sexta-feira, 29 de julho de 2016

O mais belo pôr do sol
 
 
Depois de dar uma banana para o motorista que buzinava e xingava e mordia o painel do carro, que freara a poucos passos do seu corpo magro, ele olhou para cima e atravessou a avenida em dominó, atingindo o calçadão reticulado e mergulhando os pés descalços na areia quente.

A mochila no ombro.

E ali, diante do mar, um olho nas ondas e outro no voo oblíquo da gaivota, sorrindo ao céu e à cadência da moça que mergulhava das pedras, exibindo no dorso o mais belo pôr do sol, acomodou os ossos entre o menino que jogava
frescobol e o vendedor que espalhava picolés baratos e mate com limão geladinho.

E assim abriu a mochila aninhada sobre as pernas rútilas de varizes cinza, coçou a sola de um pé com a unha do outro e abraçou com as duas mãos o sanduíche de mortadela. A primeira mordida no momento exato em que a moça retornava, as gotas de água pingando dos bicos dos dois irmãos sobre o seu sanduíche. Os olhos acesos no brilho do mais lindo pôr do sol só conseguiram gaguejar:

– Quer um pedaço?

– Quero – ela disse.

Era quase noite, o dia morria ali por trás da Pedra da Gávea.
 


terça-feira, 26 de julho de 2016


Beto Foguete

 
A banca de jornais e revistas em frente ao Passeio Público exibia a edição especial da revista Placar, com uma matéria sobre os dez gênios do futebol brasileiro, escolhidos por jornalistas, treinadores e jogadores que foram glórias no passado. O ex-craque pediu para dar uma folheada e o jornaleiro entregou a revista, de má vontade.

Estavam lá: Rivelino, Tostão, Zico, Gérson, Falcão, Carlos Alberto, Sócrates, Júnior, Ademir da Guia e Jairzinho. Nem uma linha sobre ele, nem uma fotografia. Que fizeram com a bela foto que o Jornal dos Sports deu em primeira página, no dia longínquo em que o Madureira bateu no Fluminense?

Seguiu a pé pela Rua da Lapa, até o ponto do ônibus. Embarcou no Glória–Leblon, circular, via Copacabana. O trocador olhou com cara de poucos amigos para o embrulho que ele carregava debaixo do braço.

– Não se assuste. É apenas um par de chuteiras.

O trocador respondeu com um sorrisinho amarelo:

– Pensei que fosse uma metralhadora.

– Não deixa de ser – disse Beto, orgulhoso. – Já metralhei grandes goleiros com ela.

Da janela do ônibus, do lado do motorista, avistou a Igreja da Glória. Mostrou as chuteiras e jogou um beijo respeitoso para a Virgem do Outeiro. Pediu que guiasse seus passos, seus passes e seus dribles.

– Beto Foguete é nome? – perguntou um dia um jovem repórter de rádio.

– Beto, sim. Foguete é apelido. Nunca ouviu falar em Beto Foguete, o maior centroavante que o Madureira já teve?

– Não – respondeu o rapaz, encerrando a entrevista.

– Meu azar foi só esse. Fiz carreira em time pequeno.

Ônibus circular dá a volta ao mundo. Depois de passar pelo Largo do Machado, Flamengo, Botafogo, Copacabana, Ipanema e Leblon, chegou finalmente à Gávea. Desceu perto do Jóquei e se dirigiu para o campo do Flamengo.

“Peço uma chance ao técnico. Basta um treino coletivo e eu mostro tudo. Ele deve se lembrar de mim, vai me ajudar."

Seguiu pela Bartolomeu Mitre, cabeça cheia de planos. No Largo da Memória, pegou a Rua Tubira e desembocou na Praça Nossa Senhora Auxiliadora. Nem a Santa sabe de onde os moleques surgiram, em bando, em disparada, arrebatando o embrulho e desaparecendo ao lado da Cobal. Tentou correr atrás, mas viu logo que seria perda de tempo. Sentou em frente à Churrascaria Plataforma e chorou, sentindo o cheirinho bom de picanha na brasa.

