quinta-feira, 26 de julho de 2018


Irmandade

     Lá em casa era assim: a gente apanhava no atacado e no varejo. No atacado, quem agia era o pai. Juntava todo mundo num canto da casa, um colado no outro para não dispersar, e descia o braço. Braço era maneira de dizer. Na verdade, ele vinha com bainha de facão, ripa de madeira, corrente de ferro com cadeado e tudo, e até chapa de aço. Uma lenha. A mãe, com menos força no muque, cuidava da ação no varejo, exemplando de um em um, apoiada no cinturão de couro, tomada de ferro elétrico, cabo de vassoura, o que lhe caísse à mão. Tudo dividido, irmãmente.
     O pai batia melhor quando bêbado. Quando chegava do bar tropeçando nas cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia ser caprichado. Pelo menos um tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos assim. A mãe já tinha outras manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de cabeça crônica, que tinha desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento físico, mais vontade de sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta dor, a pobre, suando frio na fronte. E tome esforço, na tortura da molecada; então, suava mais ainda. O suor materno era um terror para nós.
     A dor da mãe não era mania, não. Nem combustível para animar as surras. Descobrimos isso no dia em que sua cabeça explodiu e os médicos disseram pro pai que ela tinha coisa muito ruim nos miolos. O pai ficou triste. E preocupado, porque não teria mais com quem dividir a tarefa sôfrega. Tanto filho para espancar sozinho, coitado, ninguém merece. Ainda mais com a tropa se desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio taludos e dificultando o manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente, lamentou.
     Mas até que os dias difíceis não foram muitos, porque logo, logo o pai começou a inchar; primeiro as mãos e os pés, depois as maçãs do rosto, e um dia foi carregado pelos vizinhos depois de botar muito sangue pelo nariz. E não foi, como pensaram a princípio, reação violenta de nenhum de nós. Nunca fomos de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que atendeu a nossa mãezinha disse para a gente que o papai não passaria daquela noite. E não passou.
     — Cirrose — disse ele.
     — Surra bastante o fígado, não é, doutor? — eu perguntei.
     — Surra bastante tudo, meu jovem. Todos os órgãos, no atacado e no varejo — respondeu, com um sorriso de canto de boca.
     O doutor era um sujeito engraçado.
     Depois de deixar o corpo do pai no cemitério, dentro de um caixão que os vizinhos fabricaram, voltei para casa e reuni os irmãos. Na qualidade de mais velho, eu tinha que dizer algumas palavras, nem que fosse apenas para desejar boa sorte a todos na novíssima vida que nos esperava.
     Disse a eles que sem mãe, e agora sem o pai, cada um ia ter que cuidar do próprio destino. Depois de tanto tempo apanhando em casa, estava na hora de neguinho aprender a tropeçar com as próprias pernas. Pancada garantida, três vezes ao dia, nunca mais. As meninas, pelo menos, poderiam arranjar maridos que, com sorte, gostassem da pancadaria. Para os meninos, seguramente, o futuro seria mais incerto.
     Fiz a mochila de cada um, passei batom e alfazema nas moças, cortei as unhas e penteei os cabelos dos moleques, e ordenei que pegassem a trilha desejada, em busca do próprio caminho. Também ganhei a estrada, depois de trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o que havia lá dentro, lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o vigor do chute do pai.
     Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei me ajeitando aqui na obra. O trabalho é duro e à noite, depois de um dia de labuta, o corpo reage como se tivesse levado uma surra de vara: entre moído e relaxado, meio sofrido e meio orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá feito deles, se batem nos próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida. Lembro mais deles nos fins de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia um caboclo bebedor. Nesses dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe parece que aumentava.

