Mangas
vermelhas
Luís Pimentel
Marcaram encontro para o fim da tarde e
pegaram o caminho da chácara. Pararam diante do muro, logo depois do portão
principal, no trecho onde sabiam que havia alguns tijolos quebrados. Ali seria
mais fácil escalar. Ficaram um tempo escondidos atrás do juazeiro grande que
tinha em frente à propriedade, contando o tempo para agirem logo depois que o
Seu Bonifácio fosse para o armazém e o caseiro se embrenhasse lá pelos fundos,
a cuidar dos porcos.
O magrinho usava a camisa de pano
remendada no peito e abotoada até o pescoço, calção e tênis. O de cabeça
raspada vestia camiseta surrada, calção e sandálias de dedos. Carregava uma
sacola de pano debaixo do braço.
– Você está parecendo um sacristão de
igreja, com essa camisa fechada até a garganta, como se estivesse se
enforcando. E ainda por cima remendada! – disse o careca, rindo do magrinho.
– Remendada, porém limpa – reagiu o outro.
– Pior é essa tua cabeça raspada. Parece mais um moleque de rua. Quem fez isso?
– Minha mãe. Tinha piolho – respondeu ele,
entregando a sacola. – Toma. Já sabe o que fazer, não é?
– Por que eu tenho que pular o muro de
novo? Por que dessa vez não pula você? – perguntou o que parecia um sacristão.
– Porque você tá de tênis.
– Por que você nunca vem de tênis?
– O meu tá rasgado.
– Sei. Muito espertinho é o que você é.
De onde estavam dava para ver o verde e
amarelo das frutas na mangueira carregada.
– Pega só as mais graúdas – recomendou o
que parecia um moleque de rua.
O que usava tênis fez cara de preocupação:
– Ouvi dizer que Seu Bonifácio contratou
um empregado novo.
– Duvido. Aquele mão-de-vaca?
– E que o sujeito passa o dia aí dentro, é
bem mal encarado e carrega uma arma de fogo na cintura.
– Bobagem. Não se esquece de amarrar bem a
boca da sacola e de jogar pro lado de cá. Recolho aqui e fico te esperando, pra
gente comer manga até cagar amarelo – disse o cabeça raspada, ajudando o outro
a escalar o muro, com a sacola pendurada no pescoço. Voltou a se esconder atrás
do pé de juá, escutando o barulho o barulho do tênis do magrinho nas folhas e
nos gravetos.
Depois de uns momentos em silêncio, ouviu
os disparos. Dois. E o barulho de alguém correndo entre galhos. Encostou-se ao
muro, para ouvir melhor, e esperou mais um pouco, coração saindo pela boca.
Quando se deu conta de que passara muito tempo sem nem sinal do amigo, disparou
na carreira a caminho de casa.
Os pais o aguardavam para jantar. Disse
que não tinha fome e foi direto para o quarto, sem tomar banho. Enrolou-se no
cobertor, escondendo bem a cabeça para não escutar nada. Cochilou e acordou no
meio da noite, molhado de suor, com febre, batendo o queixo. Continuou na cama,
na mesma posição, até o dia clarear e ouvir o choro da vizinha na sala, dizendo
para sua mãe que o menino magrinho não voltara para casa. Que vira quando os
dois amigos saíram juntos, à tardinha, carregando uma sacola de pano.
A mãe entrou no quarto, ofegante e abrindo
a janela, lhe chamando pelo nome. Ele bateu os olhos num belo pedaço de céu,
sem uma nuvem sequer. Não conseguia entender o que as duas mulheres falavam, em
meio ao choro, a mente presa na imagem que invadia e tomava conta de tudo,
trazidas pela febre ou pela imaginação.
Só via o amigo se aproximando, com um
sorriso contente que atravessava a parede ou pulava a janela, o botão da camisa
apertando o pescoço e a sacola carregada de mangas. Verdes, amarelas e até umas
vermelhas que pareciam de sangue.
(Publicado no jornal CÂNDIDO, edição de dezembro 2017)
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