A viagem
O rapaz entrou em casa como quem entra no
bar. Sentou em uma cadeira e estirou as pernas sobre o tamborete. Pegou a
garrafa de cachaça no móvel ao lado da mesa e um copo na bandeja cheia de copos
que ficava ao lado da garrafa. Serviu-se e tomou duas doses, uma seguida da
outra, depois acendeu um cigarro. A sala estava na penumbra, iluminada apenas
pela luz azulada da televisão que o pai assistia. O clarão do palito de fósforo
iluminou o rosto do rapaz e o pai observou que ele tinha a barba por fazer. O
pai viu que os sapatos do rapaz estavam sujos, largando tufos de terra sobre o tamborete,
mas não reclamou. Apenas perguntou você vai mesmo e ele disse vou.
O pai quis saber se ele estava aborrecido
com alguma coisa e ele disse que não. O pai então perguntou por que resolvera
partir assim, tão de repente? Ele respondeu que era para não perder a
oportunidade, o caminhão alugado pela empresa sairia de manhã bem cedo, levando
todos os candidatos ao emprego. Queria aproveitar para não ser obrigado a ir
depois, sozinho, ainda tendo que pagar a passagem.
Que tipo de trabalho é esse, meu filho?, o
pai quis saber.
O rapaz não respondeu e amarrou a cara. E
se serviu de mais uma dose.
O pai insistiu, me diga ao menos onde é.
Respondeu que era na capital. A contragosto. O pai perguntou ao filho se já
tinha separado todos os documentos, sem esquecer identidade e carteira
profissional, e ouviu um muxoxo como resposta: não sou abestalhado, meu pai. O
pai disse eu sei, filho, é só uma preocupação.
Está levando algum dinheiro?
Estou. O pouco que tenho.
Precisa de uma ajuda?
De jeito nenhum. Guarde suas economias,
para as necessidades.
O pai perguntou se o filho sabia quanto ia
ganhar e ele respondeu que não. Sabia ao menos se o ganho seria suficiente para
as despesas? Ele respondeu que sim. Derramou mais uma dose de cachaça no copo e
o pai disse pare de beber, vá se alimentar. Vá fazer essa barba e tomar um
banho. Depois descansar, de manhã cedo precisa estar preparado para encarar a
estrada.
Não sou eu quem vai dirigindo, reagiu o
rapaz.
Mesmo assim, disse o pai.
O rapaz perguntou pela mãe e o pai
respondeu que estava no quarto, onde mais estaria? Melhora nenhuma?, perguntou.
Melhora nenhuma, foi a resposta. O pai disse vá se despedir dela, já que você
vai sair bem cedo, e o rapaz disse que preferia não se despedir. Disse não
quero olhar para a mãe daquele jeito que ela está. O pai disse você é quem sabe
e reparou que o filho tinha os olhos molhados. O pai se levantou para desligar
a televisão e o filho observou que ele também tinha os olhos molhados.
O pai disse vou dormir e já estava até
mesmo de pijama. O rapaz desejou um bom sono. Pode aguardar que mandarei
notícias. E não se preocupe com nada. O pai disse me despeço de você amanhã. O
rapaz respondeu que ia madrugar.
Não tinha importância. O pai estaria
acordado.
Bem cedo estava em pé diante do fogão,
preparando café e esquentando na chapa umas bolachas que tirava do saco de
papel. O rapaz acabava de colocar as roupas na sacola e penteava o cabelo
diante do espelho do banheiro. O pai apontou o corte abaixo do queixo e o filho
disse que fora gilete cega. O pai ofereceu uma loção pós-barba. Gosto mais de
passar álcool mesmo, disse o rapaz, mas dessa vez sem qualquer impaciência.
Quer ovos quentes, para forrar bem o
estômago?, o pai quis saber. O rapaz disse que não era preciso. Aí o pai
lembrou que talvez ele não conseguisse comer nada tão cedo e o rapaz disse
deixe, pai, que eu me ajeito. O deixe, pai, soou de maneira carinhosa. E foi
com mais carinho ainda que o pai acabou de esquentar as bolachas.
O pai ficou olhando para o filho,
enquanto ele tomava café, acendia o cigarro, entrava e saía do banheiro,
conferia as peças de roupas na sacola, olhava para o quarto da mãe, parecia
entrar no quarto, se afastava, bebia água do filtro que estava no canto, ao
lado do fogão, olhava para o quintal e depois para as paredes, assoviava para o
passarinho, coçava a cabeça do cachorro.
O pai ficou olhando para o filho enquanto
ele fechava o zíper da sacola, dizia até breve, pai, fique com Deus, e se
afastava.
E assim o homem desconhecido que bateu na
porta dois dias depois encontrou o pai. Era um fim de tarde e ele tomava uma
cachaça no copo que o filho gostava de usar, olhando ora para a porta por onde
o filho saiu e ora para o quarto onde o filho não entrou para se despedir da mãe.
O moço perguntou o senhor é o pai dele?
Falou calmamente do acidente com o caminhão, como foi e como não foi, quem teve
culpa e quem não teve, que o motorista da carreta é que descia a ladeira
dirigindo desembestado, e foi falando tanta coisa que o pai não conseguia mais
ouvir nem entender.
Por fim o moço disse como o pai deveria
proceder para retirar o corpo, as roupas e os documentos do filho do instituto
médico legal de não sei onde. Que outro caminhão da empresa estava à disposição
para trazer todos os corpos de volta, mas que o pai tinha que ir até lá tal dia
e tal hora, para aproveitar o carreto.
E do jeito que entrou, o moço saiu.
Falando sem parar, agora já dizendo coisas como meus sentimentos, isso
acontece, é da vida, descansou, Deus chamou, era um rapaz tão jovem, tão forte,
tão bom e outras falas que o pai já não conseguia ouvir, pois só queria que ele
fosse logo embora, para entrar no quarto escuro e abafado da doente e dar de
uma vez por todas a notícia que estava para dar há quarenta e oito horas: o
nosso filho viajou.
(Do livro "Contos da vida absurda", Editora Casarão do Verbo, 2014)