No dia em que vim embora
A vida de um homem se borda no amor ou no
desamor. No afeto ou na indiferença. Pode ser a soma de todas as sobras, de
tudo aquilo que não teve, da indelicadeza de uma mãe, o bigode de um pai, a
ausência de um cachorro. Também se desenha e se borda em um diálogo assim:
— Você se apresse, que não tenho todo o tempo
do mundo para ficar à sua disposição.
— Quase pronto, pai. Mas posso saber para
onde vamos?
— Já disse. Para o tal do seminário.
— E por que o senhor resolveu que tenho que
ir para um seminário?
— Não resolvi nada. É coisa de sua mãe. Ideia
lá dela.
Meu pai
falava tudo assim, de um jeito próprio, parecia escarrar e cuspir as frases,
sem muito cuidado com as palavras.
Entendi, mas fiz que não. Com o pé, fiz um
carinho no cachorro, que parecia estar tão triste quanto eu. Meu pai percebeu.
— E desmonta essa cara de tristeza. Parece um
bezerro a caminho da castração. Não é o fim do mundo, menino.
— Porque não é o senhor que está deixando sua
casa para ir não sei para onde.
— Você não vai para não sei onde. Vai para um
seminário, estudar para se tornar um homem sabido e temente a Deus.
— Grande coisa!
— Você está sendo mal-agradecido.
— Eu não queria, pai.
— Sua mãe decidiu.
— Eu sei.
— Tá decidido.
— Eu sei.
— É assim que a banda toca. São assim as
coisas neste mundo.
— Vou poder levar o meu cachorro?
— Não. Eles não aceitam bicho lá.
O sol sempre intenso naquele pedaço de
mundo parecia mais intenso ainda no dia da minha partida.
Subimos na carroceria do caminhão que nos
levaria até a rodoviária da cidade mais próxima, onde tomaríamos o ônibus.
Minha mãe me entregou a sacola de couro com o que chamou de “minhas coisas”: um
sapato surrado, alpercatas, camisas mal engomadas, duas ou três calças curtas.
O cachorro não veio. Minha mãe me deu um beijo na testa e disse secamente “se
cuide”. Meu pai não disse nada. Nem eu.
Era muito cedo ainda e fazia frio. Quando
nos acomodamos nos bancos de madeira da carroceria, meu pai esfregou a mão em
minha perna, para me esquentar. Mordia o lábio inferior e apertava com os
dentes os fios mais compridos do bigode.
— Vai ser bom para você — ele disse.
— Fingi que
não ouvi e tentei me distrair contando as árvores que passavam correndo na
estrada, na direção contrária à do caminhão.
— Você vai aprender a ler, conhecer todas as
histórias bonitas que existem nos livros, e vai ter comida nas horas certas.
Voltei minha
atenção para a conversa dos outros homens sentados nos bancos, os companheiros
de viagem. Eles fumavam, sorriam mostrando os dentes estragados e falavam sem
parar de gado, de porco, de cabras, cercas e falta de água nas cacimbas.
— Vai ter roupas sempre limpas, filho. E no
fim do ano vem passar as
férias em
casa.
—Não venho — reagi.
— Não vem?
Meu pai apertava mais os lábios, coçava a
barba e tinha um olho que parecia tremer sem parar. Devia estar triste,
nervoso, com saudades de minha mãe.
Continuei impiedoso:
— Não venho.
— Eu busco você.
— Mas não me traz de volta. Não piso nunca
mais os pés em sua casa.
No ônibus que nos levava para o seminário,
ele tratou de voltar ao assunto. Eu repeti toda a malcriação.
A paisagem era mais verde do que na
estrada anterior. Uns pingos de chuva dançavam no vidro da janela. Eu via o
céu, as árvores passando, e o perfil do meu pai refletindo no vidro da janela
do ônibus. Ele estava triste, mas tentou novamente ser gentil:
— Pensando na morte da bezerra?
— Em meu cachorro.
— Sua mãe vai cuidar bem dele.
— Minha mãe não cuida bem de ninguém nem de
nada neste mundo.
— Eu cuido dele.
— O senhor não tem tempo.
— Vou cuidar muito bem do seu cachorrinho,
você vai ver. Como é o nome dele?
— Não tem. É cachorro mesmo.
— Vou cuidar
muito bem de Cachorro — repetia meu pai, enquanto me entregava com a sacola de
couro à recepcionista. Que me levou até o quarto onde já estavam uns quinze
meninos, que me mostrou o banheiro coletivo e a toalha de banho, que tentava
sorrir para mim e que me trouxe de volta até a recepção do seminário quando eu
disse, aos prantos, que estava arrependido por não ter aceitado o abraço nem o
beijo de despedida que o meu pai deixou parado no ar.
Daí em diante, foi contar os dias até a
chegada das primeiras férias, para ficar parado horas no portão, esperando a
chegada do meu pai, os olhos parados na direção da estrada e as calças cada vez
mais curtas.
Mas quem veio foi minha mãe e disse que eu
iria com ela para o período de férias em casa, que podia desmanchar a pose de
enfezado e parar de esperar pelo meu pai porque ele não viria. Meu pai morreu
pouco tempo depois de me deixar no seminário. Não avisaram para evitar
sofrimentos desnecessários.
Cumpri orgulhosamente minha promessa de
não voltar nunca mais. Hoje, que já abandonei o seminário e me perdi no mundo,
lembro de pouquíssimas coisas daqueles dias: os dentes estragados dos homens na
carroceria do caminhão, o olho comprido e acho que molhado do meu pai pesando
em minha nuca, enquanto eu acompanhava a recepcionista pelo corredor, e a
saudade imensa que eu sentia do meu cachorro.
Do livro "Contos da vida absurda" (Editora Casarão do Verbo, 2014).
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