

Flores em vida


Sei que estou no último degrau da vida, meu amor”

Nelson Cavaquinho

 

      A noite ainda discutia se ia ou não embora, mas os negociantes de frutas, legumes, peixes, frangos e bugigangas da feira da Glória já armavam as barracas, entre risadas e assovios, cantos de galo, restinho de neblina virando poeira em direção ao aterro. O homem de cabeça branca e violão no ombro escorregou pelas cordilheiras de paralelepípedos da Rua Hermenegildo de Barros e se deixou levar ladeira abaixo pela Cândido Mendes, até desembocar na Augusto Severo. Encostou o violão no poste e pegou uma talhada de melancia na barraca de Genaro, amigo desde a infância na Praça da Bandeira.

     – Melancia essa hora, meu velho?

     – Combate a ressaca, Genaro.

     – Sai dessa vida.

     – Já tentei. Essa vida é que não quer sair de mim.

     Os cabelos branquinhos, poeira da idade, estão meio desarrumados. Passa a mão e observa que também estão bastante engordurados, purpurinas da madrugada. Lembra de uma criatura a quem amou, que o chamava de cabelos de prata. Fartos e ondulados, reluziam diante do espelho, na luz esfumaçada do cabaré de bandidos do Largo do Estácio. Mas nem tudo que reluz é ouro e a criatura o trocou um dia por um moço requintado, de bigodinho desenhado e cabelos pretos, feito as asas da graúna, tratados na brilhantina Glostora.

     – Me senti um palhaço, Genaro.

     Se já não bebesse bastante, teria começado a beber naquele momento. Doses de angústia depois, fez um samba que dizia assim:

 

                                               “Sei que é doloroso um palhaço

Se afastar do palco por alguém

Volta, que a platéia te reclama

Sei que choras, palhaço

Por alguém que não te ama...”

 

     – Fiz? Fiz. E esse eu sei que não vendi a filho da puta nenhum.

     A vendedora de flores também é amiga. Ela escolhe uma rosa, das mais rosas e mais bonitas, corta o talo e enfia no bolso do compositor. Troca de sorrisos e carinhos, vida que segue, apruma novamente o passo e pega o caminho que não é de casa.

     Ia esquecendo o violão dormindo no poste, mas a florista o chama. Guarda a rosa na barriga do instrumento e toma o rumo da Lapa. Pouco depois está de prosa com o jovem jornalista metido a escritor que bebericava a última no pé sujo da Riachuelo, no fim de uma noitada de fechamento do jornal e das boates da Men de Sá.

     – Eu era muito jovem ainda, assim que nem você. Não tinha respeito pela vida. Nem tinha medo da morte. Foi antes de virar o disco, de virar a mesa, de virar polícia. Fui o pior soldado da história da polícia Militar do Rio de Janeiro. Comecei a vida na farda no Batalhão de Cavalaria da PM, onde fiquei sete anos. Metade em cima do cavalo, metade na prisão. Abandonava a diligência e o animal, picava a mula para o Morro de Mangueira. Jogar conversa fora e cerveja para dentro com Cartola, Carlos Cachaça, Geraldo Pereira, Zé Com Fome, Padeirinho. Para eles, eu fiz um samba assim:

 

“Quando eu piso em folhas secas

Caídas de uma mangueira

Penso na minha escola

E nos poetas da minha Estação Primeira

Nem sei quantas vezes subi o morro cantando...”

 

     Fui o hóspede mais assíduo do xadrez do quartel da Rua Evaristo da Veiga. Mas era bom pegar cana, você sabia? Se não fosse o xadrez do batalhão, eu não teria feito muito samba de sucesso. Às vezes ficava um mês confinado. Então aproveitava a tranqüilidade para compor.

– Começou a vida?

 – Maneira de dizer. Na verdade, antes de encarar o batalhão eu já havia enfrentado

outros batentes para ajudar no orçamento da família. Trabalhei em fábrica de tecidos, em  Deodoro, na função de ajudante de tirador de resíduos, e como auxiliar de eletricista no centro da cidade. Meu pai era tocador de tuba da Banda da PM. Que coisa, hein?! Tocador de tuba.

     – Ainda existe tocador de tuba?

     – Não existe mais tuba. Nem tocador.

     A prostituta de decote farto esparrama os peitos em seu ombro e beija sua testa, os lábios cheios de batom aplicado de qualquer jeito:

     – Paga um conhaque, índio?

