terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

 

Traste

      –Vai lá na sala se despedir do traste do teu pai – disse minha mãe, me puxando pela orelha, torcendo a cartilagem do meu lóbulo.

     – Quando novinho eu nem sabia direito o significado da palavra; mas tinha certeza de que o meu pai não era traste, não. Minha mãe implicou muito com ele, a vida inteira. Mesmo naquele momento, ele morto mortinho, a implicância continuava, como se vê.

     Parado diante do corpo duro e estirado do meu pai, os olhos dele parecendo duas pedras de vidro, vidrados no teto, me pergunto se ele era o demônio todo que a mãe desenhava. Será? Só por que tomava cachaça, não parava em emprego nenhum, e vez em quando tinha a mania de querer bater na gente?

     Não batia, só ameaçava, quando estava com a cabeça quente e cheia de álcool. Meu pai nem sempre cumpria o que prometia, o que deixava minha mãe mais aborrecida, cobrando o conserto do fogão, a troca das telhas quebradas, o colchão novo, cadê?, cadê?

     Não havia dinheiro, não sobrava dinheiro para nada.

     “Coitado”, eu pensava.

     – Traste!  – ela dizia.

     Minha mãe não bebia cachaça, mas tinha outro vício: gostava de ouvir conversa de pai-de-santo, fazer despachos – que ela chamava de “trabalhos” – e de cantar umas cantorias estranhas, que dizia ser “pontos e cânticos”.

     Meu pai detestava essa prática, porque ele se dizia muito católico – mesmo sem jamais ter passado sequer na porta de uma igreja – e interessado nos assuntos do céu e de Deus. Quando a mãe reclamava que o pai gastava o dinheiro da gente no balcão do bar, ele retrucava:

    – Pior é gastar fazendo feitiço.

     Agora o pai está aqui, seu corpo estiradinho em minha frente, o povo rezando as rezas que pra mim são cantiga, “Com minha mãe estarei, na santa glória um dia...”, “Uma incelença, entrou no paraíso... Adeus, irmão, adeus, até o dia do juízo...”, nem de longe parecendo aquele corpo cheio de rugas e de cabelos do meu pai quando de pé no balcão da venda, onde cuspia no chão e derramava um pouco de pinga para o santo, enquanto alisava minha cabeça e perguntava se eu ia querer ganhar bananada ou bolacha fofa.

     – Os dois – eu dizia, porque o pai estava feliz e porque era domingo.

     Ele sorria e autorizava a compra. Eu quebrava a bolacha fofa no meio e envolvia a bananada com as duas bandas, fazendo um sanduíche.

     Meu pai então passava a mão peluda pela minha cabeça, de um lado pro outro, e dizia duas, três vezes pro dono da venda, com a voz a cada vez mais pastosa:

     – Esse aqui é meu filho. Você conhece ele?

     Repetia a informação e a pergunta até o moço deixar ele falando sozinho no balcão e sumir pelo interior da venda, procurando o que fazer, só para escapar da falação do meu pai.

     Aí eu me lembrava do que fui fazer ali e dizia que a mãe estava chamando para almoçar. Ele perguntava se a mãe já retornara da casa do pai-de-santo. Eu dizia que sim, e começava a rezar em silêncio, pedindo a Deus que acalmasse o coração dos dois, não permitisse briga hoje, pelo menos hoje, um dia de domingo.

     Ficava triste quando minha mãe chamava o meu pai de traste, porque eu nem sabia direito o que essa palavra queria dizer, mas tinha certeza de que traste ele não era. Nunca tive coragem de reagir, apesar de já ter sentido muita vontade, porque tinha medo que a minha mãe me batesse e também porque ela falava essas coisas, geralmente, quando o pai não estava em casa. E se ele não ouvia, que mal havia?