Pedir chuteiras emprestadas seria humilhante demais para quem já foi um grande craque. Melhor deixar a chance para outro dia, quando esbarrar com ela em outra esquina.
 

sexta-feira, 22 de julho de 2016


A viagem


 
     O rapaz entrou em casa como quem entra no bar. Sentou em uma cadeira e estirou as pernas sobre o tamborete. Pegou a garrafa de cachaça no móvel ao lado da mesa e um copo na bandeja cheia de copos que ficava ao lado da garrafa. Serviu-se e tomou duas doses, uma seguida da outra, depois acendeu um cigarro. A sala estava na penumbra, iluminada apenas pela luz azulada da televisão que o pai assistia. O clarão do palito de fósforo iluminou o rosto do rapaz e o pai observou que ele tinha a barba por fazer. O pai viu que os sapatos do rapaz estavam sujos, largando tufos de terra sobre o tamborete, mas não reclamou. Apenas perguntou você vai mesmo e ele disse vou.

     O pai quis saber se ele estava aborrecido com alguma coisa e ele disse que não. O pai então perguntou por que resolvera partir assim, tão de repente? Ele respondeu que era para não perder a oportunidade, o caminhão alugado pela empresa sairia de manhã bem cedo, levando todos os candidatos ao emprego. Queria aproveitar para não ser obrigado a ir depois, sozinho, ainda tendo que pagar a passagem.

     Que tipo de trabalho é esse, meu filho?, o pai quis saber.

     O rapaz não respondeu e amarrou a cara. E se serviu de mais uma dose.

     O pai insistiu, me diga ao menos onde é. Respondeu que era na capital. A contragosto. O pai perguntou ao filho se já tinha separado todos os documentos, sem esquecer identidade e carteira profissional, e ouviu um muxoxo como resposta: não sou abestalhado, meu pai. O pai disse eu sei, filho, é só uma preocupação.

     Está levando algum dinheiro?

     Estou. O pouco que tenho.

     Precisa de uma ajuda?

     De jeito nenhum. Guarde suas economias, para as necessidades.

     O pai perguntou se o filho sabia quanto ia ganhar e ele respondeu que não. Sabia ao menos se o ganho seria suficiente para as despesas? Ele respondeu que sim. Derramou mais uma dose de cachaça no copo e o pai disse pare de beber, vá se alimentar. Vá fazer essa barba e tomar um banho. Depois descansar, de manhã cedo precisa estar preparado para encarar a estrada.

     Não sou eu quem vai dirigindo, reagiu o rapaz.

     Mesmo assim, disse o pai.

     O rapaz perguntou pela mãe e o pai respondeu que estava no quarto, onde mais estaria? Melhora nenhuma?, perguntou. Melhora nenhuma, foi a resposta. O pai disse vá se despedir dela, já que você vai sair bem cedo, e o rapaz disse que preferia não se despedir. Disse não quero olhar para a mãe daquele jeito que ela está. O pai disse você é quem sabe e reparou que o filho tinha os olhos molhados. O pai se levantou para desligar a televisão e o filho observou que ele também tinha os olhos molhados.

     O pai disse vou dormir e já estava até mesmo de pijama. O rapaz desejou um bom sono. Pode aguardar que mandarei notícias. E não se preocupe com nada. O pai disse me despeço de você amanhã. O rapaz respondeu que ia madrugar.

     Não tinha importância. O pai estaria acordado.

     Bem cedo estava em pé diante do fogão, preparando café e esquentando na chapa umas bolachas que tirava do saco de papel. O rapaz acabava de colocar as roupas na sacola e penteava o cabelo diante do espelho do banheiro. O pai apontou o corte abaixo do queixo e o filho disse que fora gilete cega. O pai ofereceu uma loção pós-barba. Gosto mais de passar álcool mesmo, disse o rapaz, mas dessa vez sem qualquer impaciência.

     Quer ovos quentes, para forrar bem o estômago?, o pai quis saber. O rapaz disse que não era preciso. Aí o pai lembrou que talvez ele não conseguisse comer nada tão cedo e o rapaz disse deixe, pai, que eu me ajeito. O deixe, pai, soou de maneira carinhosa. E foi com mais carinho ainda que o pai acabou de esquentar as bolachas.

