O prejuízo
Meu pai entrou no banheiro, sem me olhar, mijou e fez a barba, depois
saiu de lá novamente sem olhar para mim. Sentou para tomar café da manhã, sem
me chamar, como sempre fazia. Eu não agüentava mais o peso do seu silêncio,
quando ele resolveu abrir a boca ainda cheia de café com leite e cuscuz, para
desabafar, entre enraivecido e queixoso:
– Vou ter que trabalhar o final de semana inteiro, fazer hora extra,
para poder pagar a vidraça do seu Nestor que você destruiu, moleque.
Aí criei coragem e disse não precisa, quem vai pagar a vidraça sou eu.
Meu pai me olhou indiferente e incrédulo, como se olhasse para uma
parede que fala, e tomei a dianteira antes que ele dissesse qualquer coisa:
– Deixe, pai. Vendo meu time de botão, vendo laranja descascada na porta
de casa, e pago essa merda.
Meu pai arregalou os olhos e depois desamarrou a cara. Abriu um sorriso
que até hoje lembro como o mais bonito que já vi na cara do meu pai. Só não sei
se foi porque eu disse que pagava o prejuízo ou se foi por causa do essa merda.
Garrincha
Um pequeno passarinho muito conhecido naquele lugar, chamado garrincha,
pousou sobre a bola de couro esquecida no campo de batalha. Meio pardo e de
asas e cauda listradas de preto, também conhecido como garriça ou cambaxirra, o
pássaro que tem nome de craque deu alguns pulinhos desajeitados sobre a pelota
e bateu asas.
Nesse instante, como se tivesse sido chutada violentamente por um
jogador invisível, a bola também bateu asas e subiu. Um lançamento perfeito na
direção do céu. Os vinte e dois jogadores titulares, mais os reservas, técnicos,
dirigentes e todos os torcedores ficaram parados no estádio. Os olhos voltados
para o vôo maluco da bola, que voou até sumir.
E como o dia já estava mesmo começando a virar noitinha, a lua apareceu
de repente e engoliu a redonda – como a chamam os locutores esportivos. A bola
virou lua, lua cheia, bem cheia e muito brilhante. O campo ficou tão iluminado
que os atletas sentiram vontade de começar outro jogo, e só não o fizeram
porque o cansaço da peleja disputadíssima não permitiu.
O menino quis saber se a bola seria recuperada e o pai disse que não.
– Está bem lá em cima, limpa, linda e cheia. Iluminando os grandes
estádios, nas grandes cidades, ou os campinhos mais escondidos nos fins de
mundo.
Nem minha mãe
Heleninha disse nunca mais me ache, nunca mais me olhe, nunca mais me
siga, nunca mais peça qualquer notícia minha. Tudo isto com uma raiva
indescritível, saindo fumaça dos olhos e perdigotos pela boca.
E também nunca mais apareça em minha frente, Serginho, nunca mais me
escreva, nunca mais dê qualquer informação de sua existência imunda, pois dela
eu quero é distância.
Disse também nunca mais cruze o meu caminho, Serginho, nunca mais deixe
de atravessar a rua quando me vir passar. E disse até nunca mais pronuncie o
meu nome com sua boca suja e depravada.
Disse mais: nunca mais lembre que existo, risque meu nome do seu
caderno, nunca mais apareça, me esqueça, me esqueça, me esqueça.
Cheguei em casa triste, arrasado,
macambúzio e esquisitão. Fiquei quieto no meu canto, não disse nada, não pedi
nada nem falei com ninguém. Mas minha mãe, que sempre percebe tudo, percebeu o
meu estado de choque, de tristeza e de pânico e quis saber o que houve. Contei
tudo, repeti tudo o que a Heleninha me disse.
Inclusive com as ênfases, as repetições, a
fumaça e o perdigoto.
Vocês não vão acreditar, mas minha mãe,
minha santa mãezinha, olhou para mim com o olhar mais cheio de piedade do
mundo, passou a mão em minha cabeça disse “é assim mesmo, Serginho. As mulheres
são assim, meu filho”.
Quer dizer que nem minha mãe escapa?
(Do livro "O homão e o menininho". Editora Abacate, 2010)
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