quinta-feira, 21 de dezembro de 2017


Mãos dadas


 

 

     Eu tinha verdadeira adoração por ela. Um dia perguntou se eu não sentia vergonha pelo fato de ela ser puta. Eu disse você é feliz assim e isto me faz feliz, ou uma besteira dessas. Na verdade, não me incomodava nem um pouco, estava mesmo era me lixando pros seus draminhas. Ela fingiu acreditar e abriu o quebra-vento, depois balançou o cabelo prum lado e pro outro, como gostava de fazer quando saíamos de carro.

– Mas você tem vergonha de sair de mãos dadas comigo – ela disse.

– Claro que não – respondi.

– Então por que não passeia de mãos dadas comigo por aí?

     Comcei a ficar puto com aquele papo, sempre fico puto com esses papos, mas procurei não demonstrar:

– Sabe o que é? Acho a maior besteira andar por aí de mãos dadas ou de

braços dados. Não ando assim com ninguém, acho que nem sei andar desse jeito, não acerto o passo.

– Nem com a sua mulher você andava?

– Não.

     Eu disse que tinha verdadeira adoração por ela, mas que detestava aquela conversa. Sempre gostei muito de putas, mas detesto conversa de putas. Ou bebem demais e ficam escrachadas, abrindo as pernas fora de hora e dizendo palavrão, ou ficam com essa mania de mulherzinha, querendo andar de mãos dadas e de braços dados, fazer compras com a gente no shopping.

     Ela pegou uma escova enorme na bolsa e começou a ajeitar os cabelos, desarrumados pelo vento. Tinha cabelos bonitos, putas geralmente têm cabelos bonitos porque cuidam bem deles. Depois pegou o batom e começou a avermelhar os lábios.

– E à missa? Você iria à missa comigo? – perguntou.

– Claro que iria.

– Mentiroso.

– Não me chama de mentiroso. Vou à missa com você qualquer dia desses,

você pode até apostar.

– Qualquer dia desses, não. Vamos hoje – e tentou me beijar daquele jeito

que parecia beijo de cachorro, a língua para cima e para baixo, uma luva úmida no meu pescoço.

– Pára.

– Tá vendo? Além de vergonha, tem nojo de mim.

     Eu disse que não tinha nojo coisa nenhuma. Ela insistiu que eu tinha nojo dela, por isso não gostava de beijo na boca nem de lambida no pescoço.

– Já disse que não tenho nojo de você, porra! – rosnei, batendo com a mão

espalmada no painel do carro.

     Ela se assustou, me olhou até com medo, mas mesmo assim voltou ao lengalenga. Puta é foda mesmo:

– Então passeia de mãos dadas, me leva à missa, ao cinema, ao restaurante,

me dá um beijo de novela.

– Não vejo novela.

– Então me dá um beijo de cinema.

Eu disse não enche o saco e ela berrou não fala assim comigo, seu cavalo.

Perdi de vez paciência, meti o cotovelo nos peitos dela e gritei cala a boca agora, sua puta escrota. Ela disse cala a boca é o cacete e blasfemou que puta era minha mãe. Porra, logo minha mãe, a vaca não sabia mesmo com quem estava se metendo. Se tem uma coisa que não admito é que falem de minha mãe, desde pequeno, quando quebrei a cara de um colega de escola. O merdinha falou que minha mãe ficava na zona enquanto eu dormia.

     Segurei o volante do carro com uma mão e com a outra dei uma bofetada certeira. Ela chorou, xingou e gritou olha para a frente, seu débil mental. E quando olhei para a frente já estava enfiando o carro em cima do poste.

     Não foi por querer que direcionei para o poste o lado do carona. Não foi por cafajestada que salvei a minha pele e acabei com a vida da única mulher que talvez tenha amado na vida. Eu tinha, mesmo, verdadeira adoração por ela. Juro que se ainda desse tempo eu iria de mãos dadas com ela até para o inferno.
 
