quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Na janela

 
     Eles saem de casa cedo e me deixam aqui. Oito ou dez horas por dia, debruçada neste parapeito de cimento, calejando ainda mais os cotovelos enrugados.

     Ligo o rádio, estrategicamente instalado no móvel ao lado, e o noticiário dá conta de um enorme engarrafamento na Avenida Brasil, com vários carros amassados, gente ferida e até um morto na pista. Para mim, tanto faz que o mundo esteja engarrafado ou que os carros se choquem aqui ou no inferno. Mudo de estação e tenho o prazer de ouvir a voz deliciosa daquele bom menino de olhos verdes:

 

"Todo mundo homenageia

Januária na janela

Até o mar faz maré cheia

                                            Pra ficar mais perto dela."

O carteiro passa por volta das nove. É raro o dia em que não traz correspondência para esta casa. É carta para marido, para filhos, para noras e até para a empregada. Entrega os malditos envelopes que atiro no meio da sala, fechados, do jeito que chegam.

     Depois do anúncio de pasta de dentes o rádio despeja em meus ouvidos mais uma canção do Chico Buarque, das mais antigas. Uma atrás da outra:

 

"O homem da rua

Vive só por teimosia

Não encontra companhia

Mas pra casa não vai não.

Em casa a roda já mudou

Que a moda muda

A rosa é triste, a roda é muda

Em volta lá da televisão."

 

     Assim é a minha vida: uma tristeza de dar pena. Minha distração se repete, por absoluta falta de opção. Fico olhando os carros que passam, as pessoas que se arrastam, um cachorro bestão que pára em frente à janela, olha para cima, abana o rabo e vai cuidar da vida.

     Chega de Chico, mudo de estação. Ainda escuto os últimos versos de uma canção da minha infância:

 

"Eu tenho uma tesourinha

Que corta ouro e marfim

Serve também para cortar

Línguas que falam de mim."

 

     Todos estão cuidando de suas vidas nesta cidade maluca. Até o cachorro besta.

     Vez ou outra toca o telefone. Que toque. Que chame e reclame aí feito um alucinado. Sei muito bem que não toca para mim. Como também não são para mim as cartas os cartões de Natal, de viagens ou as felicitações de aniversário.

     Quem se lembra de mim neste mundo? Quem sabe do meu sofrimento nesta janela? Lembro de uma música antiga que dizia mais ou menos assim:

 

"Hoje vive a chorar

De déu em déu

E ninguém sabe

Do seu sofrimento

Naquele arranha-céu."

 

     Ninguém se lembra de mim. Nem de fora nem de dentro desta casa. Nem o marido bêbado a quem me dediquei e hoje se diverte me humilhando. Nem os filhos, os mal-agradecidos filhos, criados com abnegação e tanto sofrimento.

     Indiferença. Noras, netos, todos. Indiferença, para não dizer repuganância e desprezo.

     O noticiário do meio-dia interrompe a programação musical. Fico sabendo que a polícia acaba de invadir uma casa abandonada em São Gonçalo, perto de Niterói, e fuzilar um bando de traficantes. O bando era da favela da Rocinha e estava sendo caçado há muito tempo. Entre eles, um perigoso bandido, segundo o locutor, de apenas doze anosde idade.

     Mudo mais uma vez de estação, procurando uma daquelas emissoras que não dão notícias mas tocam músicas o tempo inteiro. O cantor dos dias de hoje, dos poucos dos dias de hoje que eu ainda suporto:

 

 

 

"As casas tão verde e rosa

Que vão passando

Ao nos ver passar.

Os dois lados da janela.

E aquela num tom de azul

Quase inexistente

Azul que não há."

 

     Crianças de todas as idades começam a ocupar a calçada do colégio. Fardinhas bem engomadas, mães, babás, esperanças. Carros atrapalhando os pedestres, baleiros, desnorteados de todo o tipo e toda idade, vadios e pipoqueiros.

     Também já fui estudante, ingênua igualzinha a vocês. Me apaixonei pela vida, li os poetas, cultivava sonhos, era tão feliz.

