A crooner do Norte
“De tomara-que-caia, surge a crooner do Norte / Nem aplausos
nem vaias: um silêncio de morte”. (João Bosco e Aldir Blanc)
A cadeira é bamba, mas faço um esforço e me equilibro diante do pedaço
de espelho desbotado e quebrado, onde vejo o meu rosto também desbotado e quebrado,
meus olhos desbotados e quebrados. Ao lado, as fotos do meu filho e de minha
mãe, no porta-retrato, com a frase “Meus dois amores”.
Desbotado.
E quebrado.
Ouço vozes no corredor, alguém pergunta se a crooner do Norte já chegou
e alguém responde com sorrisos. Para eles, qualquer nordestino é “do Norte”.
Não sabem que existe Nordeste ou Sudeste. Para eles, ou é nortista ou sulista.
Tem muita gente ignorante neste mundo.
Escondo a garrafa de cachaça. É vagabunda, mas mesmo assim não aceito
dividir.
“Pede à Patativa da Paraíba para cantar alguma coisinha mais animada.
Será que ela não conhece a Comadre Sebastiana? Umas músicas de arrastar o pé? O
repertório da Elba? É só choradeira de cortar os pulsos e morrer de dor de
corno?”
E os sorrisos continuam.
Ainda me lembro, Cauby: “Alguém oferece a alguém e esse alguém sabe
quem”, naquele alto-falante da Praça da Matriz, onde o mundo explodia entre as
pernas de moça pura de província.
Fecha as pernas, minha filha. Mocinha de família não se arreganha.
Abre as pernas, meu amor. Senão fica difícil.
O pai, depois do malfeito feito:
Vai embora daqui, desavergonhada!
Mas eu só ouvia o ronronar do amante, o cavanhaque no meu pescoço:
“Quem é que te cobre de beijos, satisfaz teus desejos e que tanto te
quer?”
“Quem é que esforços não mede?”
Minha mãe, que chorou antes e depois, quando pegou o neto para criar. E
eu ali a sonhar, Cauby. Não fui, um dia sequer, a Conceição. Mas só eu sei quem
foi que, tentando a subida, desceu.
O mesmo homem de cavanhaque me levou para a pensão de Dona Laura,
dizendo tratar-se de uma casa de shows. Puteiro! Da pior espécie.
A cafetina me vestia, me maquiava. Tratava-me como filha, a filha da
puta. Eu invadia a sala, triunfal:
“Um cuba-libre treme na mão fria,
ao triste strip-tease da agonia (...) Lá fora a luz do dia fere os olhos.”
E me pintei e chorei até borrar a cara com a maquiagem barata.
Estão batendo na porta, chamando a arara desafinada e embriagada.
Estou louca para mijar. Vai ser no ralo do banheiro mesmo, pois o vaso
está entupido. Esqueci de trazer calcinhas para trocar. Enfio o tomara-que-caia
velho de guerra e invado o palco. Surge a crooner do Norte, disposta a sentar a
mão na cara do primeiro infeliz desdentado que esfregar as patas em mim.
Sinto vontade de chorar com Dolores Duran, “Nosso destino quem sabe é
Deus, é Deus, é Deus. Briguei, não quero mais você, adeus, adeus, adeus”...,
até o desgraçado com os olhos vermelhos de álcool, tesão e ódio gritar “Canta
Eu não sou cachorro não, sua vaca!” E eu tentar uns passos trôpegos no palco
esburacado, enfiar o pé no taco solto e cair.
Dura é a vida da bailarina, da cantora ou da menina.
Quanta saudade de meu filho e de
minha mãe, Cauby. Quanta saudade de nós, quanta saudade de ti e de mim. E essa
porcaria de remédio com uísque que não funciona?! Já tomei um vidro de um e uma
garrafa de outro. Disseram que era tiro e queda...