Flores em vida
“Sei que estou no último degrau da vida, meu amor”
Nelson Cavaquinho
– Melancia essa hora, meu velho?
– Combate
a ressaca, Genaro.
– Sai
dessa vida.
– Já
tentei. Essa vida é que não quer sair de mim.
Os
cabelos branquinhos, poeira da idade, estão meio desarrumados. Passa a mão e
observa que também estão bastante engordurados, purpurinas da madrugada. Lembra
de uma criatura a quem amou, que o chamava de cabelos de prata. Fartos e
ondulados, reluziam diante do espelho, na luz esfumaçada do cabaré de bandidos
do Largo do Estácio. Mas nem tudo que reluz é ouro e a criatura o trocou um dia
por um moço requintado, de bigodinho desenhado e cabelos pretos, feito as asas
da graúna, tratados na brilhantina Glostora.
– Me
senti um palhaço, Genaro.
Se já não
bebesse bastante, teria começado a beber naquele momento. Doses de angústia
depois, fez um samba que dizia assim:
“Sei que é doloroso um palhaço
Se afastar do
palco por alguém
Volta, que a
platéia te reclama
Sei que
choras, palhaço
Por alguém que
não te ama...”
– Fiz? Fiz. E esse eu sei que não vendi a
filho da puta nenhum.
A vendedora de flores também é amiga. Ela
escolhe uma rosa, das mais rosas e mais bonitas, corta o talo e enfia no bolso
do compositor. Troca de sorrisos e carinhos, vida que segue, apruma novamente o
passo e pega o caminho que não é de casa.
Ia esquecendo o violão dormindo no poste,
mas a florista o chama. Guarda a rosa na barriga do instrumento e toma o rumo
da Lapa. Pouco depois está de prosa com o jovem jornalista metido a escritor
que bebericava a última no pé sujo da Riachuelo, no fim de uma noitada de
fechamento do jornal e das boates da Men de Sá.
– Eu era muito jovem ainda, assim que nem
você. Não tinha respeito pela vida. Nem tinha medo da morte. Foi antes de virar
o disco, de virar a mesa, de virar polícia. Fui o pior soldado da história da
polícia Militar do Rio de Janeiro. Comecei a vida na farda no Batalhão de
Cavalaria da PM, onde fiquei sete anos. Metade em cima do cavalo, metade na
prisão. Abandonava a diligência e o animal, picava a mula para o Morro de
Mangueira. Jogar conversa fora e cerveja para dentro com Cartola, Carlos
Cachaça, Geraldo Pereira, Zé Com Fome, Padeirinho. Para eles, eu fiz um samba
assim:
“Quando eu
piso em folhas secas
Caídas de uma
mangueira
Penso na minha
escola
E nos poetas
da minha Estação Primeira
Nem sei
quantas vezes subi o morro cantando...”
Fui o hóspede mais assíduo do xadrez do
quartel da Rua Evaristo da Veiga. Mas era bom pegar cana, você sabia? Se não
fosse o xadrez do batalhão, eu não teria feito muito samba de sucesso. Às vezes
ficava um mês confinado. Então aproveitava a tranqüilidade para compor.
–
Começou a vida?
– Maneira de dizer. Na verdade, antes de
encarar o batalhão eu já havia enfrentado
outros
batentes para ajudar no orçamento da família. Trabalhei em fábrica de tecidos,
em Deodoro, na função de ajudante de
tirador de resíduos, e como auxiliar de eletricista no centro da cidade. Meu
pai era tocador de tuba da Banda da PM. Que coisa, hein?! Tocador de tuba.
– Ainda existe tocador de tuba?
– Não existe mais tuba. Nem tocador.
A prostituta de decote farto esparrama os
peitos em seu ombro e beija sua testa, os lábios cheios de batom aplicado de
qualquer jeito:
– Paga um conhaque, índio?
Nem espera pela resposta, sabe qual é.
Pede o conhaque no balcão, entorna de uma vez e volta para a calçada.
– Conhece a moça?
– A moça me conhece.