(Do livro "Grande homem mais ou menos", Editora Bertrand Brasil, 2007)
 

 

 

 

 

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017


Mangas vermelhas

Luís Pimentel

          Marcaram encontro para o fim da tarde e pegaram o caminho da chácara. Pararam diante do muro, logo depois do portão principal, no trecho onde sabiam que havia alguns tijolos quebrados. Ali seria mais fácil escalar. Ficaram um tempo escondidos atrás do juazeiro grande que tinha em frente à propriedade, contando o tempo para agirem logo depois que o Seu Bonifácio fosse para o armazém e o caseiro se embrenhasse lá pelos fundos, a cuidar dos porcos.

     O magrinho usava a camisa de pano remendada no peito e abotoada até o pescoço, calção e tênis. O de cabeça raspada vestia camiseta surrada, calção e sandálias de dedos. Carregava uma sacola de pano debaixo do braço.

     – Você está parecendo um sacristão de igreja, com essa camisa fechada até a garganta, como se estivesse se enforcando. E ainda por cima remendada! – disse o careca, rindo do magrinho.

     – Remendada, porém limpa – reagiu o outro. – Pior é essa tua cabeça raspada. Parece mais um moleque de rua. Quem fez isso?

     – Minha mãe. Tinha piolho – respondeu ele, entregando a sacola. – Toma. Já sabe o que fazer, não é?

     – Por que eu tenho que pular o muro de novo? Por que dessa vez não pula você? – perguntou o que parecia um sacristão.

     – Porque você tá de tênis.

     – Por que você nunca vem de tênis?

     – O meu tá rasgado.

     – Sei. Muito espertinho é o que você é.

     De onde estavam dava para ver o verde e amarelo das frutas na mangueira carregada.

     – Pega só as mais graúdas – recomendou o que parecia um moleque de rua.

     O que usava tênis fez cara de preocupação:

     – Ouvi dizer que Seu Bonifácio contratou um empregado novo.

     – Duvido. Aquele mão-de-vaca?

     – E que o sujeito passa o dia aí dentro, é bem mal encarado e carrega uma arma de fogo na cintura.

     – Bobagem. Não se esquece de amarrar bem a boca da sacola e de jogar pro lado de cá. Recolho aqui e fico te esperando, pra gente comer manga até cagar amarelo – disse o cabeça raspada, ajudando o outro a escalar o muro, com a sacola pendurada no pescoço. Voltou a se esconder atrás do pé de juá, escutando o barulho o barulho do tênis do magrinho nas folhas e nos gravetos.

     Depois de uns momentos em silêncio, ouviu os disparos. Dois. E o barulho de alguém correndo entre galhos. Encostou-se ao muro, para ouvir melhor, e esperou mais um pouco, coração saindo pela boca. Quando se deu conta de que passara muito tempo sem nem sinal do amigo, disparou na carreira a caminho de casa.

     Os pais o aguardavam para jantar. Disse que não tinha fome e foi direto para o quarto, sem tomar banho. Enrolou-se no cobertor, escondendo bem a cabeça para não escutar nada. Cochilou e acordou no meio da noite, molhado de suor, com febre, batendo o queixo. Continuou na cama, na mesma posição, até o dia clarear e ouvir o choro da vizinha na sala, dizendo para sua mãe que o menino magrinho não voltara para casa. Que vira quando os dois amigos saíram juntos, à tardinha, carregando uma sacola de pano.

     A mãe entrou no quarto, ofegante e abrindo a janela, lhe chamando pelo nome. Ele bateu os olhos num belo pedaço de céu, sem uma nuvem sequer. Não conseguia entender o que as duas mulheres falavam, em meio ao choro, a mente presa na imagem que invadia e tomava conta de tudo, trazidas pela febre ou pela imaginação.

     Só via o amigo se aproximando, com um sorriso contente que atravessava a parede ou pulava a janela, o botão da camisa apertando o pescoço e a sacola carregada de mangas. Verdes, amarelas e até umas vermelhas que pareciam de sangue.
(Publicado no jornal CÂNDIDO, edição de dezembro 2017)