quarta-feira, 29 de junho de 2022

 

A crooner do Norte

 

“De tomara-que-caia, surge a crooner do Norte / Nem aplausos

 nem vaias: um silêncio de morte”. (João Bosco e Aldir Blanc)

 

 
     Hoje eu me lembrei de você, Cauby. É que também cantei, cantei e cantei até sentir vontade de morrer, de sumir, de me enforcar no fio do microfone. Que bonito, que dramático, que patético seria. Cantei até ficar com saudade de ti e dos teus titiriris, Cauby. Até vomitar uma pedra imensa que atravancava o peito, até sentir dor e dó. Uma dó de todos nós que nos apertamos nesse camarim de subúrbio, sem pia, sem toalhas, sem água no chuveiro ou na descarga. Sem produto de maquiagem ou mesmo um sabão para retirar a maquiagem. Só a lágrima cinza a escorrer no rosário de cimento e a lavar tudo, da alma à cara.

     A cadeira é bamba, mas faço um esforço e me equilibro diante do pedaço de espelho desbotado e quebrado, onde vejo o meu rosto também desbotado e quebrado, meus olhos desbotados e quebrados. Ao lado, as fotos do meu filho e de minha mãe, no porta-retrato, com a frase “Meus dois amores”.

     Desbotado.

     E quebrado.

     Ouço vozes no corredor, alguém pergunta se a crooner do Norte já chegou e alguém responde com sorrisos. Para eles, qualquer nordestino é “do Norte”. Não sabem que existe Nordeste ou Sudeste. Para eles, ou é nortista ou sulista. Tem muita gente ignorante neste mundo.

     Escondo a garrafa de cachaça. É vagabunda, mas mesmo assim não aceito dividir.

     “Pede à Patativa da Paraíba para cantar alguma coisinha mais animada. Será que ela não conhece a Comadre Sebastiana? Umas músicas de arrastar o pé? O repertório da Elba? É só choradeira de cortar os pulsos e morrer de dor de corno?”

     E os sorrisos continuam.

     Ainda me lembro, Cauby: “Alguém oferece a alguém e esse alguém sabe quem”, naquele alto-falante da Praça da Matriz, onde o mundo explodia entre as pernas de moça pura de província.

     Fecha as pernas, minha filha. Mocinha de família não se arreganha.

     Abre as pernas, meu amor. Senão fica difícil.

     O pai, depois do malfeito feito:

     Vai embora daqui, desavergonhada!

     Mas eu só ouvia o ronronar do amante, o cavanhaque no meu pescoço:

    “Quem é que te cobre de beijos, satisfaz teus desejos e que tanto te quer?”

    “Quem é que esforços não mede?”

    Minha mãe, que chorou antes e depois, quando pegou o neto para criar. E eu ali a sonhar, Cauby. Não fui, um dia sequer, a Conceição. Mas só eu sei quem foi que, tentando a subida, desceu.

     O mesmo homem de cavanhaque me levou para a pensão de Dona Laura, dizendo tratar-se de uma casa de shows. Puteiro! Da pior espécie.

     A cafetina me vestia, me maquiava. Tratava-me como filha, a filha da puta. Eu invadia a sala, triunfal:

    “Um cuba-libre treme na mão fria, ao triste strip-tease da agonia (...) Lá fora a luz do dia fere os olhos.”

     E me pintei e chorei até borrar a cara com a maquiagem barata.

     Estão batendo na porta, chamando a arara desafinada e embriagada.

     Estou louca para mijar. Vai ser no ralo do banheiro mesmo, pois o vaso está entupido. Esqueci de trazer calcinhas para trocar. Enfio o tomara-que-caia velho de guerra e invado o palco. Surge a crooner do Norte, disposta a sentar a mão na cara do primeiro infeliz desdentado que esfregar as patas em mim.

     Sinto vontade de chorar com Dolores Duran, “Nosso destino quem sabe é Deus, é Deus, é Deus. Briguei, não quero mais você, adeus, adeus, adeus”..., até o desgraçado com os olhos vermelhos de álcool, tesão e ódio gritar “Canta Eu não sou cachorro não, sua vaca!” E eu tentar uns passos trôpegos no palco esburacado, enfiar o pé no taco solto e cair.

    Dura é a vida da bailarina, da cantora ou da menina.

    Quanta saudade de meu filho e de minha mãe, Cauby. Quanta saudade de nós, quanta saudade de ti e de mim. E essa porcaria de remédio com uísque que não funciona?! Já tomei um vidro de um e uma garrafa de outro. Disseram que era tiro e queda...

 

 


 

 

 

 

quinta-feira, 23 de junho de 2022

 

Prelúdio

(A música das ondas)

 

     Dispensou a cadeira de rodas e atravessou o portão do hospital cambaleando. O rapaz da portaria perguntou se alguém o esperava, se desejava um táxi.
     Agradeceu e disse que desejava o mar. E o mar estava logo ali, do outro lado da praça.
     O trajeto de pouco mais de um quilômetro demorou quase uma hora. Mas chegou até lá. Sentou-se na proteção de cimento entre o calçadão e a areia e se livrou das sandálias. Começou a movimentar os pés, com dificuldade; as pernas, depois de tanto tempo entrevadas, não obedeciam.

     O sol da manhã trazia um cheiro distante. Reconheceu como cheiro de vida.  

     Arreganhou as narinas para puxar o ar, que chegava arranhando. Abriu a boca, querendo engolir a maresia. O barulho dos carros, o burburinho dos passantes e os gritos dos vendedores de biscoitos, salgados e bebidas eram neutralizados pela música das ondas.

     Meu Deus, a música.

     As ondas.

     O rapaz do quiosque o cumprimentou. Os meninos que jogavam o altinho acenaram. A menina que passou com a cadeira de praia debaixo do braço sorriu para ele e foi em busca do mergulho.

     Acompanhou, emocionado, os passos compassados da menina. Há quanto tempo não via uma bunda liberta de aventais?

     O amigo dos tempos de futevôlei se abancou ao lado e respeitou o silêncio. Só abriu a boca para dizer que estava feliz com o seu retorno, depois da longa ausência.

     Apenas sorriu e tentou se levantar, mas faltou equilíbrio.

     O amigo o ajudou.

     – Vamos dançar – ele disse.

     – Sem música? – o outro perguntou.

     – Tem música. Escute.

     O garoto freou a bicicleta, olhou, não se conteve:

     – Show!

     E voltou a pedalar.