     Mas agora, que está estiradinho e mais morto do que nunca, que com certeza não vai reagir para começar outra briga feia com a mãe, eu acho que posso falar baixinho no seu ouvido:

     – Olha, pai, fica calmo e sereno aí. Eu nunca achei que você fosse um traste. Nunca mesmo, pai. E preciso te dizer outra coisa: eu também não gosto de pai-de-santo.



    

    

 

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

 

O prejuízo

      Meu pai perguntou por que você fez isto? e não perguntou mais nada. Não respondi coisa alguma nem sabia o que responder. Fiquei olhando ora para a parede, ora para o telhado, morrendo de vergonha.

     Meu pai entrou no banheiro, sem me olhar, mijou e fez a barba, depois saiu de lá novamente sem olhar para mim. Sentou para tomar café da manhã, sem me chamar, como sempre fazia. Eu não agüentava mais o peso do seu silêncio, quando ele resolveu abrir a boca ainda cheia de café com leite e cuscuz, para desabafar, entre enraivecido e queixoso:

     – Vou ter que trabalhar o final de semana inteiro, fazer hora extra, para poder pagar a vidraça do seu Nestor que você destruiu, moleque.

     Aí criei coragem e disse não precisa, quem vai pagar a vidraça sou eu.

     Meu pai me olhou indiferente e incrédulo, como se olhasse para uma parede que fala, e tomei a dianteira antes que ele dissesse qualquer coisa:

     – Deixe, pai. Vendo meu time de botão, vendo laranja descascada na porta de casa, e pago essa merda.

     Meu pai arregalou os olhos e depois desamarrou a cara. Abriu um sorriso que até hoje lembro como o mais bonito que já vi na cara do meu pai. Só não sei se foi porque eu disse que pagava o prejuízo ou se foi por causa do essa merda.

 

Garrincha

 

       Quando o juiz apitou, encerrando a partida no campinho de subúrbio, aconteceu o grande espetáculo.

     Um pequeno passarinho muito conhecido naquele lugar, chamado garrincha, pousou sobre a bola de couro esquecida no campo de batalha. Meio pardo e de asas e cauda listradas de preto, também conhecido como garriça ou cambaxirra, o pássaro que tem nome de craque deu alguns pulinhos desajeitados sobre a pelota e bateu asas.

     Nesse instante, como se tivesse sido chutada violentamente por um jogador invisível, a bola também bateu asas e subiu. Um lançamento perfeito na direção do céu. Os vinte e dois jogadores titulares, mais os reservas, técnicos, dirigentes e todos os torcedores ficaram parados no estádio. Os olhos voltados para o vôo maluco da bola, que voou até sumir.

     E como o dia já estava mesmo começando a virar noitinha, a lua apareceu de repente e engoliu a redonda – como a chamam os locutores esportivos. A bola virou lua, lua cheia, bem cheia e muito brilhante. O campo ficou tão iluminado que os atletas sentiram vontade de começar outro jogo, e só não o fizeram porque o cansaço da peleja disputadíssima não permitiu.

     O menino quis saber se a bola seria recuperada e o pai disse que não.

     – Está bem lá em cima, limpa, linda e cheia. Iluminando os grandes estádios, nas grandes cidades, ou os campinhos mais escondidos nos fins de mundo.

 

Nem minha mãe


     Heleninha disse nunca mais me ache, nunca mais me olhe, nunca mais me siga, nunca mais peça qualquer notícia minha. Tudo isto com uma raiva indescritível, saindo fumaça dos olhos e perdigotos pela boca.

     E também nunca mais apareça em minha frente, Serginho, nunca mais me escreva, nunca mais dê qualquer informação de sua existência imunda, pois dela eu quero é distância.

     Disse também nunca mais cruze o meu caminho, Serginho, nunca mais deixe de atravessar a rua quando me vir passar. E disse até nunca mais pronuncie o meu nome com sua boca suja e depravada.

     Disse mais: nunca mais lembre que existo, risque meu nome do seu caderno, nunca mais apareça, me esqueça, me esqueça, me esqueça.

