Eu
poderia ter evitado
Não sei como foi que me descobriram
naquele fim de mundo, entocado entre os xiquexiques, tatus pebas e preás,
escondido na cabana de um tio lá pelos arredores do Gavião.
Eu acabara de fazer um serviço difícil em
Feira de Santana, dado cabo de um empresário que vivia cercado de seguranças,
tudo polícia, e tirava uns dias para assentar a poeira e descansar os dedos.
Pouco antes, fora um sujeito envolvido com a política, desafeto do prefeito,
segundo disseram, “metido a comunista, inimigo da lei e da ordem”.
Mil novecentos e oitenta e dois foi um ano
complicado.
O sujeito que me procurou e me descobriu
durante o banho de tanque, no mesmo alagadiço onde na infância contraí ameba e
esquistossomose, se apresentou como enviado de um grupo estrangeiro “com
ramificações” no mundo todo.
– Italianos – arrotou, como se fosse o
emissário do Papa.
Pensei em dizer “Grandes merdas!”, mas não
disse nada. Aprendi, com a idade e a experiência, que quem diz tudo o que pensa
às vezes não vive nem para desdizer, e que tem horas na vida que a sabedoria
manda se fingir de doente só para ser visitado.
Olhei o céu – fazia um sol de lascar! –,
recolhi o suor com os dedos e despejei quase nos pés do mensageiro:
– E
é, rapaz?...
Arranquei um talo de capim e comecei a
chupar a cepa, sugando o líquido docinho. Outra mania que tenho desde menino.
Vi pelo jeitão que o sujeito tinha de
coçar o saco, cuspir no chão e pisar com a ponta dos pés nos espinhos, que
melhor seria economizar nos desaforos.
Banquei o santinho:
– Italianos? Tudo boa gente, né?
Sequer disse o seu nome, mas me entregou
um pedaço de papel com um endereço, dizendo que eu tinha quarenta e oito horas
para me apresentar em Salvador.
– Roupas limpas, barba bem feita e
documentos no bolso. São necessários para a emissão do passaporte.
– Passaporte?!
– O
serviço é no estrangeiro, Zé do Dedo.
O filho de uma égua sabia o meu nome. Mau
sinal.
Um amigo que tinha uma Kombi especializada
em transporte de trabalhadores rurais me deu carona até a rodoviária de Feira,
onde eu pegaria o ônibus da empresa Santana para Salvador. Tinha um radinho bem
xumbrega, ao lado do volante, sintonizado numa emissora barulhenta de Riachão
do Jacuípe. O locutor incentivava a turma a vender suas rocinhas e comprar casa
na cidade, a usar sabonete, procurar emprego em banco, jogar na loteria, beber
cerveja da Brahma.
A cada cinco ou dez minutos ele anunciava
uma música que ninguém conseguia entender o título, sempre alertando tratar-se
de “sucesso retumbante no Sul do País”. Cada uma pior do que a outra. Um cantor
fazia tremer o para-brisa com voz fininha, gritando “Cuida beeeemmm de
miiiimmmm”.
A cantora, de voz até bonita, gemia um
negócio que pedia “Me faz pequeeeeena, asa moreeeeena...”.
Um grupo, que parecia os cantores de
puteiros da minha juventude, ficava repetindo “Você não sabe mamaaaarrrrr, você
não sabe mamaaaaaarrr”. Eu ri e comentei que era engraçado, fazer uma música
para alguém que não sabia mamar, e o meu amigo me corrigiu:
– É não soube “me amar”, abestado!
– Se eu fosse bom de pontaria como sou de
ouvido, já teria morrido de fome.
Rimos. Pulei da Kombi, tomando cuidado
para não amassar a roupa nova, e fui comprar o bilhete para a capital.
Parei mais uma vez para contemplar o
belíssimo painel de Lênio Braga na parede da rodoviária, tomei um café, um
conhaque, mijei e comprei o jornal A Tarde,
para me acompanhar nos cento e poucos quilômetros. O caderno de esportes, meu
preferido, tinha uma grande matéria sobre os preparativos da Seleção Brasileira
de Futebol, que dali a alguns dias estaria embarcando para a Espanha, onde
disputaria mais uma Copa do Mundo. A
disputa anterior, na Argentina, tinha sido uma cagada só, com a seleção do Peru
abrindo as pernas para o dono da casa e empurrando o Brasil no caminho de
volta, antes da hora.
Mil novecentos e oitenta e dois foi um ano
complicado. Mas mil novecentos e setenta e oito foi muito pior.
Lembrei-me do meu filho dizendo “Um dia
quero assistir a uma Copa do Mundo, pai, me leva, pai, meu sonho é ver o Brasil
ser campeão”.
A expectativa de jornalistas, jogadores,
treinador e torcedores era que dessa vez a coisa fosse bem diferente, pois os
espanhóis são muchachos porretas e a Espanha não é nenhuma republiqueta. Sempre
quis conhecer a Espanha, desde a infância, quando tive dois amigos chamados
Pepe e Constantino, donos da padaria da rua onde eu morava e que sempre me davam
um pãozinho doce ou bolachas no fim do dia, depois que eu ajudava o pessoal a
descarregar o caminhão de lenha.