     Nem espera pela resposta, sabe qual é. Pede o conhaque no balcão, entorna de uma vez e volta para a calçada.

– Conhece a moça?

– A moça me conhece.

Nem pegou o violão, apenas sussurrou, marcando com as pontas dos dedos na mesa:

 

 

“Não faça vontade a essa mulher

Não deixe ela fazer o que quer

Deve-se ter amizade

Mas não se deve dar liberdade...”

 

 

     – Que história é essa de índio?

     – Minha mãe era paraguaia, índia guarani. Olha os meus traços. Ainda consegue enxergar?  Índia guerreira, que areou muita panela nas cozinhas dos outros, como empregada doméstica em casas de família. Acho que está na hora de ir dormir.

     – Vai, poeta.

     – Sou cantador. Poeta é o Guilherme.

     – Então canta uma das suas com ele. Pode ser Flores em Vida?

     – Só se você prometer que não pede mais nenhuma.

     – Prometo. Mas dessa vez, com o violão.

     Além dos bares, sapatarias, papelarias e lanchonetes começavam a abrir as portas. A mesa já recebera outros notívagos e alguns madrugadores (diúvagos?) para ouvir o índio:

 

“Sei que amanhã quando eu morrer

Os meus amigos vão dizer

Que eu tinha um bom coração

Alguns até irão chorar  ...”

 

     Pára, enjoado e cansado. Toma ar, toma mais um gole e canta mais uns versos:

 

“Por isso é que eu penso assim:

Se alguém quiser fazer por mim

Que faça agora...”

 

     – Flores em Vida. Essa é uma obra-prima.

      – Bobagem. Obra-prima é aquela morena ali.

     Pouco depois desce a 21 de Abril, de braços dados com a morena obra-prima, na direção da Central do Brasil.

     Mas o caminho é longo, e pode ser feito via Praça Tiradentes. Curtos são os degraus da vida. Outros bares, novos amigos, tantas lembranças. Os trocados mastigados no bolso da calça, junto com o maço de cigarros, estão guardados para o ônibus que vai finalizar o trajeto até em casa, quando as pernas pedirem clemência.

     É quase meio-dia e alguém sugere uma rabada, com polenta e agrião, numa pensão da Rua Barão de São Félix. Dessas que permitem violão e cantoria nas mesas. A obra-prima das madrugadas na Rua Riachuelo carrega o instrumento, com a promessa de um amor vespertino no hotelzinho da Rua do Livramento. Ela está sorridente. Ele continua hospedando a tristeza que parece não ter cura. Recorre aos versos do parceiro Guilherme, para casar com sua melodia cheia de flechas sorrateiras:

 

Tire o seu sorriso do caminho

Que eu quero passar com a minha dor

Hoje pra você eu sou espinho

Espinho não machuca a flor

Eu sou errei quando juntei minha alma à sua...”

 

     Amigo tem mania de pedir música, por mais que o artista esteja indisposto. Começa o falatório: “Canta aquela que diz vou abrir a porta para você só porque é dia das mães”. “Não, não, aquela que fala fui bom pra ela, dei meu nome a ela sem saber que estava sendo traído”. A obra-prima tem bom um humor:

     – Vocês só gostam de música de corno?

     O índio velho tem a visão nublada e a memória bastante combalida. Mas no meio da noite ainda lembrava que o resto da tarde foi nos braços dela. Só não lembrava quando nem como chegou em casa, o que não tinha muita importância. A mulher de fé e paciência, companheira das horas difíceis, fez beicinho por conta do longo sumiço. Mas mesmo assim, ao sair para trabalhar, deixou café coado sobre o fogão e um prato de carne assada com batatas dentro do forno. Ao retornar, no fim do dia, o encontrou ainda na cama, estirado, ao lado do violão. A flor atirada sobre travesseiro, também sem vida.

     Botou no velho toca disco um 78 rotações, meio arranhado, com um samba-canção dos mais antigos:

 

“Quando eu morrer, deixarei minha fama

Deixarei no mundo quem me ama

As lágrimas que rolam em meu rosto

Não sabem dizer qual é o meu desgosto...”

 

     Que diabo de desgosto era esse? A companheira nunca soube. Pena que ele não estivesse mais ali, talvez pudesse contar para ela.

 

 

 

 

Dedicado à memória de Nelson Antônio da Silva, o Nelson Cavaquinho (1910-1986). As canções citadas são todas de sua autoria.