     Cheguei em casa triste, arrasado, macambúzio e esquisitão. Fiquei quieto no meu canto, não disse nada, não pedi nada nem falei com ninguém. Mas minha mãe, que sempre percebe tudo, percebeu o meu estado de choque, de tristeza e de pânico e quis saber o que houve. Contei tudo, repeti tudo o que a Heleninha me disse.

     Inclusive com as ênfases, as repetições, a fumaça e o perdigoto.

     Vocês não vão acreditar, mas minha mãe, minha santa mãezinha, olhou para mim com o olhar mais cheio de piedade do mundo, passou a mão em minha cabeça disse “é assim mesmo, Serginho. As mulheres são assim, meu filho”.

     Quer dizer que nem minha mãe escapa?

(Do livro "O homão e o menininho". Editora Abacate, 2010)



terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

 

 

Tudo na vida passa

      Tem gente que gosta de ganhar muito dinheiro, de comprar fazendas cheias de bois, prédios inteiros, de viajar pelo mundo afora. Eu não. Gosto mesmo é de ficar parado aqui, na porta da loja de discos, escutando música e dançando na calçada suja. Só para dar uma freada na correria dos desavisados que passam para lá e para cá. Esse é o meu único programa na vida.

     Um ou outro até pára e fica assistindo à minha dança, depois dá um dinheirinho. Mas dá porque quer, eu não peço. Não é para ganhar dinheiro que exerço a minha arte, é só para me divertir. Tem gente até que acha que sou um sujeito engraçado, cai na gargalhada, aplaude e balança a cabeça em sinal de aprovação. Deve ser por falta do que fazer. Mas têm uns que pensam que eu  sou é maluco mesmo, olham enviesado com caras de poucos amigos, puxam a mulher pelo braço, afastam as crianças. Não faz mal, Deus está vendo.

     Conto ainda aqui com a vantagem de poder ficar o dia inteiro apreciando os movimentos da praça, tomando pé da vida dos transeuntes assustados, escutando conversas e reparando nas roupas e sapatos de todo mundo que circula nessa passarela. Estou há tanto tempo na porta dessa loja que já fiz até algumas amizades boas. Recebo bom-dia e dou bom-dia para um montão de gente que trabalha perto ou almoça no restaurante aqui do lado, falo com vadios, bêbados e indivíduos de paletó e gravata.

     – Como é, Zé, curtindo aí o seu sonzinho legal? – pergunta um.

     – Pois é, doutor. Essa é a vida que se leva e isso é o que se leva dessa vida – dou uma de filósofo e ensaio mais uns passos de dança moderninha, que afinal de contas eu não sou de ontem.

     Só quem não me cumprimenta direito quando passa nessa calçada é Rosa Alice, aquela ingrata. Logo ela, por quem tenho um amor danado, coisa séria, paixão mesmo, desesperadora. Ah, se eu pudesse um dia me casar com Rosa Alice, que passa toda manhã a caminho da loja de sucos, carregando toda a beleza que o Salvador achou por bem lhe dar e que jamais sobrará para um nordestino feio assim que nem eu.

     – Bom-dia, Rosa Alice – insisto na ladainha de todo dia. E nada. É como se eu não existisse, se é que existo mesmo.

     Outro dia escutei uma música aí na loja, dessas paradonas que nem dá para a gente dançar, mas que é uma gostosura de se ouvir. Dizia que não sei quem passa todo dia não sei onde, "sem ver seu vigia, catando a poesia que entornas no chão". É comigo, pensei logo. O vigia sou eu. Vigia baratinado da propriedade alheia que é Rosa Alice, essa moça desatenta, que passa em frente à loja de discos deixando cair a poesia que eu não apanho do chão.

Olho para a loja de sucos e lá está ela, compenetrada atrás do balcão. Fazendo suco de manga, de laranja, de morango e de tudo quanto há para os que podem pagar.

