sexta-feira, 30 de dezembro de 2016


Traste

      –Vai lá na sala se despedir do traste do teu pai – disse minha mãe, me puxando pela orelha, torcendo a cartilagem do meu lóbulo.

     – Quando novinho eu nem sabia direito o significado da palavra; mas tinha certeza de que o meu pai não era traste, não. Minha mãe implicou muito com ele, a vida inteira. Mesmo naquele momento, ele morto mortinho, a implicância continuava, como se vê.

     Parado diante do corpo duro e estirado do meu pai, os olhos dele parecendo duas pedras de vidro, vidrados no teto, me pergunto se ele era o demônio todo que a mãe desenhava. Será? Só por que tomava cachaça, não parava em emprego nenhum, e vez em quando tinha a mania de querer bater na gente?

     Não batia, só ameaçava, quando estava com a cabeça quente e cheia de álcool. Meu pai nem sempre cumpria o que prometia, o que deixava minha mãe mais aborrecida, cobrando o conserto do fogão, a troca das telhas quebradas, o colchão novo, cadê?, cadê?

     Não havia dinheiro, não sobrava dinheiro para nada.

     “Coitado”, eu pensava.

     – Traste!  – ela dizia.

     Minha mãe não bebia cachaça, mas tinha outro vício: gostava de ouvir conversa de pai-de-santo, fazer despachos – que ela chamava de “trabalhos” – e de cantar umas cantorias estranhas, que dizia ser “pontos e cânticos”.

     Meu pai detestava essa prática, porque ele se dizia muito católico – mesmo sem jamais ter passado sequer na porta de uma igreja – e interessado nos assuntos do céu e de Deus. Quando a mãe reclamava que o pai gastava o dinheiro da gente no balcão do bar, ele retrucava:

    – Pior é gastar fazendo feitiço.

     Agora o pai está aqui, seu corpo estiradinho em minha frente, o povo rezando as rezas que pra mim são cantiga, “Com minha mãe estarei, na santa glória um dia...”, “Uma incelença, entrou no paraíso... Adeus, irmão, adeus, até o dia do juízo...”, nem de longe parecendo aquele corpo cheio de rugas e de cabelos do meu pai quando de pé no balcão da venda, onde cuspia no chão e derramava um pouco de pinga para o santo, enquanto alisava minha cabeça e perguntava se eu ia querer ganhar bananada ou bolacha fofa.

     – Os dois – eu dizia, porque o pai estava feliz e porque era domingo.

     Ele sorria e autorizava a compra. Eu quebrava a bolacha fofa no meio e envolvia a bananada com as duas bandas, fazendo um sanduíche.

     Meu pai então passava a mão peluda pela minha cabeça, de um lado pro outro, e dizia duas, três vezes pro dono da venda, com a voz a cada vez mais pastosa:

     – Esse aqui é meu filho. Você conhece ele?

     Repetia a informação e a pergunta até o moço deixar ele falando sozinho no balcão e sumir pelo interior da venda, procurando o que fazer, só para escapar da falação do meu pai.

     Aí eu me lembrava do que fui fazer ali e dizia que a mãe estava chamando para almoçar. Ele perguntava se a mãe já retornara da casa do pai-de-santo. Eu dizia que sim, e começava a rezar em silêncio, pedindo a Deus que acalmasse o coração dos dois, não permitisse briga hoje, pelo menos hoje, um dia de domingo.

     Ficava triste quando minha mãe chamava o meu pai de traste, porque eu nem sabia direito o que essa palavra queria dizer, mas tinha certeza de que traste ele não era. Nunca tive coragem de reagir, apesar de já ter sentido muita vontade, porque tinha medo que a minha mãe me batesse e também porque ela falava essas coisas, geralmente, quando o pai não estava em casa. E se ele não ouvia, que mal havia?

     Mas agora, que está estiradinho e mais morto do que nunca, que com certeza não vai reagir para começar outra briga feia com a mãe, eu acho que posso falar baixinho no seu ouvido:

     – Olha, pai, fica calmo e sereno aí. Eu nunca achei que você fosse um traste. Nunca mesmo, pai. E preciso te dizer outra coisa: eu também não gosto de pai-de-santo.
 

    

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016


No dia em que vim embora


 
     A vida de um homem se borda no amor ou no desamor. No afeto ou na indiferença. Pode ser a soma de todas as sobras, de tudo aquilo que não teve, da indelicadeza de uma mãe, o bigode de um pai, a ausência de um cachorro. Também se desenha e se borda em um diálogo assim:

— Você se apresse, que não tenho todo o tempo do mundo para ficar à sua disposição.

— Quase pronto, pai. Mas posso saber para onde vamos?

