quarta-feira, 19 de maio de 2021

 

Mania de outono

 

Surge a alvorada, folhas a voar

 E o inverno do meu tempo começa a brotar, a minar.

Cartola

       Outono era a moringa na mesa forrada de papel crepom. A caneca de alumínio deixava a água fresquinha, gosto de terra no fundo mais fundo, cheiro de chuva no gargalo. Vento encanado que podia constipar, menino remelento de nariz a escorrer pelos lábios. Peito apertado na cor doce e melancólica de um quase maio.

     A mania de outono eu tenho desde muito cedo. Desde bem pequeno mesmo, lá na província, onde as pessoas nem davam muita bola para essa história de estação do ano. Tinha o verão, com aquele calor medonho dos tempos sem ar-condicionado nem ventilador, e o inverno, que trazia frio de doer nos dedos e obrigar a dormir de pijama. Outono e primavera também existiam, mas a esses ninguém dava muita confiança.

     Comecei a prestar atenção no outono no dia em que a professora Alda exibiu o livrão cheio de fotos coloridas, mostrando como a natureza reagia às boas ou más influências climáticas, como se comportava diante de cada uma delas, se derretendo toda quando o outono anunciava a chegada triunfal. O papel do livro ficava mais cheiroso nas páginas que mostravam árvores se descabelando, montanhas abrindo os braços para os dentes do sol que banhavam tudo de um amarelo meio laranja avermelhado, sol que parecia vir de outro mundo e que jamais passara nem mesmo de passagem pela minha cidade.

     Peguei mania e comecei a colecionar folhas caídas na praça, sobre calçadas e muros da alameda que acompanhava o caminho da escola. E passei a observar, encantado, que aquelas folhas meio marrom amareladas disputavam em beleza com os frutos da última primavera, foram verdes sobre verdes no verão que acabou de acabar e estarão renascendo daqui a pouco, no inverno que o vento mais fino já anuncia. Fazia as contas e cálculos das transformações pelas quais deveria passar a minha vida até a explosão do próximo outono.

     Por que o declínio e a decadência? De onde tiraram as explicações encontradas no verbete do primeiro dicionário que me caiu às mãos? Até aquele dia, outono para mim era beleza e renascimento. Coloquei as impressões no poeminha outonal que fez os colegas rirem bastante e a professora condescender um “ele é sensível”. Também li para minha mãe, à noite, enquanto ela lavava pratos. Depois do ponto final, disse “vá dormir, você está cansado”, e até hoje não sei se o comentário significou uma aprovação. Mas a reação generalizada me mostrou que a compreensão do outono é para poucos.

     Quantas vezes, ainda no meu pequeno mundo, me deitei à tardinha sobre a esteira de folhas das palmeiras, da cajazeira, dos umbuzeiros? Cabeça recostada no travesseiro improvisado de outono e os olhos na impenetrável luz dos fotógrafos e dos pintores, até o sol se cansar de mim e fugir para detrás das montanhas. Logo, logo vem o inverno e eu me fecho em copas, que nem as árvores, escondo os meus frutos.

     Catei folhas na volta da escola, na ida para o trabalho, na vinda dos filhos, na despedida dos pais, sem precisar dar explicações para ninguém. Hoje não mais. Recolho apenas as que as máquinas de limpeza não enxergam, escondidas na grama da beira da piscina. Quando eles descuidam, apanho algumas no tonel de lixo. Só que pouco descuidam e os olhos de verão são fogo em brasa nos meus calcanhares.

     Declínio e decadência. O segurança chuta para longe a belíssima folha da mangueira que veio caindo, caindo e se aproximando de mim. A bota do animal quase esmaga os meus dedos, enquanto se aproxima o enfermeiro vestido de inverno, sem uma gota de luz no semblante, bordando um sorriso de falsa primavera, o mundo girando, girando e me devolvendo o outono que ele traz na pontinha da agulha.

(Do livro "Contos da vida absurda". Editora Casarão do Verbo, 2014)



sexta-feira, 14 de maio de 2021

 

O último post

      Eu poderia ter resolvido o assunto no tuíter, com menos de cem caracteres, algo como Quando vocês acabarem de ler isto aqui, eu terei acabado com tudo, mas ficaria faltando alguma coisa.

     Terei acabado com tudo. “Tudo” o quê?!

     Escrever é tão difícil quanto viver.

