quarta-feira, 8 de abril de 2020


Compositor inédito



     “A gente começa a beber por causa das más companhias, continua por causa das boas e para quando a vida não faz mais sentido”, disse o velho. “Parei porque a minha está uma merda”, sentenciou, abrindo a garrafa térmica e se servindo de mais um café. Pendurou o copo, mas triplicou a dose de café e de cigarros. Tomava baldes diários e fumava um atrás do outro.
     O velho era meu tio. Assim o chamava, mas ele nem era tão velho. Tinha poucos anos a mais do que eu. Era o meu tio mais novo, sou o primeiro dos sobrinhos, o que encurtava a diferença. Antes de morrer, minha avó pediu:
     “Cuide do seu tio. Só confio em você para essa tarefa”.
     Também antes de morrer, minha mãe fez o mesmo pedido. Eu não poderia negar, nem a uma nem à outra.
     Decidi que viveria para ele e por isso jamais me casei. Há quem não se case porque se dedica aos pais ou a cuidar de um irmão doente. Mas por causa de um tio? Mulher nenhuma entende, claro que não. Eu explicava que a dedicação integral era para ficar mais perto e ouvir suas músicas, pois ninguém além de mim faria isso por ele. Aí elas entendiam menos ainda.
     O velho era compositor. “Compositor inédito!”, como gostava de repetir, com ar orgulhoso. De tanto ele bater nessa tecla, eu até achava, quando menino, que ser compositor inédito era algo muito importante. Nem entendia como alguns permitiam que suas músicas fossem gravadas, quando o bacana mesmo era ficar escondido de tudo e de todos, sem se misturar à algaravia do show business.
     A primeira que ele me mostrou, entoando um violão muito mal tocado (outra característica original de meu tio), tinha um verso que nunca esqueci.
     Dizia assim:
Vou morrer de caganeira, numa esteira
Pelo amor da minha linda jardineira...
     Repetia várias vezes, com variadas entonações, batendo com dois dedos nas cordas do instrumento. E eu achava o máximo. Repetia para os meus amigos os versos tortos e o som atravessado do violão, caprichando na imitação da voz de porta empenada de meu tio, e minha mãe sempre me repreendia:
     “Só você mesmo, para gostar das maluquices que o Abinoel inventa”.
     Maluquices horríveis mesmo, justiça seja feita. Mas eu gostava. E jamais soube porquê, se nem sequer as entendia.
     Abinoel. Esse era o nome do meu tio. Mas eu o chamava de Tio Bino. Ele preferia o apelido Noel. Dizia que era nome de artista, que esse fora um grande compositor, embora tenha fraquejado diante da sedução do sucesso e se permitido ser muitas vezes gravado e regravado.
     Morava num quarto e sala, por isso tive que abrigar meu tio na salinha apertada mesmo. Eu ficava no quarto, e ainda bem que ali tinha uma porta. Assim podia fechá-la quando cansava de ouvir o dindon-dindon desafinado, a noite inteira. O velho virava a madrugada tomando café, fumando e compondo.
     Quando passava para a cozinha, ele me segurava:
     “Escuta essa!”
     E mandava ver.
Cada uma mais maluca do que a outra, que nem essa que ficou tão inédita quanto todas, mas pela qual eu tinha um carinho especial. Dizia:
Meu cachorro me levou para as estrelas
Num foguete de cristal e papelão
Viajei numa poltrona de primeira
E voltei num balão de São João.
     “Essa é bonita, tio Bino. Merece ser gravada”.
     Pronto. Para quê? Nunca mais tocou nem cantou a música.
     Abinoel Bino Noel não queria nenhuma espécie de registro de suas criações, para não correr o risco de chegar aos ouvidos de nenhum cantor desaviado. Quando compunha, eu não podia sequer me aproximar com o celular na mão. Temia que traísse sua confiança. Guardou todas na memória, e só as cantava quando estava com vontade e ao lado de pessoas “que merecem ouvir”, ele dizia.
     Estive sempre entre essas pessoas.
     “Desde que não me venha com conversa de gravação, disco, rádio, mercado, essas besteiras”.
     Um dia, o velho disse “senta aqui”, eu me sentei e ele falou:
     “Escuta o começo desse samba”.
     Futucou nas cordas do vilão, afinando-o à sua maneira, e quando o som ficou pior do que estava ele cantarolou:
Vejo que a morte me acena da janela
Me olha, olho pra ela
Peço que esqueça de mim...
     Parou por aí e ficou me olhando, como se esperasse um comentário qualquer.
     Mantive o silêncio e ele disse:
     “Não parece a atmosfera do Nelson Cavaquinho?”
     “Parece, tio. Tudo que fala em morte me lembra logo as canções do Nelson, especialmente daquelas em parcerias com o Guilherme.”.
     Ele sorriu, satisfeito.
     “Ficaria muito bonito na voz de uma cantora que eu conheço”.
     O tempo fechou.
     Guardou o violão, catou o maço de cigarros e foi tomar café.
     Fui atrás:
     “Tio, me desculpe, mas não consigo entender que um artista não sonhe em dividir a sua arte com o público”.
     “Minhas músicas não são divisíveis. São feitas para mim.”
     “Que atitude mais egoísta, tio Bino. As coisas bonitas que fazemos só se completam eu sua beleza quando chegam a outros olhos, ouvidos, corações.”
     “Palavras.”
     “Podem ser.”
     “E piegas.”
     “Mas acredito nelas. E o senhor deveria acreditar mais em seu taco. Por que tanta insegurança?”
     “Não é insegurança.”
     “Então é egoísmo mesmo.”
     “Você não entende, cara.”
     Continuei não entendendo, mas a pressão deu resultado. Na manhã seguinte, enquanto me preparava para sair de casa, tio Bino Noel me pediu que deixasse com ele o meu gravador. E quando retornei, à noite, recebi a fita onde estava escrito na etiqueta:
     20 CANÇÕES INÉDITAS DE ABINOEL BATISTA
     “Que tal?”, perguntou.
     “Abinoel Batista”, soletrei.
     “Noel que nem o Rosa, e Batista que nem o Wilson. Já ouviu falar da polêmica envolvendo os dois?”
     “Já. E meus parabéns, grande compositor inédito”.
     “Posso deixar de ser, se você conseguir. São suas, faça com elas o que quiser.”
     Passei a noite ouvindo suas músicas, em meu quarto. Na manhã seguinte fui acordar meu tio e o encontrei sem vida, a cabeça despencando do colchão e as pernas estiradas sobre o violão, com quem sempre dormia.
     A fita? Foi no caixão com ele. Eu mesmo a coloquei. Perdeu a graça.
(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)


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