     "Vê se te enxerga, Zé feio", ela não diz mas eu penso. E dou mais umas reboladas acompanhando a música movimentada que está tocando, para ver se desenferrujo os ossos e afasto os pensamentos.

     Essa mania de ficar parado em porta de loja de discos eu tenho desde o meu tempo no interior. Ficava horas escutando música e dançando sozinho em frente ao Rei do Disco, em Feira de Santana. Só que naqueles tempos as melodias eram outras, eram outras as danças. "Esqueça/Ele não te ama/Esqueça/Ele não te quer". Essa tocava sempre e era das minhas preferidas.

     Mas isso já faz muito tempo. Eu vivia lá com meu pai, minha mãe, uma fileira de irmãos abestalhados assim que nem eu. Não conhecia nenhuma Rosa Alice, essa que é a mulher mais bonita de todo o Rio de Janeiro, de São Sebastião. Agora façam o favor de abrir a roda porque lá vem um baião e eu vou acompanhar no arrasta-pé e no jogo-de-cintura.

     Ontem entrei na loja de sucos e pedi um suco. Rosa Alice me olhou de cima até embaixo e foi logo avisando que só com o dinheiro na frente. Mostrei o dinheiro, mas ela  disse  que eu tinha que pagar primeiro na caixa e depois apanhar o suco no balcão. Deixei a droga do suco em cima do balcão e fui tomar uma cachaça com o dinheiro. Nem sei se pegou bem ou se pegou mal.

     Noite passada eu sonhei que me casava com Rosa Alice na Igreja da Matriz, lá em Feira de Santana. Ela toda vestidinha de branco e eu de paletó e gravata. Os bancos de madeira da Catedral apinhados de gente. Minha mãe, meu pai, meus irmãos todos, meus amigos de infância, a cidade inteira. Todos orgulhosos de mim, porque eu havia escolhido uma mulher muito bonita para ser a mãe dos meus filhos. Meu sonho é ter um filho, que vai se chamar José Neto pois eu sou José Filho e José puro é o meu velho pai. Mas era só um sonho mesmo e no dia seguinte eu já estava aqui, rebolando e falando besteiras.

     Outro dia passou uma desorientada aqui na porta da loja de discos, quando eu estava dançando ao som de uma melodia que falava "esses moços/esses pobres moços/ai, se eles soubessem o que eu sei". A mulher maluca parou e ficou me olhando dançar. Mas não olhava com a cara emburrada de alguns que passam nem prendendo o riso, que nem os outros. Olhou com um jeitinho cúmplice, como se quisesse me dar um empurrão pra frente e me tirar do atoleiro.

     Fiquei comovido e convidei a mulher para dançar comigo, esbanjando simpatia. "Me conceda a contradança", eu disse, como nos velhos tempos. E ela veio toda dengosa para os meus braços. Dançamos de rostos colados, repetindo os versos da canção.

      – Meu nome é Almerinda – ela disse.

      – Eu te batizo Rosa Alice.

     Rosa Alice desapareceu. Hoje perguntei por ela ao balconista da loja de sucos. Se casou, deixou o emprego e está morando com o marido mecânico em Nilópolis. Pobrezinha dela. Pobrezinha do meu  grande amor, enterrada num quartinho minúsculo lá no fim do mundo. Senti uma dorzinha de cabeça e vontade de chorar. Tratei de cortar o mal pela raiz, correndo para a porta da loja na horinha em que começava uma música de novela, dessas bem movimentadas:

 

"Tudo na vida passa

Tudo no mundo cresce

Nada é igual a nada"

 

     Assim são as coisas do mundo. Nada igual a nada. Um dia Rosa Alice volta ou não volta. Vou ficando por aqui, enfrentando a vida que insiste tanto em me contrariar.

(Do livro "Um cometa cravado em tua coxa". Editora Record, 2003)