     No momento exato em que redijo esse post de despedida é dia trinta e um de dezembro de dois mil e vinte, quase meia-noite, e sou um dos sobreviventes recém-nascidos depois de nove meses no útero escuro de um confinamento forçado.

     (Isso ficou bom.)

     Último dia do ano e não há fogos na praia nem em volta da lagoa. O bilhete de despedida que a companheira deixou está em cima da mesa, me olhando com cara de sacana. A garrafa de vodca dá os últimos suspiros e Ivete Sangalo grita na televisão que “Vai rolar a festa, vai rolar”!

     Que festa, abestada?!

     Pego a porra do bilhete, já manchado de álcool, cinza e café, e leio pela milésima vez a frase intrigante:

     Eu vou em busca da felicidade, escritor!

     Sinto uma ponta de ironia desmoralizante nesse “escritor”. A que bosta de felicidade ela se refere? Como sair à procura da felicidade, com uma máscara de pano atravessada na cara e um vidro de álcool em gel na mão? E se ao invés de encontrar o infeliz que a tirou de mim, prometendo dias melhores, ela for encontrada pelo vírus do mal que continua por aí, à espreita?

     Dias melhores. A inocência comove.

     A faca amolada esteve ali na cozinha, o tempo inteiro, mas a ingrata esperou justo o último dia do ano para usar em minhas costas (se tivesse tempo para reescrever esta mensagem, eu mexeria nessa frase; ela está muito piegas. E “ingrata” eu não leio, nem ouço, desde as canções do Waldick Soriano).

     O celular faz um barulho esquisito e me dou conta de que deixei a moça do Tele Sexo falando sozinha; que a ligação já dura algumas horas e vai custar uma fortuna; e que ninguém vai pagar por ela, porque quando a conta chegar eu já terei partido.

     Encosto o aparelho no ouvido no momento exato em que a voz suave e derretida está dizendo que quer me ver ao vivo, “peladão, com esse pinto enorme” (segurei o riso nessa hora) e que espera que eu possa leva-la “à loucura”.

     Então me lembro do velho amigo jornalista, bêbado na mesa do Restaurante, declarando-se para a colega de trabalho:       

     “Se você gostar de pau mole, prometo leva-la à loucura”.

     Gargalhadas gerais. A moça cobrindo o rosto com as palmas das mãos (dedos abertos para acompanhar a cena). O garçom e amigo se equilibrando com a bandeja pelo corredor, contendo o riso para não entornar os chopes. O universo reconstruindo-se “sem ideal nem esperança”, porque embora faltasse Fernando Pessoa na mesa, era um tempo em que havia poesia em tudo.

     Até no pau mole.

     Prometi não pensar mais no assunto, mas o pensamento fica espetando a raiz do chifre: onde minha mulher conheceu o infeliz que a levou ao encontro da tal felicidade? Como eu, ela também ficou esses meses todos confinada. Aparentemente, a troca de mensagens durante a madrugada era com amigos próximos e alguns parentes.

     Taí o argumento que me faltava: o conto da mulher que conhece o amante na internet, enquanto o marido vê futebol, fala mal do presidente e se debate para escrever histórias em meio ao caos. Esse eu ainda não escrevi, embora outros já o tenham escrito. Só que, no meu caso, seria baseado em fatos reais.

     Mas agora não há mais tempo. Busquem na obra de outro. Por aí está cheio de escritor que, como eu, deita falação só sobre o que deu errado. Vou refletindo sobre o tema e esbarrando na pia e no fogão, enquanto ponho uma banda de pão puro para esquentar.

     “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

     Por conta dessa mania besta com a literatura, a paixão por Machado de Assis e pelo seu Brás Cubas, não fui pai nem tenho mais disposição (vamos chamar assim) para ser. Portanto, nenhum rebento a quem possa estar implorando por uma visita, nesta hora dura, e ouvindo dele a desculpa esfarrapada, porém perfeita e oportuna, de que não vem me visitar por recomendação científica.

     É que sou “grupo de risco”.

     Grupo de risco somos todos nós, baby, do nascimento ao último suspiro.

     Mas o post de despedida está tomando um caminho que eu não queria, por isso volto à moça do Tele Sexo e à última dose da vodca que me espera, feminina e generosa como só as garrafas sabem ser.

     “Fale alguma coisa”, diz a voz melosa do outro lado.

     “Estou triste e bêbado”.

     “Como você está vestido? Só de cuequinha? Hummmmm”, insiste.

     “De pijama”.

     “Estou nuinha... O que você sente, ouvindo minha voz?”

