segunda-feira, 19 de agosto de 2024

 Um cometa cravado em tua coxa


     – Astro de luminosidade fraca – eu disse, repetindo o mestre Aurélio. E passei o dedo lentamente sobre a tatuagem.

     – Pára – ela gemeu baixinho.

     – Dói?

     – Claro que não, seu bobo.

     Com o pé tentou fechar o dicionário que estava no meu colo. A unha do dedão roçando em minha barriga. Mudei de posição e continuei a leitura do verbete:

     – Formado por um grupo de pequenas partículas sólidas, com envoltório gasoso...

     – Que horror. Envoltório gasoso é horrível.

       ... e que gira em torno do sol em órbitas elípticas muito alongadas, nalguns casos aparentemente hiperbólicas.

     Esfregou o peito no meu ombro e arrancou o livro de minhas mãos:

      – Não é só isso. Diz também que é pessoa que aparece e desaparece rapidamente. Assim que nem eu.

      – Que nem você, que chega quando menos se espera e some quando mais se precisa. Que escurece a visão e ilumina os lençóis. Essa maldade nos lábios, esse cometa na coxa. Essa lua e esse conhaque deixam a gente falando besteira como o diabo.

     – Que lindo.

     – A última frase é um verso do Drummond.

     Arreganhou as coxas diante de mim. O cometa me encarando, desafiador. O sorriso mais bonito e mais sacana deste mundo:

     – Olha.

     – O que é isto?

     – O mundo, o mundo e o vasto mundo. Viu que também conheço Drummond?

     – Realmente é lindo o seu cometa. Mas por que aí, bem na virilha?

     – Para ficar mais pertinho do céu.

     – Posso dar um beijo nele?

     – No cometa? Você é maluco, vai queimar os lábios.

     – Deixa.

Um cometa cravado em tua coxa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

     – Astro de luminosidade fraca – eu disse, repetindo o mestre Aurélio. E passei o dedo lentamente sobre a tatuagem.

     – Pára – ela gemeu baixinho.

     – Dói?

     – Claro que não, seu bobo.

     Com o pé tentou fechar o dicionário que estava no meu colo. A unha do dedão roçando em minha barriga. Mudei de posição e continuei a leitura do verbete:

     – Formado por um grupo de pequenas partículas sólidas, com envoltório gasoso...

     – Que horror. Envoltório gasoso é horrível.

       ... e que gira em torno do sol em órbitas elípticas muito alongadas, nalguns casos aparentemente hiperbólicas.

     Esfregou o peito no meu ombro e arrancou o livro de minhas mãos:

      – Não é só isso. Diz também que é pessoa que aparece e desaparece rapidamente. Assim que nem eu.

      – Que nem você, que chega quando menos se espera e some quando mais se precisa. Que escurece a visão e ilumina os lençóis. Essa maldade nos lábios, esse cometa na coxa. Essa lua e esse conhaque deixam a gente falando besteira como o diabo.

     – Que lindo.

     – A última frase é um verso do Drummond.

     Arreganhou as coxas diante de mim. O cometa me encarando, desafiador. O sorriso mais bonito e mais sacana deste mundo:

     – Olha.

     – O que é isto?

     – O mundo, o mundo e o vasto mundo. Viu que também conheço Drummond?

     – Realmente é lindo o seu cometa. Mas por que aí, bem na virilha?

     – Para ficar mais pertinho do céu.

     – Posso dar um beijo nele?

     – No cometa? Você é maluco, vai queimar os lábios.

     – Deixa.

– Nem pensar.

     A última resposta dada enquanto se vestia, às pressas. Sufocando o astro de luminosidade fraca dentro da calça jeans.

     – Você volta?

– Um dia. São assim os cometas, não são?

(Do livro "Um cometa cravado em tua coxa", Editora Record, 2003)