segunda-feira, 29 de abril de 2019


O homão e o menininho (uma fábula)

      Era uma vez um menininho muito magrinho e pequenino. Desses que não engordaram porque comeram pouco quando eram menores ainda. Desses que têm menos idade do que aparentam e são bem menores do que poderiam ser, considerando a idade que têm.
     O menininho saía de casa bem cedo, carregando uma mochila cheia de livros, cadernos e umas bolas de tênis bem velhas, encontradas num lixo qualquer. Os livros e cadernos eram para uso na escola, mas antes da aula ele parava no sinal de trânsito e sacava os instrumentos de trabalho. Toda vez que o sinal ficava vermelho o menino pulava na frente dos carros, jogando as bolas para cima e para baixo, de um lado para outro, levantando com uma mão e aparando com a outra. O menino pensava que estava oferecendo um espetáculo circense e que por isto merecia uns trocados. Alguns motoristas achavam bonitinho e engraçado e davam umas moedas para ele. Outros não davam a menor atenção, nem mesmo um sorriso.
     O menininho fazia isto porque era muito pobrezinho. Pobrezinho mesmo, que nem esse monte de menininhos que anda bestando aí pelas ruas nas grandes cidades. E era muito feinho. Magrinho, pobrezinho, feinho e desdentadinho. Tinha apenas uns dois ou três dentinhos, todos bastantes esburacados e em péssimo estado de conservação. Andava esculhambadinho que só vendo. Aquelas roupinhas esfarrapadas, com uns remendos na bundinha e nas costas, uma lástima.
     Um dia, o meninninho  vinha distraído por uma calçada, contando as moedas e planejando as futuras investidas no sinal, quando deu de cara com um homão grandalhão. Um homão grandalhão e gordão, bem barrigudão, com os dentões todos na boca. Passou a mão enorme na cabeça sujinha do menininho e perguntou:
 – Garoto, quem é teu pai?
O moleque abriu um sorrisinho bem safado e respondeu:
 – O senhor!
(Do livro "O homão e o menininho", Editora Abacate, 2010)


quarta-feira, 10 de abril de 2019


A música
  
     – Tem horas que a vida é que nem aquela música – ele disse, pegando a xícara e a garrafa térmica.
     – Que música? – Ela perguntou, picando cebola e esfregando o olho com as costas da mão.
     – Aquela da tarde e do viaduto. Um dia cai tudo mesmo em cima da gente. Geralmente, quando a gente pensa que as coisas estão nos conformes.
     Ela não disse nada. Começou a lavar o pimentão.
     – Está fazendo uma salada? – ele perguntou.
     – Refogado para a carne moída – ela disse.
     Ele pingou adoçante no cafezinho, bebeu e foi até a área de serviço. Olhou pelo basculante.
     – Parece que vai chover.
     – É. Está previsto.
     Voltou para a cozinha e botou a xícara na pia.
     – Por que você falou aquilo? – ela perguntou.
     – Aquilo, o quê?
     – Da música que diz que cai a tarde feito um viaduto.
     – Cai, não. Caía.
     – Isso. Caía a tarde...
     – Porque é assim que estou me sentindo, como se um viaduto de aço e concreto tivesse desabado sobre a minha cabeça.
     – É por causa de ontem? Você vai arrumar outro emprego logo.
     – Sei não.
     – Vai. Você é um profissional conhecido e respeitado.
     – É pouco.
     – Meu Deus! Onde já se viu? O que é que conta mais do que isso, criatura?
     – A idade. Estou começando a ficar fora do perfil desejado.
     – Perfil uma ova! – ela disse, misturando os temperos ao óleo e ao caldo de legumes, mexendo com a colher de pau. – Você é bom, meu amor. E isso é o que importa.
     – Quem é bom não perde emprego.
     – Como não? Você não disse que pediram a vaga para um protegido do diretor? Então?! Você não perdeu, tomaram. Essa lei não é de mercado, é de mercadorias.
     O telefone tocou e ele foi atender. Quando voltou, ela misturava a carne moída ao refogado.
     – Era da empresa. Deram-me a lista de documentos para a rescisão.
     – O que esse rapaz que entrou em seu lugar sabe fazer?
     – Nada. Era meu estagiário até ontem. Estava começando a aprender. Um garoto, podia ser meu filho.
     – Não é um caso isolado – ela disse, provando a comida.
     – Eu sei.
     – Acontece a toda hora.
     – Eu sei.
     – Nas melhores empresas.
     – Pois é.
     Ele perguntou se ela queria ajuda para pôr a mesa. Ela disse que ele poderia abrir um vinho. Ele disse que não tinha motivos para brindar.
     – Brindemos à falta de motivos – ela respondeu.
     E riu.
     Ele não riu.
     – Não conta para o Júnior não, tá? – ele pediu, durante o jantar.
     – Por que? O nosso filho conhece a vida, sabe como é que a banda toca.
     – Prefiro. Conto quando arrumar outro emprego. Digo que  fiz uma troca.
     – Você que sabe – ela disse, enchendo os copos.
     Ele começou a servir a massa e a carne moída:
     – E o Júnior, não vem jantar?
     – Disse que chegaria tarde. Tinha um chope com uns amigos.
     Ela levantou-se e foi até o aparelho de som.
     – Vou colocar uma música.
     – A que fala da tarde e do viaduto?
     – Não. Uma que diz que amanhã será outro dia.
     Ela sorriu novamente.
     Eles brindaram.
     O Júnior chegou.
     – Oi, pai. Oi, mãe. Já jantaram?
     – Acabamos neste momento. Ainda está tudo quente – disse a mãe.
     – Foi bom o chope? – perguntou o pai.
     – Foi. Comemoramos a promoção de um amigo. Era estagiário, virou chefe. Lá na empresa que você trabalha.
     Ela pegou as xícaras para o café. Ele preferiu um conhaque. Na cabeça, o verso e a melodia martelavam: “Um bêbado trajando luto...”


(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)