       O pai ficou olhando para o filho, enquanto ele tomava café, acendia o cigarro, entrava e saía do banheiro, conferia as peças de roupas na sacola, olhava para o quarto da mãe, parecia entrar no quarto, se afastava, bebia água do filtro que estava no canto, ao lado do fogão, olhava para o quintal e depois para as paredes, assoviava para o passarinho, coçava a cabeça do cachorro.

     O pai ficou olhando para o filho enquanto ele fechava o zíper da sacola, dizia até breve, pai, fique com Deus, e se afastava.

     E assim o homem desconhecido que bateu na porta dois dias depois encontrou o pai. Era um fim de tarde e ele tomava uma cachaça no copo que o filho gostava de usar, olhando ora para a porta por onde o filho saiu e ora para o quarto onde o filho não entrou para se despedir da mãe.

     O moço perguntou o senhor é o pai dele? Falou calmamente do acidente com o caminhão, como foi e como não foi, quem teve culpa e quem não teve, que o motorista da carreta é que descia a ladeira dirigindo desembestado, e foi falando tanta coisa que o pai não conseguia mais ouvir nem entender.

     Por fim o moço disse como o pai deveria proceder para retirar o corpo, as roupas e os documentos do filho do instituto médico legal de não sei onde. Que outro caminhão da empresa estava à disposição para trazer todos os corpos de volta, mas que o pai tinha que ir até lá tal dia e tal hora, para aproveitar o carreto.

     E do jeito que entrou, o moço saiu. Falando sem parar, agora já dizendo coisas como meus sentimentos, isso acontece, é da vida, descansou, Deus chamou, era um rapaz tão jovem, tão forte, tão bom e outras falas que o pai já não conseguia ouvir, pois só queria que ele fosse logo embora, para entrar no quarto escuro e abafado da doente e dar de uma vez por todas a notícia que estava para dar há quarenta e oito horas: o nosso filho viajou.
 

 

segunda-feira, 4 de julho de 2016


O homão e o menininho (uma fábula)

     Era uma vez um menininho muito magrinho e pequenino. Desses que não engordaram porque comeram pouco quando eram menores ainda. Desses que têm menos idade do que aparentam e são bem menores do que poderiam ser, considerando a idade que têm.

     O menininho saía de casa bem cedo, carregando uma mochila cheia de livros, cadernos e umas bolas de tênis bem velhas, encontradas num lixo qualquer. Os livros e cadernos eram para uso na escola, mas antes da aula ele parava no sinal de trânsito e sacava os instrumentos de trabalho. Toda vez que o sinal ficava vermelho o menino pulava na frente dos carros, jogando as bolas para cima e para baixo, de um lado para outro, levantando com uma mão e aparando com a outra. O menino pensava que estava oferecendo um espetáculo circense e que por isto merecia uns trocados. Alguns motoristas achavam bonitinho e engraçado e davam umas moedas para ele. Outros não davam a menor atenção, nem mesmo um sorriso.

     O menininho fazia isto porque era muito pobrezinho. Pobrezinho mesmo, que nem esse monte de menininhos que anda bestando aí pelas ruas nas grandes cidades. E era muito feinho. Magrinho, pobrezinho, feinho e desdentadinho. Tinha apenas uns dois ou três dentinhos, todos bastantes esburacados e em péssimo estado de conservação. Andava esculhambadinho que só vendo. Aquelas roupinhas esfarrapadas, com uns remendos na bundinha e nas costas, uma lástima.

     Um dia, o meninninho  vinha distraído por uma calçada, contando as moedas e planejando as futuras investidas no sinal, quando deu de cara com um homão grandalhão. Um homão grandalhão e gordão, bem barrigudão, com os dentões todos na boca. Passou a mão enorme na cabeça sujinha do menininho e perguntou:

 – Garoto, quem é teu pai?

O moleque abriu um sorrisinho bem safado e respondeu:

 – O senhor!