Cabelos molhados
Polícia, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil,
o padre, a responsável pela Delegacia da Mulher e até um repórter do jornal da
capital chegaram em caravana. Falavam em nome da ordem, da justiça, do povo e
até de Deus, atendendo a denúncias anônimas dando conta de que Almerinda estava
morta, vítima de maus-tratos. Foram logo informando que não traziam mandado de
busca nem era preciso. Ananias não exigiu nada nem parecia saber do que se
tratava.
— Gente de Cristo, onde já se viu?! —
perguntava o suspeito, olhos em brasa e pânico, tremendo diante dos homens e da
delegada, chorando no ombro do padre.
Era um homem temente, sempre fora. Tinha
um São Jorge Guerreiro na sala e o Sagrado Coração na parede do quarto, na
cabeceira da cama.
As lágrimas e o desespero de Ananias não
impediram os invasores de continuar a investigação. “É melhor o senhor
confessar de uma vez por todas”, dizia o policial. “Vamos derrubar paredes até
encontrar o corpo”, confabulavam bombeiros e agentes da defesa. A delegada
chamou o acusado num canto:
— Onde foi parar a coitada, Seu Ananias?
Sabemos que você batia nela.
— Almerinda desapareceu, doutora.
— Ninguém desaparece, homem. E está
desaparecida desde quando?
— Desde a semana passada. Sumiu numa noite
de lua cheia. Almerinda andava muito esquisita, Deus me livre.
— Deixe de crendice à toa e mostre onde
enterrou a infeliz. É melhor para você, criatura.
O tal do repórter parecia um carro de boi no
atoleiro:
— O senhor matou? Matou ou não matou? O
senhor matou?
Nenhuma panela mais nos armários. Roupas
arrancadas do baú. Móveis e a cama de pernas para o ar. Os homens quebravam
tudo, em algum lugar o corpo estaria. Viram o poço no fundo do quintal,
correram até lá. “Vai ver, está ali, afogada”. Ananias enxugava as lágrimas nos
pelos da mão e futucava os dentes com um palito de fósforo.
— Na água que bebo? Que uso para dar de
beber às crianças?
O padre tentou negociar:
— Confesse, filho, depois se apegue com o
Salvador. Ele dará o perdão e mostrará o bom caminho.
Ananias gemeu. Mais ainda quando os homens
arrebentaram o depósito de mantimentos, caroço de milho correndo por toda a
despensa. “Em algum lugar ele escondeu o corpo”, dizia o bombeirinho, o mais
franzino de todos.
O padre se roía em remorsos:
— E se o pobre não tiver culpa de nada? —
perguntou à delegada.
— Como? Judiava dela. Arrastava a mulher
pelos cabelos, ela tinha cabelos lindos e longos, submetia a instintos animais,
dizem até que um dia marcou com o instrumento de ferrar o gado a bunda da infeliz.
O pároco pigarreou, envergonhado. Bombeiro
e policial voltaram do tanque, trazendo uma cabaça em forma de cuia.
— Só achamos isto.
— Pois é com isto que encho a lata d´água,
o cocho dos porcos, o vasilhame das galinhas. Antes quem fazia tudo era ela — e
caiu mais uma vez em pranto.
As ordens se atropelavam, quase sempre aos
gritos:
— Verifiquem o chiqueiro! Cavem a terra no
curral! Sacudam os galhos das árvores!
Gente da lei sabe que não existe limite
para as astúcias assassinas. Ananias apenas repetia não saber de nada, enquanto
implorava baixinho: “Volta, Almerinda, me tira deste pesadelo”.
Já estava ficando noitinha quando as
visitas indesejáveis ligaram o jipe, prometendo voltar dia seguinte bem cedo,
para retomar as buscas e as investigações. Ananias ficou sentado no banquinho
ao lado da porta, coçando os olhos ardidos de tanto choro, criando coragem para
pôr ordem na mente e começar a trabalheira de botar no lugar tudo o que aquela
gente sem modos esparramou.
Mas
antes iria até o quintal, levantar a pedra do fundo do poço e fazer submergir
mais uma vez o corpo de Almerinda, o vestido de chita se desfazendo de tanto
limo grudado. Oferecer a sopa que a morta recusaria, pentear seus lindos e
longos cabelos molhados e dessa vez pedir, por tudo o que é mais sagrado, que
ela não conte o que sabe para aquele povo do município. Antes disso, não ia
conseguir dormir.
(Do livro "Contos da vida absurda", Editora Casarão do Verbo, 2014)