     A banca de revistas da esquina está sempre rodeada de gente. Uns compram o que querem e vão embora. Outros ficam parados, horas e horas, lendo e relendo as primeiras páginas dos jornais penduradas feito pelancas no açougue. Esses aí não cuidam da vida, eu penso, me comparando. Só que estão lá embaixo, olhando e mexendo, fazendo comentários sobre a queda do ministro ou o resultado do futebol. Dessa distância onde me encontro não consigo ler nem os cartazes.

 

"O amor quando acontece

A gente esquece logo

Que sofreu um dia.

Quem mandou chegar tão perto

Se era certo outro engano

Coração cigano?

Agora chora assim."

 

     Diminuo o volume do rádio e aceno para a moça de blusa vermelha que passa na calçada. Ela é tão simpática, tão distinta e elegante. Deve trabalhar aqui perto, num banco desses ou numa loja de confecções para senhoras. Já somos quase amigas de tanto que ela passa e acena ou eu aceno. Dá meu bom-dia todas as manhãs e boa-tarde todo final de dia, apesar de não fazer a menor idéia de quem eu sou. Nem imagina a razão de eu estar sempre aqui, na mesma posição, parecendo uma estátua de carne e osso. O cumprimento é mera formalidade, gentileza de rotina.

     É a maior correria aí em frente. Ninguém quer saber de perder o ônibus, mesmo sabendo que vêm outros, muitos outros. Estão certos. Tem que correr, é assim mesmo. Correr para garantir o emprego, o horário, a saúde. Quem não corre não pega o ônibus e acaba ficando como eu, inquilina do abandono.

 

"Meu sapato já furou

Meu dinheiro acabou”

 

Eu não tenho onde morar." Até que é bom ter esse ponto de ônibus bem em frente à janela. Está sempre cheio de gente e saibam ou não, queiram ou não, me fazem companhia. Cada um pagando sua pequena contribuição para o coração da Januária.

     Cantarolo, batucando com as juntas dos dedos no parapeito da janela:

 

"Minha calça se rasgou

Meu amor me abandonou

Como é que eu vou ficar?"

 

     O prato de comida resiste ao lado, alimentando as moscas. Bife frio, verduras frias e sem tempero. Por mim, apodrece mas não como. Morro à míngua, mas não como. A fome ataca, eu suporto só de pirraça.

     A empregada que eles me arranjaram não pára em casa um minuto sequer. Enche o cocho da porca velha com o que resta e resmunga uma despedida qualquer. Vai bater pernas por aí. Não mereço esse tratamento, por mais que esses infames pensem assim. Sei que não cheguei nem me permitirei chegar a esse ponto.

     De pirraça:

 

"Lá vai ela toda prosa

Vestida de verde e rosa

Parece até a Mangueira

Em dia de Carnaval.

Vai de mini minissaia

Blusa tomara-que-caia

 

Tomara mesmo que caia

Para alegrar o pessoal."

 

     A cidade está cheia de gente bonita. Dá gosto ver. Fortes, saudáveis e bonitas. Jovens e provocadoras voltando das praias, procurando os bares, a caminho dos cinemas. Desfiles e algaravias de final de tarde.

 

 

 

 

"Flechas sorrateiras

Cheias de veneno

Querem atingir

O meu coração."

 

     Merendeiras vazias tomam conta da calçada do colégio. Babás irritadas, mães mais cansadas e menos perfumadas, alguns pais enfadados que se permitem o esforço supremo de apanhar os rebentos na escola depois de um dia de trabalho. Concessões e monotonias de quase noite.

     O rádio, às vezes abaixo o volume que até me esqueço. Torno a aumentar:

 

"Quando seu moço

Nasceu meu rebento

Não era o momento

De ele arrebentar.

Já foi nascendo

Com cara de fome

Eu não tinha nem nome

Pra lhe dar."

     Começa a escurecer. Daqui a pouco a casa vai estar cheia novamente. Corredores e salas e quartos impenetráveis. Em cada cômodo, um inimigo. Sangue do sangue. O marido vai mais uma vez se embriagar diante da televisão, arrotando vantagens e falando besteiras com a nora depravada. O filho mais velho vai me carregar nos braços e me pôr na cama. Irei cantando:

 

"A minha vida

Era um palco iluminado

Eu vivia vestido de dourado

Palhaço das perdidas ilusões."

 

     Nenhuma surpresa no horizonte sombrio. Vou ficar nesse sofrimento até o diabo me carregar. Ou os miseráveis resolverem comprar uma cadeira de rodas.