Eles saem de casa cedo e me deixam aqui. Oito ou dez
horas por dia, debruçada neste parapeito de cimento, calejando ainda mais os
cotovelos enrugados.
Ligo o rádio, estrategicamente instalado
no móvel ao lado, e o noticiário dá conta de um enorme engarrafamento na
Avenida Brasil, com vários carros amassados, gente ferida e até um morto na pista.
Para mim, tanto faz que o mundo esteja engarrafado ou que os carros se choquem
aqui ou no inferno. Mudo de estação e tenho o prazer de ouvir a voz deliciosa
daquele bom menino de olhos verdes:
"Todo mundo homenageia
Januária na janela
Até o mar faz maré cheia
Pra
ficar mais perto dela."
O
carteiro passa por volta das nove. É raro o dia em que não traz correspondência
para esta casa. É carta para marido, para filhos, para noras e até para a
empregada. Entrega os malditos envelopes que atiro no meio da sala, fechados,
do jeito que chegam.
Depois do anúncio de pasta de dentes o
rádio despeja em meus ouvidos mais uma canção do Chico Buarque, das mais
antigas. Uma atrás da outra:
"O homem da rua
Vive só por teimosia
Não encontra companhia
Mas pra casa não vai não.
Em casa a roda já mudou
Que a moda muda
A rosa é triste, a roda é muda
Em volta lá da televisão."
Assim é a minha vida: uma tristeza de dar
pena. Minha distração se repete, por absoluta falta de opção. Fico olhando os
carros que passam, as pessoas que se arrastam, um cachorro bestão que pára em
frente à janela, olha para cima, abana o rabo e vai cuidar da vida.
Chega de Chico, mudo de estação. Ainda
escuto os últimos versos de uma canção da minha infância:
"Eu tenho uma tesourinha
Que corta ouro e marfim
Serve também para cortar
Línguas que falam de mim."
Todos estão cuidando de suas vidas nesta
cidade maluca. Até o cachorro besta.
Vez ou outra toca o telefone. Que toque.
Que chame e reclame aí feito um alucinado. Sei muito bem que não toca para mim.
Como também não são para mim as cartas os cartões de Natal, de viagens ou as
felicitações de aniversário.
Quem se lembra de mim neste mundo? Quem
sabe do meu sofrimento nesta janela? Lembro de uma música antiga que dizia mais
ou menos assim:
"Hoje vive a chorar
De déu em déu
E ninguém sabe
Do seu sofrimento
Naquele arranha-céu."
Ninguém se lembra de mim. Nem de fora nem de
dentro desta casa. Nem o marido bêbado a quem me dediquei e hoje se diverte me
humilhando. Nem os filhos, os mal-agradecidos filhos, criados com abnegação e
tanto sofrimento.
Indiferença. Noras, netos, todos.
Indiferença, para não dizer repuganância e desprezo.
O noticiário do meio-dia interrompe a
programação musical. Fico sabendo que a polícia acaba de invadir uma casa
abandonada em São Gonçalo, perto de Niterói, e fuzilar um bando de traficantes.
O bando era da favela da Rocinha e estava sendo caçado há muito tempo. Entre
eles, um perigoso bandido, segundo o locutor, de apenas doze anosde idade.
Mudo mais uma vez de estação, procurando
uma daquelas emissoras que não dão notícias mas tocam músicas o tempo inteiro.
O cantor dos dias de hoje, dos poucos dos dias de hoje que eu ainda suporto:
"As casas tão verde e rosa
Que vão passando
Ao nos ver passar.
Os dois lados da janela.
E aquela num tom de azul
Quase inexistente
Azul que não há."
Crianças de todas as idades começam a
ocupar a calçada do colégio. Fardinhas bem engomadas, mães, babás, esperanças.
Carros atrapalhando os pedestres, baleiros, desnorteados de todo o tipo e toda
idade, vadios e pipoqueiros.
Também já fui estudante, ingênua
igualzinha a vocês. Me apaixonei pela vida, li os poetas, cultivava sonhos, era
tão feliz.