— Já disse. Para o tal do seminário.

— E por que o senhor resolveu que tenho que ir para um seminário?

— Não resolvi nada. É coisa de sua mãe. Ideia lá dela.

Meu pai falava tudo assim, de um jeito próprio, parecia escarrar e cuspir as frases, sem muito cuidado com as palavras.

      Entendi, mas fiz que não. Com o pé, fiz um carinho no cachorro, que parecia estar tão triste quanto eu. Meu pai percebeu.

— E desmonta essa cara de tristeza. Parece um bezerro a caminho da castração. Não é o fim do mundo, menino.

— Porque não é o senhor que está deixando sua casa para ir não sei para onde.

— Você não vai para não sei onde. Vai para um seminário, estudar para se tornar um homem sabido e temente a Deus.

— Grande coisa!

— Você está sendo mal-agradecido.

— Eu não queria, pai.

— Sua mãe decidiu.

— Eu sei.

— Tá decidido.

— Eu sei.

— É assim que a banda toca. São assim as coisas neste mundo.

— Vou poder levar o meu cachorro?

— Não. Eles não aceitam bicho lá.

    O sol sempre intenso naquele pedaço de mundo parecia mais intenso ainda no dia da minha partida.

     Subimos na carroceria do caminhão que nos levaria até a rodoviária da cidade mais próxima, onde tomaríamos o ônibus. Minha mãe me entregou a sacola de couro com o que chamou de “minhas coisas”: um sapato surrado, alpercatas, camisas mal engomadas, duas ou três calças curtas. O cachorro não veio. Minha mãe me deu um beijo na testa e disse secamente “se cuide”. Meu pai não disse nada. Nem eu.

     Era muito cedo ainda e fazia frio. Quando nos acomodamos nos bancos de madeira da carroceria, meu pai esfregou a mão em minha perna, para me esquentar. Mordia o lábio inferior e apertava com os dentes os fios mais compridos do bigode.

— Vai ser bom para você — ele disse.

— Fingi que não ouvi e tentei me distrair contando as árvores que passavam correndo na estrada, na direção contrária à do caminhão.

— Você vai aprender a ler, conhecer todas as histórias bonitas que existem nos livros, e vai ter comida nas horas certas.

Voltei minha atenção para a conversa dos outros homens sentados nos bancos, os companheiros de viagem. Eles fumavam, sorriam mostrando os dentes estragados e falavam sem parar de gado, de porco, de cabras, cercas e falta de água nas cacimbas.

— Vai ter roupas sempre limpas, filho. E no fim do ano vem passar as

férias em casa.

—Não venho — reagi.

— Não vem?

    Meu pai apertava mais os lábios, coçava a barba e tinha um olho que parecia tremer sem parar. Devia estar triste, nervoso, com saudades de minha mãe.

     Continuei impiedoso:

— Não venho.

— Eu busco você.

— Mas não me traz de volta. Não piso nunca mais os pés em sua casa.

No ônibus que nos levava para o seminário, ele tratou de voltar ao assunto. Eu repeti toda a malcriação.

     A paisagem era mais verde do que na estrada anterior. Uns pingos de chuva dançavam no vidro da janela. Eu via o céu, as árvores passando, e o perfil do meu pai refletindo no vidro da janela do ônibus. Ele estava triste, mas tentou novamente ser gentil:

— Pensando na morte da bezerra?

— Em meu cachorro.

— Sua mãe vai cuidar bem dele.

— Minha mãe não cuida bem de ninguém nem de nada neste mundo.

— Eu cuido dele.

— O senhor não tem tempo.

— Vou cuidar muito bem do seu cachorrinho, você vai ver. Como é o nome dele?

— Não tem. É cachorro mesmo.

— Vou cuidar muito bem de Cachorro — repetia meu pai, enquanto me entregava com a sacola de couro à recepcionista. Que me levou até o quarto onde já estavam uns quinze meninos, que me mostrou o banheiro coletivo e a toalha de banho, que tentava sorrir para mim e que me trouxe de volta até a recepção do seminário quando eu disse, aos prantos, que estava arrependido por não ter aceitado o abraço nem o beijo de despedida que o meu pai deixou parado no ar.

     Daí em diante, foi contar os dias até a chegada das primeiras férias, para ficar parado horas no portão, esperando a chegada do meu pai, os olhos parados na direção da estrada e as calças cada vez mais curtas.

     Mas quem veio foi minha mãe e disse que eu iria com ela para o período de férias em casa, que podia desmanchar a pose de enfezado e parar de esperar pelo meu pai porque ele não viria. Meu pai morreu pouco tempo depois de me deixar no seminário. Não avisaram para evitar sofrimentos desnecessários.

