CADERNO DE RASCUNHOS
– Amanhã serei passado!
E foi para casa disposto a passar a vida a limpo.
Atirou pela janela do décimo andar o caderno de rascunhos que sempre fora e caiu desarrumado na calçada. No dia seguinte, os seus pedaços tinham sido levados pelo vento.
O que sempre acontece com as anotações sem importância.
ANÚNCIO
Com o panfletinho da vidente amassado entre os dedos, Dorinha subiu as escadarias do sobrado na Rua da Passagem, a boca seca, o peito disparado.
– Estive aqui há uma semana, madame. O anúncio promete trazer o amor de volta em três dias.
A profissional não se abalou:
– Paciência, filha. Você não tinha me dito que o moço era marinheiro.
AS HORAS
Quartinho da Rua de Santana. Ele, na janela, contempla o imenso relógio da Central. Ela se veste às pressas, olho no reloginho de pulso.
– Nem um beijo?
– Eu, hein?! Quer sexo ou amor?
Durante o conhaque no pé-sujo, ele promete que nunca mais. Ela diz "volte sempre" e some em direção à Praça Onze.
ESPELHO
Manhãzinha, a mãe arrastava as sandálias de couro pelo corredor.
Ficava quieto na cama, o cheiro de café coado e de aipim cozido se espalhando pela casa.
Assim ainda hoje: acha que escuta o barulhinho do couro no cimento, os aromas matinais que trazem a saudade quando pula assustado para fazer a barba.
O passado enrugado no espelho, lágrima cinza escorrendo pelos fios brancos que lhe cobrem a cara.
HERANÇA
No princípio era o verbo, doar-se absoluto, o eterno enigma, fazer e desfazer e refazer as criaturas.
No princípio o amor, os cães sem dono, a terra tida e prometida de silêncios e quereres acreditar em todas as coisas.
Então, o filho foi levado ao alto mais alto do monte e ouviu do pai, ouro nos dentes, a profecia infame e infamante
– Um dia, tudo isto será teu!
(Do livro "Cenas de cinema – conto em gotas". Myrrha, 2011)