Como num quadro sacrossanto
– Deus me perdoe, mas parecia que eu estava diante do quadro da Virgem e o menino Jesus – o delegado repetia.
Na volta da praia, naquela manhã que nada prometia, os olhos dela cruzam com os olhos que a observam do outro lado da rua. Espera o sinal fechar e atravessa a pista. Ele parado. Os olhos anunciando que iriam ao seu encontro.
Ela quer perguntar quem é, de onde veio, o que faz ali? Mas antes mesmo de abrir a boca ele diz que a esperava.
– Desde quando?
– Desde cedo, quando você passou por aqui, ensolarada.
A mulher pensa em fazer um convite, mas não é preciso. O menino já caminha ao seu lado, em silêncio.
Ela segue à frente, apontando o caminho. Ele a acompanha, feito cachorro que encontra finalmente o rumo de casa. Atravessam a rua e a portaria do prédio, entram no apartamento iluminado, até que se fechem todas as cortinas. Até que caia a tarde, depois a noite, e abram um vinho, e peçam uma pizza, e outro vinho, e ela se pergunte o que está fazendo?
Ele traz na quase ausência de pelos uma inocente promessa de morte. Todos os temores que atravessam as portas e janelas e basculantes na madrugada que os envolve, a irremediável noção de pecado, a falta de noção, os dias e dias que anunciam a chegada do anjo vingador. Ela pensa que mais cedo ou mais tarde vai odiá-lo. Ele beija o ódio em sua boca, suga a cólera que escorre célere pelo pescoço e molha o peito. Lambe o pescoço dela, o vão entre os seios, a barriga que treme nas veias do umbigo, o sexo que se desmancha feito uma fruta.
– O seu veneno me embriaga – diz, com o sorriso mais falso e canalha do mundo, do jeito que ela começa a aprender a gostar.
Ele nada nas águas do seu corpo, ao mesmo tempo em que se esparrama na piscina, mergulha no sofá e se seca nos lençóis. Como se a afogasse, misturando cerveja com presunto, uvas, ovos, melancia, amassando a polpa da fruta com os lábios e deixando escorrer pelo pescoço e o peito o suco vermelho que ela trata de beber avidamente, percorrendo todos os invernos cavernosos do verão, descendo mais, querendo descer ainda mais, enquanto ele empurra sua cabeça para cima, seu corpo para o lado, e diz que vai tomar banho.
Ela não o conhece, não sabe se é serra ou serpente. E esse mundo anda tão perigoso. Ele sorri. Diz que é verdade, a mais pura das verdades, o mundo anda muito perigoso. Também não a conhece, e está morrendo de medo do que pode lhe acontecer.
– O pior, claro, sempre acontece o pior nessas ocasiões, o mundo está cheio de histórias assim – ela geme.
– Você quer que eu vá embora? – ele pergunta.
Ela responde que sim. Ele diz que não demora, e já começa a arrumar a mochila, colocando lá dentro a bermuda, a camiseta, a sandália de dedos, o livro, o caderno, a caneta, o pente, a escova de dentes e a carteira de dinheiro sem dinheiro. Assim, tudo um. A outra bermuda e a outra camiseta, únicas peças que tem duplicadas, já estão no corpo, juntamente com o tênis.
Ela observa os movimentos dele, fingindo indiferença, assobiando e fumando, como se não tivesse o coração em frangalhos. É quando ele pede um beijo de despedida, apenas um beijo, e tudo recomeça da tempestade, como uma catástrofe, uma vertigem, uma corredeira. E se pergunta quando vai aprender, será que um dia vai finalmente aprender?
Ele diz que estava mesmo na hora, já não se sente bem ali. Ela se atira nos braços dele, aos prantos, não sabe onde estava com a cabeça.
– Se você for embora, não sei o que será de mim.
Ele levanta o corpo dela, abraça-a pela cintura, carrega-a até o quarto e a atira na cama, de um jeito que ela fica sem saber se o gesto foi de carinho, de indiferença ou de repulsa.
Então ela o fotografa de diversas maneiras com a câmera do celular, dizendo que é para compor a próxima instalação que fará em Paris, que se chamará O menino nu. Em Paris, já pensou? Seu corpo em Paris. Não só sem roupas como entre os lençóis, mergulhado nos travesseiros, com a cueca nos ombros, a calcinha dela entre os dentes, e até uma selfie com ele aconchegado em seu colo, a cabeça mergulhada em seus peitos.
Ela vai até a imensa janela de vidro, de onde contempla o mar e se vê lá embaixo, na areia, o corpo ainda jovem e vigoroso, bronzeado, explodindo no biquíni minúsculo. Ali estão todos os vendedores de mate e de limão e de biscoito que cruzam o passado para lá e para cá, outros meninos tão lindos quanto o que cochila em sua cama,
Então se vê novamente voltando para casa, ainda menina, e da janela olha para trás em direção à porta, para ver se aproximando a lembrança mais amarga, aquela que o tempo tragou. Mas quem se aproxima é ele, de passagem em direção ao chuveiro, toalha enrolada na cintura, abraçando-a por trás e perguntando:
– Por que você está chorando, coração?
Ela diz que chora porque não consegue segurar o tempo. Porque a menina que um dia habitou o seu corpo está tão longe, foi embora sem se despedir. Porque as despedidas, como as do pai e da mãe em seus leitos de morte, também não valem a pena. E porque sabe que ele irá embora tão logo acabe a festa e antes mesmo que os músicos recolham os instrumentos.
Ele vai à janela e fica balançando a cabeça como se acompanhasse o movimento das ondas. Ela diz que caso ele pense na alternativa do roubo seguido de morte, não precisa revirar o quarto, desarrumar as gavetas nem quebrar objetos, pois o cofre está aberto e as joias moram na mesinha de cabeceira. Ele sorri e diz que ela é mesmo maluca, vive no passado, não sabe nada dos apavorantes amores modernos nem conhece os seus métodos. Depois sussurra:
– Não se assuste comigo, moça das cavernas, eu sou apenas um moleque carente.
– De rua? – ela pergunta.
– Das ruas – responde ele.
Depois do tradicional discurso para os gravadores, onde enfatiza “a beleza física estonteante do jovem, a letalidade do veneno utilizado e a frieza da assassina”, o delegado diz que no celular encontrado entre o colchão e a lateral da cama havia fotos inocentes, indecentes, lúdicas, cínicas, românticas e até sacras – como a que mandou fazer cópias em papel e distribuir à imprensa: o casal reproduzindo teatralmente a cena do quadro de Pompeo Batoni, em que a Virgem Mãe amamenta candidamente o menino Jesus.
(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema", Editora Faria e Silva, 2022)