(Do livro "Contos da vida absurda", editora Casarão do Verbo, 2014)


quarta-feira, 25 de julho de 2018


Traste
      –Vai lá na sala se despedir do traste do teu pai – disse minha mãe, me puxando pela orelha, torcendo a cartilagem do meu lóbulo.
     – Quando novinho eu nem sabia direito o significado da palavra; mas tinha certeza de que o meu pai não era traste, não. Minha mãe implicou muito com ele, a vida inteira. Mesmo naquele momento, ele morto mortinho, a implicância continuava, como se vê.
     Parado diante do corpo duro e estirado do meu pai, os olhos dele parecendo duas pedras de vidro, vidrados no teto, me pergunto se ele era o demônio todo que a mãe desenhava. Será? Só por que tomava cachaça, não parava em emprego nenhum, e vez em quando tinha a mania de querer bater na gente?
     Não batia, só ameaçava, quando estava com a cabeça quente e cheia de álcool. Meu pai nem sempre cumpria o que prometia, o que deixava minha mãe mais aborrecida, cobrando o conserto do fogão, a troca das telhas quebradas, o colchão novo, cadê?, cadê?
     Não havia dinheiro, não sobrava dinheiro para nada.
     “Coitado”, eu pensava.
     – Traste!  – ela dizia.
     Minha mãe não bebia cachaça, mas tinha outro vício: gostava de ouvir conversa de pai-de-santo, fazer despachos – que ela chamava de “trabalhos” – e de cantar umas cantorias estranhas, que dizia ser “pontos e cânticos”.
     Meu pai detestava essa prática, porque ele se dizia muito católico – mesmo sem jamais ter passado sequer na porta de uma igreja – e interessado nos assuntos do céu e de Deus. Quando a mãe reclamava que o pai gastava o dinheiro da gente no balcão do bar, ele retrucava:
    – Pior é gastar fazendo feitiço.
     Agora o pai está aqui, seu corpo estiradinho em minha frente, o povo rezando as rezas que pra mim são cantiga, “Com minha mãe estarei, na santa glória um dia...”, “Uma incelença, entrou no paraíso... Adeus, irmão, adeus, até o dia do juízo...”, nem de longe parecendo aquele corpo cheio de rugas e de cabelos do meu pai quando de pé no balcão da venda, onde cuspia no chão e derramava um pouco de pinga para o santo, enquanto alisava minha cabeça e perguntava se eu ia querer ganhar bananada ou bolacha fofa.
     – Os dois – eu dizia, porque o pai estava feliz e porque era domingo.
     Ele sorria e autorizava a compra. Eu quebrava a bolacha fofa no meio e envolvia a bananada com as duas bandas, fazendo um sanduíche.
     Meu pai então passava a mão peluda pela minha cabeça, de um lado pro outro, e dizia duas, três vezes pro dono da venda, com a voz a cada vez mais pastosa:
     – Esse aqui é meu filho. Você conhece ele?
     Repetia a informação e a pergunta até o moço deixar ele falando sozinho no balcão e sumir pelo interior da venda, procurando o que fazer, só para escapar da falação do meu pai.
     Aí eu me lembrava do que fui fazer ali e dizia que a mãe estava chamando para almoçar. Ele perguntava se a mãe já retornara da casa do pai-de-santo. Eu dizia que sim, e começava a rezar em silêncio, pedindo a Deus que acalmasse o coração dos dois, não permitisse briga hoje, pelo menos hoje, um dia de domingo.
     Ficava triste quando minha mãe chamava o meu pai de traste, porque eu nem sabia direito o que essa palavra queria dizer, mas tinha certeza de que traste ele não era. Nunca tive coragem de reagir, apesar de já ter sentido muita vontade, porque tinha medo que a minha mãe me batesse e também porque ela falava essas coisas, geralmente, quando o pai não estava em casa. E se ele não ouvia, que mal havia?
     Mas agora, que está estiradinho e mais morto do que nunca, que com certeza não vai reagir para começar outra briga feia com a mãe, eu acho que posso falar baixinho no seu ouvido:
     – Olha, pai, fica calmo e sereno aí. Eu nunca achei que você fosse um traste. Nunca mesmo, pai. E preciso te dizer outra coisa: eu também não gosto de pai-de-santo.
(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)