Nem pegou o violão, apenas sussurrou, marcando com
as pontas dos dedos na mesa:
“Não faça vontade a essa
mulher
Não deixe ela
fazer o que quer
Deve-se ter
amizade
Mas não se
deve dar liberdade...”
– Que história é essa de índio?
– Minha mãe era paraguaia, índia guarani.
Olha os meus traços. Ainda consegue enxergar?
Índia guerreira, que areou muita panela nas cozinhas dos outros, como
empregada doméstica em casas de família. Acho que está na hora de ir dormir.
– Vai, poeta.
– Sou cantador. Poeta é o Guilherme.
– Então canta uma das suas com ele. Pode
ser Flores em Vida?
– Só
se você prometer que não pede mais nenhuma.
– Prometo. Mas dessa vez, com o violão.
Além dos bares, sapatarias, papelarias e
lanchonetes começavam a abrir as portas. A mesa já recebera outros notívagos e
alguns madrugadores (diúvagos?) para ouvir o índio:
“Sei
que amanhã quando eu morrer
Os meus
amigos vão dizer
Que eu
tinha um bom coração
Alguns
até irão chorar ...”
Pára, enjoado e cansado. Toma ar, toma
mais um gole e canta mais uns versos:
“Por isso é
que eu penso assim:
Se alguém quiser
fazer por mim
Que faça
agora...”
– Flores em Vida. Essa é uma obra-prima.
– Bobagem. Obra-prima é aquela morena
ali.
Pouco depois desce a 21 de Abril, de
braços dados com a morena obra-prima, na direção da Central do Brasil.
Mas
o caminho é longo, e pode ser feito via Praça Tiradentes. Curtos são os degraus
da vida. Outros bares, novos amigos, tantas lembranças. Os trocados mastigados
no bolso da calça, junto com o maço de cigarros, estão guardados para o ônibus
que vai finalizar o trajeto até em casa, quando as pernas pedirem clemência.
É quase meio-dia e alguém sugere uma
rabada, com polenta e agrião, numa pensão da Rua Barão de São Félix. Dessas que
permitem violão e cantoria nas mesas. A obra-prima das madrugadas na Rua
Riachuelo carrega o instrumento, com a promessa de um amor vespertino no
hotelzinho da Rua do Livramento. Ela está sorridente. Ele continua hospedando a
tristeza que parece não ter cura. Recorre aos versos do parceiro Guilherme,
para casar com sua melodia cheia de flechas sorrateiras:
Tire o seu sorriso
do caminho
Que eu quero
passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não
machuca a flor
Eu sou errei
quando juntei minha alma à sua...”
Amigo tem mania de pedir
música, por mais que o artista esteja indisposto. Começa o falatório: “Canta
aquela que diz vou abrir a porta para você só porque é dia das mães”. “Não,
não, aquela que fala fui bom pra ela, dei meu nome a ela sem saber que estava
sendo traído”. A obra-prima tem bom um humor:
– Vocês só gostam de música de corno?
O índio velho tem a visão nublada e a
memória bastante combalida. Mas no meio da noite ainda lembrava que o resto da
tarde foi nos braços dela. Só não lembrava quando nem como chegou em casa, o
que não tinha muita importância. A mulher de fé e paciência, companheira das
horas difíceis, fez beicinho por conta do longo sumiço. Mas mesmo assim, ao
sair para trabalhar, deixou café coado sobre o fogão e um prato de carne assada
com batatas dentro do forno. Ao retornar, no fim do dia, o encontrou ainda na
cama, estirado, ao lado do violão. A flor atirada sobre travesseiro, também sem
vida.
Botou no velho toca disco um 78 rotações,
meio arranhado, com um samba-canção dos mais antigos:
“Quando eu morrer,
deixarei minha fama
Deixarei no
mundo quem me ama
As lágrimas
que rolam em meu rosto
Não sabem
dizer qual é o meu desgosto...”
Que diabo de desgosto era esse? A
companheira nunca soube. Pena que ele não estivesse mais ali, talvez pudesse
contar para ela.
Dedicado à memória de Nelson Antônio da Silva, o Nelson Cavaquinho
(1910-1986). As canções citadas são todas de sua autoria.