A música
– Tem horas que a vida é que nem aquela
música – ele disse, pegando a xícara e a garrafa térmica.
– Que música? – Ela perguntou, picando
cebola e esfregando o olho com as costas da mão.
– Aquela da tarde e do viaduto. Um dia cai
tudo mesmo em cima da gente. Geralmente, quando a gente pensa que as coisas
estão nos conformes.
Ela não disse nada. Começou a lavar o
pimentão.
– Está fazendo uma salada? – ele
perguntou.
– Refogado para a carne moída – ela disse.
Ele pingou adoçante no cafezinho, bebeu e
foi até a área de serviço. Olhou pelo basculante.
– Parece que vai chover.
– É. Está previsto.
Voltou para a cozinha e botou a xícara na
pia.
– Por que você falou aquilo? – ela
perguntou.
– Aquilo, o quê?
– Da música que diz que cai a tarde feito
um viaduto.
– Cai, não. Caía.
– Isso. Caía a tarde...
– Porque é assim que estou me sentindo,
como se um viaduto de aço e concreto tivesse desabado sobre a minha cabeça.
– É por causa de ontem? Você vai arrumar
outro emprego logo.
– Sei não.
– Vai. Você é um profissional conhecido e
respeitado.
– É pouco.
– Meu Deus! Onde já se viu? O que é que
conta mais do que isso, criatura?
– A idade. Estou começando a ficar fora do
perfil desejado.
– Perfil uma ova! – ela disse, misturando
os temperos ao óleo e ao caldo de legumes, mexendo com a colher de pau. – Você
é bom, meu amor. E isso é o que importa.
– Quem é bom não perde emprego.
– Como não? Você não disse que pediram a
vaga para um protegido do diretor? Então?! Você não perdeu, tomaram. Essa lei
não é de mercado, é de mercadorias.
O telefone tocou e ele foi atender. Quando
voltou, ela misturava a carne moída ao refogado.
– Era da empresa. Deram-me a lista de
documentos para a rescisão.
– O que esse rapaz que entrou em seu lugar
sabe fazer?
– Nada. Era meu estagiário até ontem.
Estava começando a aprender. Um garoto, podia ser meu filho.
– Não é um caso isolado – ela disse,
provando a comida.
– Eu sei.
– Acontece a toda hora.
– Eu sei.
– Nas melhores empresas.
– Pois é.
Ele perguntou se ela queria ajuda para pôr
a mesa. Ela disse que ele poderia abrir um vinho. Ele disse que não tinha
motivos para brindar.
– Brindemos à falta de motivos – ela
respondeu.
E riu.
Ele não riu.
– Não conta para o Júnior não, tá? – ele
pediu, durante o jantar.
– Por que? O nosso filho conhece a vida,
sabe como é que a banda toca.
– Prefiro. Conto quando arrumar outro
emprego. Digo que fiz uma troca.
– Você que sabe – ela disse, enchendo os
copos.
Ele começou a servir a massa e a carne
moída:
– E o Júnior, não vem jantar?
– Disse que chegaria tarde. Tinha um chope
com uns amigos.
Ela levantou-se e foi até o aparelho de
som.
– Vou colocar uma música.
– A que fala da tarde e do viaduto?
– Não. Uma que diz que amanhã será outro
dia.
Ela sorriu novamente.
Eles brindaram.
O Júnior chegou.
– Oi, pai. Oi, mãe. Já jantaram?
– Acabamos neste momento. Ainda está tudo
quente – disse a mãe.
– Foi bom o chope? – perguntou o pai.
– Foi. Comemoramos a promoção de um amigo.
Era estagiário, virou chefe. Lá na empresa que você trabalha.
Ela pegou as xícaras para o café. Ele
preferiu um conhaque. Na cabeça, o verso e a melodia martelavam: “Um bêbado
trajando luto...”
(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)
Nenhum comentário:
Postar um comentário