Traste
– Quando novinho eu nem sabia direito o significado da palavra; mas
tinha certeza de que o meu pai não era traste, não. Minha mãe implicou muito
com ele, a vida inteira. Mesmo naquele momento, ele morto mortinho, a
implicância continuava, como se vê.
Parado diante do corpo duro e estirado do meu pai, os olhos dele
parecendo duas pedras de vidro, vidrados no teto, me pergunto se ele era o
demônio todo que a mãe desenhava. Será? Só por que tomava cachaça, não parava
em emprego nenhum, e vez em quando tinha a mania de querer bater na gente?
Não batia, só ameaçava, quando estava com a cabeça quente e cheia de
álcool. Meu pai nem sempre cumpria o que prometia, o que deixava minha mãe mais
aborrecida, cobrando o conserto do fogão, a troca das telhas quebradas, o
colchão novo, cadê?, cadê?
Não havia dinheiro, não sobrava dinheiro para nada.
“Coitado”, eu pensava.
– Traste! – ela dizia.
Minha mãe não bebia cachaça, mas tinha outro vício: gostava de ouvir
conversa de pai-de-santo, fazer despachos – que ela chamava de “trabalhos” – e
de cantar umas cantorias estranhas, que dizia ser “pontos e cânticos”.
Meu pai detestava essa prática, porque ele se dizia muito católico –
mesmo sem jamais ter passado sequer na porta de uma igreja – e interessado nos
assuntos do céu e de Deus. Quando a mãe reclamava que o pai gastava o dinheiro
da gente no balcão do bar, ele retrucava:
– Pior é gastar fazendo feitiço.
Agora o pai está aqui, seu corpo estiradinho em minha frente, o povo
rezando as rezas que pra mim são cantiga, “Com minha mãe estarei, na santa
glória um dia...”, “Uma incelença, entrou no paraíso... Adeus, irmão, adeus,
até o dia do juízo...”, nem de longe parecendo aquele corpo cheio de rugas e de
cabelos do meu pai quando de pé no balcão da venda, onde cuspia no chão e
derramava um pouco de pinga para o santo, enquanto alisava minha cabeça e
perguntava se eu ia querer ganhar bananada ou bolacha fofa.
– Os dois – eu dizia, porque o pai estava feliz e porque era domingo.
Ele sorria e autorizava a compra.
Eu quebrava a bolacha fofa no meio e envolvia a bananada com as duas bandas,
fazendo um sanduíche.
Meu pai então passava a mão peluda pela minha cabeça, de um lado pro
outro, e dizia duas, três vezes pro dono da venda, com a voz a cada vez mais
pastosa:
– Esse aqui é meu filho. Você conhece ele?
Repetia a informação e a pergunta até o moço deixar ele falando sozinho
no balcão e sumir pelo interior da venda, procurando o que fazer, só para
escapar da falação do meu pai.
Aí eu me lembrava do que fui fazer ali e dizia que a mãe estava chamando
para almoçar. Ele perguntava se a mãe já retornara da casa do pai-de-santo. Eu
dizia que sim, e começava a rezar em silêncio, pedindo a Deus que acalmasse o
coração dos dois, não permitisse briga hoje, pelo menos hoje, um dia de
domingo.
Ficava triste quando minha mãe chamava o meu pai de traste, porque eu
nem sabia direito o que essa palavra queria dizer, mas tinha certeza de que
traste ele não era. Nunca tive coragem de reagir, apesar de já ter sentido
muita vontade, porque tinha medo que a minha mãe me batesse e também porque ela
falava essas coisas, geralmente, quando o pai não estava em casa. E se ele não
ouvia, que mal havia?
Mas agora, que está estiradinho e mais morto do que nunca, que com
certeza não vai reagir para começar outra briga feia com a mãe, eu acho que
posso falar baixinho no seu ouvido:
– Olha, pai, fica calmo e sereno aí. Eu nunca achei que você fosse um
traste. Nunca mesmo, pai. E preciso te dizer outra coisa: eu também não gosto
de pai-de-santo.
(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)
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