     “Cheiro de queimado! É a porra do pão...”

     Corro à cozinha e, quando volto ao telefone, escuto só o barulhinho de ligação interrompida.

     Se nem a moça do Tele Sexo me aguenta, eu é que não vou tentar.

     Desisto. Sei que amanhã não estarei mais aqui.

     E se estiver, estou perdido, porque a conta do telefone será impagável.

(Publicado na antologia "Amores confinados", Editora Bloco Narrativo, 2021)



    

segunda-feira, 3 de maio de 2021

 

O MAIS BELO PÔR DO SOL

Depois de dar uma banana para o motorista que buzinava e xingava e mordia o painel do carro, que freara a poucos passos do seu corpo magro, ele olhou para cima e atravessou a avenida em dominó, atingindo o calçadão reticulado e mergulhando os pés descalços na areia quente.

A mochila no ombro.

E ali, diante do mar, um olho nas ondas e outro no voo oblíquo da gaivota, sorrindo ao céu e à cadência da moça que mergulhava das pedras, exibindo no dorso o mais belo pôr do sol, acomodou os ossos entre o menino que jogava rescobol e o vendedor que espalhava picolés baratos e mate com limão geladinho.

E assim abriu a mochila aninhada sobre as pernas rútilas de varizes cinza, coçou a sola de um pé com a unha do outro e abraçou com as duas mãos o sanduíche de mortadela. A primeira mordida no momento exato em que a moça retornava, as gotas de água pingando dos bicos dos dois irmãos sobre o seu sanduíche. Os olhos acesos no brilho do mais lindo pôr do sol só conseguiram gaguejar:

– Quer um pedaço?

– Quero – ela disse.

Era quase noite, o dia morria ali por trás da Pedra da Gávea.

 

HERANÇA

No princípio era o verbo, doar-se absoluto, o eterno enigma, fazer e desfazer e refazer as criaturas.

No princípio o amor, os cães sem dono, a terra tida e prometida de silêncios e quereres acreditar em todas as coisas.

Então, o filho foi levado ao alto mais alto do monte e ouviu do pai, ouro nos dentes, a profecia infame e infamante

– Um dia, tudo isto será teu!

 

LUA

Eu disse coisas como é para o seu bem, você vai ficar boa, meu amor. Eu tinha faíscas nos olhos. Eu tinha fiapo nos dentes quando disse eles vão tratar muito bem de você, acompanhe os rapazes, não seja malcriada que não lhe farão nenhuma ruindade.

Eu repeti acredite em mim, meu filho, sua mãe precisava se tratar, ela estava mal, muito mal, você era pequeno, não entendia o que se passava. Ele perguntou está vendo aquela lua no céu, meu pai?, e gritou você vai me pagar muito caro.

Eu sei que fiz o que pude, o melhor que pude, por ela e por ele, por todos eles, mas a ingratidão é moeda fácil na face da terra, por isso não carrego culpas comigo e viveria duzentos anos não fosse essa luz intensa que jamais se apaga, eterna noite é a minha vida, essa abelha zunindo nos ouvidos, esse choro de mulher que não estanca, rasgando a terra e o próprio ventre.

Ele disse calma, pai, com uma doçura infinita na voz que reconheço como sendo de meu filho, não grite, não reaja, acompanhe os rapazes que eles são do bem. Repetindo, com muito carinho, eles não farão nenhuma ruindade, meu pai, você vai por bem ou por mal.

Meu filho tinha faíscas nos olhos, tinha fiapos nos dentes quando disse olhe a lua, meu pai, veja como ela está linda, e me diga se alguém precisa de testemunha mais sincera.

 

CENA DE CINEMA (1)

A câmera se aproxima do par de tênis abandonado na calçada. Surrados, bem surrados. Número trinta e nove. Um pé tem a lingueta para dentro; outro tem o cadarço ainda meio amarrado. Descalçados às pressas.

A câmera se afasta. Depois se aproxima do corpo: bermuda cáqui, camisa regata, pulseirinha de aço num punho e relógio de camelô no outro. As mãos abertas e os pés sem meias. O buraco preto ainda sangra, bem no meio da testa.

A câmera agora gruda no transeunte, única testemunha:

– Não, não levou dinheiro. Acho que não tinha um puto sequer. Só queria o tênis. Mas acabou se assustando com as buzinas.

A câmera se aproxima novamente do par de tênis. Surrados, bem surrados. Número trinta e nove.