terça-feira, 21 de novembro de 2017


CADERNO DE RASCUNHOS
 
– Amanhã serei passado!

E foi para casa disposto a passar a vida a limpo.

Atirou pela janela do décimo andar o caderno de rascunhos que sempre fora e caiu desarrumado na calçada. No dia seguinte, os seus pedaços tinham sido levados pelo vento.

O que sempre acontece com as anotações sem importância.




ANÚNCIO
Com o panfletinho da vidente amassado entre os dedos, Dorinha subiu as escadarias do sobrado na Rua da Passagem, a boca seca, o peito disparado.

– Estive aqui há uma semana, madame. O anúncio promete trazer o amor de volta em três dias.

A profissional não se abalou:

– Paciência, filha. Você não tinha me dito que o moço era marinheiro.



AS HORAS

Quartinho da Rua de Santana. Ele, na janela, contempla o imenso relógio da Central. Ela se veste às pressas, olho no reloginho de pulso.

– Nem um beijo?

– Eu, hein?! Quer sexo ou amor?

Durante o conhaque no pé-sujo, ele promete que nunca mais. Ela diz "volte sempre" e some em direção à Praça Onze.


 
ESPELHO
 

Manhãzinha, a mãe arrastava as sandálias de couro pelo corredor.

Ficava quieto na cama, o cheiro de café coado e de aipim cozido se espalhando pela casa.

Assim ainda hoje: acha que escuta o barulhinho do couro no cimento, os aromas matinais que trazem a saudade quando pula assustado para fazer a barba.

O passado enrugado no espelho, lágrima cinza escorrendo pelos fios brancos que lhe cobrem a cara.


 
HERANÇA
 

No princípio era o verbo, doar-se absoluto, o eterno enigma, fazer e desfazer e refazer as criaturas.

No princípio o amor, os cães sem dono, a terra tida e prometida de silêncios e quereres acreditar em todas as coisas.

Então, o filho foi levado ao alto mais alto do monte e ouviu do pai, ouro nos dentes, a profecia infame e infamante

– Um dia, tudo isto será teu!
(Do livro "Cenas de cinema – conto em gotas". Myrrha, 2011)

 
 
 
 

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