 

terça-feira, 6 de abril de 2021

 

Refresco de manga

      A gorda das fichas tinha um dente de ouro de um lado e um buraco onde deveria ter um dente, no outro canto da boca. Sorria torto, parecendo querer mostrar apenas o brilho dourado entre os lábios grossos e besuntados de batom. Perguntou minha idade, respondi que tinha dezoito. Ela disse duvido e ofereci meia verdade: dezessete. Diante do olhar debochado, eu resolvi abrir o jogo. Tenho dezesseis, mas já trabalho e já vim aqui um montão de vezes.

     A gorda perguntou quantas fichas eu queria e respondi duas. Uma de cerveja e uma para a máquina de música. Vai querer mulher? Depois, eu disse, meio que esnobando. Se der vontade. Pedi a cerveja à morena de pernas finas e entrei na fila da máquina de música. O baixinho com os cabelos cheios de brilhantina parecia o dono da casa. Estacionou a cadeira em frente à máquina e tinha bem uma dúzia de fichas na mão. Acabava a música, ele colocava outra ficha e ouvia novamente o vozeirão de Waldick Soriano:

 

O nosso amor durou somente uma semana

e eu pensando em conservá-lo a vida inteira.

Eu não pensava que tu fosses leviana,

pois leviana faz amor de brincadeira.

 

     Depois de me fazer ouvir a música não sei quantas vezes, até decorar a letra, o baixinho se atracou com uma baixinha que nem ele, de peitos grandes e rolos de plástico nos cabelos, e sumiu lá para os fundos da casa. A cerveja descia meio atravessada, pois eu não tinha costume, mas fiz questão de fazer pose de quem tem muita intimidade com o copo. Acendi um dos três cigarros que comprei a varejo no bar ao lado da casa e dei uma tragada forte, soltando rápido a fumaça para não engasgar. Coloquei a ficha na caixa de música e apertei no nome do cantor, Roberto Carlos, depois na canção entre as opções que apareciam na voz dele, Não chores mais. Aí veio, só para mim:

 

Esqueça, ele não te ama.

Esqueça, ele não te quer.

Não chores mais, não sofra assim.

 

     O baixinho voltou com as mãos cheias de fichas e me afastei da caixa de música. Não aguentava mais ouvir Waldick Soriano. Fui me sentar do outro lado da sala, num sofá todo manchado de cerveja e queimado de cigarros. O copo em uma mão e a garrafa de cerveja na outra, os olhos conferindo as mulheres que andavam de um lado para o outro, tentando enxergar a minha irmã.

     Não foi fácil reconhecer Dalva naquele cenário, com aquelas roupas, maquiada daquele jeito. Vi quando ela se aproximou, caminhando na direção da mesa onde estava um sujeito magricela de bigode fino e cara de personagem de história em quadrinhos. Minha irmã estava irreconhecível, com cigarro no bico e copo de cerveja entre os dedos de unhas vermelhas, demonstrando a maior intimidade com a casa, os hábitos e os figurantes todos. Pensei, é ela, não é ela, apertei os olhos porque a luz da sala não era boa, mas tomando cuidado para não ser reconhecido. O magricela a abraçou pela cintura e levantou a blusa vermelha que ela usava. A blusa era curta e ele levantou até a altura da pá. Aí eu vi, de relance, a mancha acima das costelas.

     Depois disso, minha irmã ainda passou várias vezes à minha frente, pegando cerveja para o sujeito de bigodinho, acendendo cigarros para ele e para ela, e toda vez que voltava para a mesa o tarado levantava a saia minúscula que ela usava e passava a mão na bunda de Dalva. Eu espichava os olhos para ver se reconhecia também a bunda de minha irmã, a mesma que eu ficava olhando pelo buraco da fechadura enquanto ela tomava banho. Dalva dava beijinhos no nariz e na testa do magricela, evitando beijar na boca. Puta não gosta de beijar na boca e o cara esquisito ainda tinha uns dentes todo arrebentados, possivelmente pelo efeito da nicotina. Se eu fosse ela, também não ia querer dar beijo na boca daquele sujeito. Minha irmã estava bonita e toda senhora de si. Para lá e para cá, ia e voltava, sem me reconhecer na quase penumbra.