Comecei a imaginar que seria bacana se os
homens do estrangeiro trocassem o local do serviço e me mandassem para lá, em
vez de para a Itália.
Mas não foi assim.
Explicaram mais ou menos a empreitada, que
entendi mais ou menos, porque o conterrâneo encarregado de transformar em
baianês o linguajar daqueles homens parecia bastante avexado com a tarefa. Mas
deu para ficar sabendo que eu iria a Roma, não teria tempo de pedir a benção ao
Papa, de lá seguiria no dia seguinte para uma cidade chamada Turim – eu
entendia “durim” e o intérprete também – e que, ali, seria recebido pelo
cerimonial da máfia local.
Aí pulei da cadeira:
– Máfia?!
Não sei por que, mas desde menino essa
palavra me provoca arrepios.
Disseram que eu podia relaxar, que máfia
naqueles dias não tinha mais nada a ver com a máfia da minha infância. Usavam o
título apenas para impor respeito.
– Que nem coronel aqui. Ainda existe
coronel, na política ou nas fazendas? Não. Mas ainda se usa o título, para não
perder a tradição.
– Tutti buona gente! – disse o carcamano,
bigode amarelo de nicotina e uma flâmula do Vitória em cima da mesa de
trabalho.
Não gostei. Sou Bahia. Mas primeiro a
obrigação e depois a devoção. Peguei passagens e papelada, até o passaporte que,
sabe-se lá como, ficou pronto em vinte minutos. Entregaram-me uma sacola cheia
de dinheiro e me mandei para o Aeroporto Dois de Julho.
No caminho, o intermediário finalmente me
falou qual o serviço:
– Coisa de cinema, Zé do Dedo! É um
jogador de futebol de fama internacional. Tu vai virar destaque no mundo do
crime, vai pros livros e enciclopédias. Tá rebocado!
– Que jogador é esse, homem?
– Vem a ser um tal de Paulo Rossi,
pronuncia-se “Paolo”, que joga em Turim, no maior time de lá, o Juventus ou a
Juventus, cada um lá diz de um jeito. É
só o que eu sei, Zé. Lá eles te explicam direito.
– E qual é a bronca contra esse jogador?
– Não faça muitas perguntas, cabra. A
máfia não gosta de nego curioso.
Aparelho de ouvir enfiado nos ouvidos, eu
comecei a acompanhar no avião um filme que me levou novamente de volta à
infância, ao Cine Íris, quando minha irmã me carregou para ver Candelabro italiano. Senti uma puta vontade de chorar, sei lá por
que, e me lembrei de Rita Pavone cantando Mio
cuore, tu stai soffrendo, cosa posso fare per ter?
Troço bonito. E tão fácil de entender o
significado, que até eu entendia. Depois, ao redor do poste – à luz de todos os
nossos sonhos –, traduzia para os amigos e fazia um sucesso medonho”.
O sujeito de terno, gravata e tira de pano
grosso enrolado em volta do pescoço, que me recebeu no Aeroporto de Roma, me
chamou de Giuseppe Dedon e falou em criminalità,
o que me incomodou. Pedi que me levasse logo ao hotel, pois estava cansado
feito um corno.
– Corno se cansa muito? – perguntou, e eu
vi que o almofadinha falava a minha língua, estava só debochando de mim.
Dia seguinte, partimos de carro para
Turim. Ele perguntou se eu sabia manejar arma com silencioso, e eu disse que
entendia mais de revólveres do que eles de macarrão. Não sorriu. Também não fez
cara feia. Recebi credenciais para assistir ao treino dos jogadores, bem
posicionado em local de onde teria visão privilegiada do campo e de um caminho de
fuga garantida.
Algumas vezes coloquei na mira perfeita a
cabeça do atacante.
Repeti a visita mais duas ou três vezes,
pedindo ao emissário da máfia que tivesse paciência.
– Você é que sabe a hora certa de apertar
o gatilho – ele disse.
São finíssimos.
Uma hora lá ousei perguntar o que
aconteceria se eu desistisse de fazer o serviço, movido por questões religiosas
– afinal, estava tão perto do Vaticano – ou tomado de simpatia pela quase
vítima.
– Essa possibilidade não existe. Do ponto
a que você chegou, não tem volta.
Pois foi o que aconteceu: contrariando a
todos os princípios do meu ofício, me tomei de simpatia pelo jogador, um
cracaço a quem os mafiosos queriam ver pelas costas. Esqueci a tarefa e passei
a comparecer aos treinos para aplaudir os seus dribles, deslocamentos em
diagonal, chutes cheios de manha e efeito.
O jeito que encontrei foi deixar a Itália,
fugido, no dia exato em que a imprensa local noticiava a viagem da Azurra
para a campanha na Copa do Mundo daquele ano. Paolo Rossi era um dos ídolos da
equipe e da torcida. Atravessando fronteiras, cheguei à Espanha e, não
perguntem como – aprendi com a máfia a guardar certos segredos –, no primeiro
fim de semana de julho, eu estava na cidade de Barcelona, assistindo ao
espetáculo que ficou conhecido com “A tragédia de Sarriá”, vendo exatamente o
cidadão de nome Paolo Rossi acabar com o sonho do meu filho.
E
pensar que eu poderia ter evitado.
(Do livro "Contos da vida absurda", Editora Casarão do Verbo, 2014)
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