A banca de revistas da esquina está sempre
rodeada de gente. Uns compram o que querem e vão embora. Outros ficam parados,
horas e horas, lendo e relendo as primeiras páginas dos jornais penduradas
feito pelancas no açougue. Esses aí não cuidam da vida, eu penso, me
comparando. Só que estão lá embaixo, olhando e mexendo, fazendo comentários
sobre a queda do ministro ou o resultado do futebol. Dessa distância onde me
encontro não consigo ler nem os cartazes.
"O amor quando acontece
A gente esquece logo
Que sofreu um dia.
Quem mandou chegar tão perto
Se era certo outro engano
Coração cigano?
Agora chora assim."
Diminuo o volume do rádio e aceno para a
moça de blusa vermelha que passa na calçada. Ela é tão simpática, tão distinta
e elegante. Deve trabalhar aqui perto, num banco desses ou numa loja de
confecções para senhoras. Já somos quase amigas de tanto que ela passa e acena
ou eu aceno. Dá meu bom-dia todas as manhãs e boa-tarde todo final de dia,
apesar de não fazer a menor idéia de quem eu sou. Nem imagina a razão de eu
estar sempre aqui, na mesma posição, parecendo uma estátua de carne e osso. O
cumprimento é mera formalidade, gentileza de rotina.
É a maior correria aí em frente. Ninguém
quer saber de perder o ônibus, mesmo sabendo que vêm outros, muitos outros.
Estão certos. Tem que correr, é assim mesmo. Correr para garantir o emprego, o
horário, a saúde. Quem não corre não pega o ônibus e acaba ficando como eu,
inquilina do abandono.
"Meu sapato já furou
Meu dinheiro acabou”
Eu não
tenho onde morar." Até que é bom ter esse ponto de ônibus bem em frente à
janela. Está sempre cheio de gente e saibam ou não, queiram ou não, me fazem
companhia. Cada um pagando sua pequena contribuição para o coração da Januária.
Cantarolo, batucando com as juntas dos
dedos no parapeito da janela:
"Minha calça se rasgou
Meu amor me abandonou
Como é que eu vou ficar?"
O prato de comida resiste ao lado,
alimentando as moscas. Bife frio, verduras frias e sem tempero. Por mim,
apodrece mas não como. Morro à míngua, mas não como. A fome ataca, eu suporto
só de pirraça.
A empregada que eles me arranjaram não pára
em casa um minuto sequer. Enche o cocho da porca velha com o que resta e
resmunga uma despedida qualquer. Vai bater pernas por aí. Não mereço esse
tratamento, por mais que esses infames pensem assim. Sei que não cheguei nem me
permitirei chegar a esse ponto.
De pirraça:
"Lá vai ela toda prosa
Vestida de verde e rosa
Parece até a Mangueira
Em dia de Carnaval.
Vai de mini minissaia
Blusa tomara-que-caia
Tomara mesmo que
caia
Para alegrar o pessoal."
A cidade está cheia de gente bonita. Dá
gosto ver. Fortes, saudáveis e bonitas. Jovens e provocadoras voltando das
praias, procurando os bares, a caminho dos cinemas. Desfiles e algaravias de
final de tarde.
"Flechas sorrateiras
Cheias de veneno
Querem atingir
O meu coração."
Merendeiras vazias tomam conta da calçada
do colégio. Babás irritadas, mães mais cansadas e menos perfumadas, alguns pais
enfadados que se permitem o esforço supremo de apanhar os rebentos na escola
depois de um dia de trabalho. Concessões e monotonias de quase noite.
O rádio, às vezes abaixo o volume que até
me esqueço. Torno a aumentar:
"Quando seu moço
Nasceu meu rebento
Não era o momento
De ele arrebentar.
Já foi nascendo
Com cara de fome
Eu não tinha nem nome
Pra lhe dar."
Começa a escurecer. Daqui a pouco a casa
vai estar cheia novamente. Corredores e salas e quartos impenetráveis. Em cada
cômodo, um inimigo. Sangue do sangue. O marido vai mais uma vez se embriagar
diante da televisão, arrotando vantagens e falando besteiras com a nora
depravada. O filho mais velho vai me carregar nos braços e me pôr na cama. Irei
cantando:
"A minha vida
Era um palco iluminado
Eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas
ilusões."
Nenhuma
surpresa no horizonte sombrio. Vou ficar nesse sofrimento até o diabo me
carregar. Ou os miseráveis resolverem comprar uma cadeira de rodas.
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