     Levantei-me para comprar outra ficha e pegar outra cerveja. Quando voltei para o sofá, não tinha mais ninguém na mesa próxima, nem Dalva nem o magricela. Decidi esperar. Afinal, fiquei tanto tempo remoendo essa visita. Dei o primeiro gole na cerveja e senti que estava meio enjoado. O cigarro também ajuda no mal-estar. Acendi outro. Espichei os olhos pelos quatro cantos da sala, procurando minha irmã, que não estava em lugar nenhum. Disse não para a moça feia que se sentou ao meu lado, antes mesmo que a pobre falasse qualquer coisa. Ela se levantou e saiu dali, não parecia ter se ofendido, se encostou em outro sujeito solitário. Minha irmã devia estar no quarto com aquele traste, e isso me aborreceu.

     Sou caçula. Dalva, a irmã mais velha. Eu ainda era pequeno quando ela saiu de casa, depois de uma discussão com minha mãe e meu irmão. Anunciou que ia morar com uma amiga. Minha mãe parecia não acreditar nem um pouco na história, mas recomendou vai com Deus, sem drama nem lágrimas. Quando Dalva bateu a porta da rua, meu irmão disse vai ser puta, eu sei. Bate na boca e pede perdão, minha mãe falou. Perdão nada, vai ser puta. Meu irmão já era um rapazinho, sabia das coisas.

     Eu adorava ver minha irmã saindo do banho, uma toalha enrolada no corpo, cobrindo metade dos peitos. Uma toalha menor enrolada nos cabelos. Passava pelo corredor, onde eu jogava futebol de botão, derramando pela casa um cheiro vago de sabonete e alfazema. Vestia-se com a porta do quarto entreaberta, atirava a toalha sobre a cama e escolhia a calcinha quase sempre branca.

     Quando minha irmã retornou à sala, de mãos dadas com o esqueleto branco de desenho animado, eu me perdia na canção desconhecida da caixa de música e na voz distante do Juca, o ex-amigo que um dia quebrei a cara exatamente por causa de Dalva. Juca repetindo tua irmã é da vida, foi vista no puteiro de Laura. Puta é a tua irmã, a tua mãe e a tua avó. E tome tapas, chutes e pescoções. Mergulhei no gelo daquela noite provinciana e despertei quando ela se sentou ao meu lado, depois de se despedir do cliente.

     A voz que há tantos anos eu não ouvia: está sozinho, garotão? Oi, Dalvinha. Os olhos arregalados sob os cílios anormais. Depois o susto. Depois tristes. O que você está fazendo aqui, menino? Vim pegar mulher. Você não tem idade para isso. Eu me afogando numa lágrima que não passava pela garganta. Você não devia ter vindo aqui. Como vai a mãe? Por que me fazer passar esta vergonha? — e aí não lembro se era a voz de Dalva ou de Linda Batista, cantando Lupicínio Rodrigues. Como vai a mãe? Como vão todos? Eu tonto de cerveja morna. Não queria nunca que você me visse aqui. O gosto do cigarro na boca, a fumaça ardendo na alma. Suor e angústia, suor de angústia. Justo você.

     Não veio procurar mulher nenhuma, não foi? Você veio me ver. Como descobriu que eu trabalhava aqui? Resmunguei isto não é trabalho e ela disse claro que é, seu bobo, enxugando minhas lágrimas com a blusa, eu abraçando minha irmã com a blusa levantada, minha cabeça em seu ombro, a visão novamente próxima da mancha na pele mais marcante da minha infância.

     Se você quiser mesmo uma mulher eu falo com uma amiga que conheço bem, sei que é limpa, mas pare de chorar, disse minha irmã. Eu não queria mulher nenhuma, nem queria que ela falasse naquele tom maternal comigo, nem pensasse que seria a minha primeira vez. Restava um pouco de cerveja, bastante quente. Beba mais não, a voz delicada de Dalvinha, me abraçando e dando beijos no meu cabelo. Volte outro dia, volte no meio da tarde, para a gente conversar e tomar um refresco de manga.

     A gorda cochilava e babava em cima das fichas, restavam poucos clientes madrugadores quando me despedi. Na calçada acertei um chute violento em uma tampa de garrafa, que voou baixinho e acertou o poste do outro lado da rua. Ainda sou bom nisto, pensei. A noite é uma criança de colo. Minha irmã ainda tem aquela marca só sua nas costelas e não esqueceu que eu gosto de refresco de manga.

Do livro "Contos da vida absurda"; republicado na antologia "Contos para ler no bar", Editora Record, 2007)