segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

 

O prejuízo

      Meu pai perguntou por que você fez isto? e não perguntou mais nada. Não respondi coisa alguma nem sabia o que responder. Fiquei olhando ora para a parede, ora para o telhado, morrendo de vergonha.

     Meu pai entrou no banheiro, sem me olhar, mijou e fez a barba, depois saiu de lá novamente sem olhar para mim. Sentou para tomar café da manhã, sem me chamar, como sempre fazia. Eu não agüentava mais o peso do seu silêncio, quando ele resolveu abrir a boca ainda cheia de café com leite e cuscuz, para desabafar, entre enraivecido e queixoso:

     – Vou ter que trabalhar o final de semana inteiro, fazer hora extra, para poder pagar a vidraça do seu Nestor que você destruiu, moleque.

     Aí criei coragem e disse não precisa, quem vai pagar a vidraça sou eu.

     Meu pai me olhou indiferente e incrédulo, como se olhasse para uma parede que fala, e tomei a dianteira antes que ele dissesse qualquer coisa:

     – Deixe, pai. Vendo meu time de botão, vendo laranja descascada na porta de casa, e pago essa merda.

     Meu pai arregalou os olhos e depois desamarrou a cara. Abriu um sorriso que até hoje lembro como o mais bonito que já vi na cara do meu pai. Só não sei se foi porque eu disse que pagava o prejuízo ou se foi por causa do essa merda.

 

Garrincha

 

       Quando o juiz apitou, encerrando a partida no campinho de subúrbio, aconteceu o grande espetáculo.

     Um pequeno passarinho muito conhecido naquele lugar, chamado garrincha, pousou sobre a bola de couro esquecida no campo de batalha. Meio pardo e de asas e cauda listradas de preto, também conhecido como garriça ou cambaxirra, o pássaro que tem nome de craque deu alguns pulinhos desajeitados sobre a pelota e bateu asas.

     Nesse instante, como se tivesse sido chutada violentamente por um jogador invisível, a bola também bateu asas e subiu. Um lançamento perfeito na direção do céu. Os vinte e dois jogadores titulares, mais os reservas, técnicos, dirigentes e todos os torcedores ficaram parados no estádio. Os olhos voltados para o vôo maluco da bola, que voou até sumir.

     E como o dia já estava mesmo começando a virar noitinha, a lua apareceu de repente e engoliu a redonda – como a chamam os locutores esportivos. A bola virou lua, lua cheia, bem cheia e muito brilhante. O campo ficou tão iluminado que os atletas sentiram vontade de começar outro jogo, e só não o fizeram porque o cansaço da peleja disputadíssima não permitiu.

     O menino quis saber se a bola seria recuperada e o pai disse que não.

     – Está bem lá em cima, limpa, linda e cheia. Iluminando os grandes estádios, nas grandes cidades, ou os campinhos mais escondidos nos fins de mundo.

 

Nem minha mãe


     Heleninha disse nunca mais me ache, nunca mais me olhe, nunca mais me siga, nunca mais peça qualquer notícia minha. Tudo isto com uma raiva indescritível, saindo fumaça dos olhos e perdigotos pela boca.

     E também nunca mais apareça em minha frente, Serginho, nunca mais me escreva, nunca mais dê qualquer informação de sua existência imunda, pois dela eu quero é distância.

     Disse também nunca mais cruze o meu caminho, Serginho, nunca mais deixe de atravessar a rua quando me vir passar. E disse até nunca mais pronuncie o meu nome com sua boca suja e depravada.

     Disse mais: nunca mais lembre que existo, risque meu nome do seu caderno, nunca mais apareça, me esqueça, me esqueça, me esqueça.

     Cheguei em casa triste, arrasado, macambúzio e esquisitão. Fiquei quieto no meu canto, não disse nada, não pedi nada nem falei com ninguém. Mas minha mãe, que sempre percebe tudo, percebeu o meu estado de choque, de tristeza e de pânico e quis saber o que houve. Contei tudo, repeti tudo o que a Heleninha me disse.

     Inclusive com as ênfases, as repetições, a fumaça e o perdigoto.

     Vocês não vão acreditar, mas minha mãe, minha santa mãezinha, olhou para mim com o olhar mais cheio de piedade do mundo, passou a mão em minha cabeça disse “é assim mesmo, Serginho. As mulheres são assim, meu filho”.

     Quer dizer que nem minha mãe escapa?

(Do livro "O homão e o menininho". Editora Abacate, 2010)



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