     Cumpri orgulhosamente minha promessa de não voltar nunca mais. Hoje, que já abandonei o seminário e me perdi no mundo, lembro de pouquíssimas coisas daqueles dias: os dentes estragados dos homens na carroceria do caminhão, o olho comprido e acho que molhado do meu pai pesando em minha nuca, enquanto eu acompanhava a recepcionista pelo corredor, e a saudade imensa que eu sentia do meu cachorro.
 
Do livro "Contos da vida absurda" (Editora Casarão do Verbo, 2014).
 

 

 

 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016


 
Bina
     Meu nome é Balbina – se é que Balbina é nome, sei lá de onde meu pai tirou isto – mas o senhor pode me chamar de Bina, como todo mundo aqui: Bina pra lá, Bina pra cá.
     Os mais educados passam boa-tarde, Bina, às vezes até Dona Bina. Os moleques assobiam, gritam Bina Doida, levantam minha saia e bagunçam meu cabelo. Uns vêm com o diabo, outros Deus que manda – como a vizinha Dona Lola, que traz a marmita quentinha mesmo sem eu pedir.
     Eu digo Deus lhe pague, Dona Lola, ela responde Amém e a vida segue, aí olho pro céu e vejo anjos batendo palmas. Vou querer mais o quê?
     Bina não tem um filho sequer que a ampare? Não. Nem sobrinhos, primos, irmãos, nada, nem homem? Deus me livre. Não tenho nem quero ter. E até que já tive, mas não prestou. Filho, até que já fiz, mas não vingou. Ô, leva eu, minha saudade, que eu também quero ir, minha saudade, quando chego na ladeira... deixa estar.
          Deixa estar, que nasci nua e estou vestida. Mais ou menos vestida. Nem sempre fui um traste, nem sempre vivi de esmolas. Areei muita panela de alumínio em casa de rico, lavei lençol sujo de sangue, toalha suja de bosta, sequei coceira, frieira e catarro de menino amarelo.
     Vou me queixa? Pra quê?
     Medo da morte? Por quê?
     Só tenho medo da vergonha, da humilhação, dos desaforos, as tripas soltando o peso, o corpo largando os pedaços, o vento carregando os sonhos. Bina é doida? Vocês que pensam.
     Tentei bolsa-escola, mas não sei ler nem escrever. Também fui no bolsa-família, mas não tinha família para apresentar. Deixa. Vim ao mundo sozinha, sozinha vou partir já, já. Nem fome, nem sede, nem frio me metem medo. Só me assusta a noite. Melhor dizendo, o vento da noite, o barulho que o vento da noite faz.
     Zuuuuummmm é o vento da noite. Nas telhas. Nos ossos. Zuuuuummmm chamando Biiiiinaaa! Cadê tu, menina?
     Era o meu pai.
     Vamos comigo, Bina, prender o gado. Vamos soltar o gado. Ordenhar as vacas. Faz um carinho na teta da vaca, filha, faz, na testa do cabritinho que ficou órfão. A mãe do cabrito morreu. A minha mãe cozinha maxixe nas panelas de barro, no fogão à lenha, meu pai secou até virar um graveto.
     Biiiiinaaa!
     Só na escola, onde entrei, aprendi que eu era Balbina – se é que Balbina é nome. Entrei, mas não fiquei. Saí pela mesma porta. Conversa difícil, palavreado, meu pai morrendo e eu aqui?
     Mãe também se foi. Foi-se o cabrito que a cabra deixou. Foi o marido, o filho, a cerca do roçado, a estrada era uma pedra atrás da outra, vista da carroceria do caminhão.
     Ficou melhor aqui. Vocês que pensam.
     Tome bronca, humilhações. Bina faz isto, faz aquilo.
     Biiiiinaaa!
     Areia panelas, lava lençol sujo de sangue, toalha suja de bosta, seca coceira, frieira e catarro de menino amarelo.
     Tinha vestido florido? Não tinha.
     Tinha passeio no domingo? Não tinha.
     Tinha direito de dormir e sonhar?
     – Biiiiinaaa! Acorda, Bina!
     Não tinha um documento sequer, mas agora tenho todos. Fui tirando, um a um, esse para ser atendida, aquele para os exames, o outro para facilitar a internação. Fui facilitando tudo. Quer identidade? Pois tome. Deite assim, assim ou assado. Deito. Enfia câmara, borracha, ferros, em cima, embaixo, nas veias, nos buracos, na alma, eu ali, Bina, faça força, enquanto me carregam pela mão, tubos arrastando, escadas, luzes, pavores, e eles todos pensando que eu não sei que já vou morrer.
     Que pensem.