sexta-feira, 26 de março de 2021

 

Cabelos molhados

      Ananias deu banho nos meninos, ajudou a vestirem a roupa, penteou seus cabelos e colocou um ao lado do outro na mesa, diante do feijão, arroz, carne e abóbora que ele mesmo preparou. Depois de andar um quilômetro com os filhos e colocá-los na condução que os levariam até a escola, no vilarejo, se preparava para pegar o caminho da roça, onde ajeitaria uma cerca caída. A freada do jipe com placa do município mudou os seus planos.

     Polícia, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil, o padre, a responsável pela Delegacia da Mulher e até um repórter do jornal da capital chegaram em caravana. Falavam em nome da ordem, da justiça, do povo e até de Deus, atendendo a denúncias anônimas dando conta de que Almerinda estava morta, vítima de maus-tratos. Foram logo informando que não traziam mandado de busca nem era preciso. Ananias não exigiu nada nem parecia saber do que se tratava.

     — Gente de Cristo, onde já se viu?! — perguntava o suspeito, olhos em brasa e pânico, tremendo diante dos homens e da delegada, chorando no ombro do padre.

     Era um homem temente, sempre fora. Tinha um São Jorge Guerreiro na sala e o Sagrado Coração na parede do quarto, na cabeceira da cama.

     As lágrimas e o desespero de Ananias não impediram os invasores de continuar a investigação. “É melhor o senhor confessar de uma vez por todas”, dizia o policial. “Vamos derrubar paredes até encontrar o corpo”, confabulavam bombeiros e agentes da defesa. A delegada chamou o acusado num canto:

     — Onde foi parar a coitada, Seu Ananias? Sabemos que você batia nela.

     — Almerinda desapareceu, doutora.

     — Ninguém desaparece, homem. E está desaparecida desde quando?

     — Desde a semana passada. Sumiu numa noite de lua cheia. Almerinda andava muito esquisita, Deus me livre.

     — Deixe de crendice à toa e mostre onde enterrou a infeliz. É melhor para você, criatura.

     O tal do repórter parecia um carro de boi no atoleiro:

     — O senhor matou? Matou ou não matou? O senhor matou?

     Nenhuma panela mais nos armários. Roupas arrancadas do baú. Móveis e a cama de pernas para o ar. Os homens quebravam tudo, em algum lugar o corpo estaria. Viram o poço no fundo do quintal, correram até lá. “Vai ver, está ali, afogada”. Ananias enxugava as lágrimas nos pelos da mão e futucava os dentes com um palito de fósforo.

     — Na água que bebo? Que uso para dar de beber às crianças?

    O padre tentou negociar:

     — Confesse, filho, depois se apegue com o Salvador. Ele dará o perdão e mostrará o bom caminho.

     Ananias gemeu. Mais ainda quando os homens arrebentaram o depósito de mantimentos, caroço de milho correndo por toda a despensa. “Em algum lugar ele escondeu o corpo”, dizia o bombeirinho, o mais franzino de todos.

     O padre se roía em remorsos:

     — E se o pobre não tiver culpa de nada? — perguntou à delegada.

     — Como? Judiava dela. Arrastava a mulher pelos cabelos, ela tinha cabelos lindos e longos, submetia a instintos animais, dizem até que um dia marcou com o instrumento de ferrar o gado a bunda da infeliz.

     O pároco pigarreou, envergonhado. Bombeiro e policial voltaram do tanque, trazendo uma cabaça em forma de cuia.

     — Só achamos isto.

     — Pois é com isto que encho a lata d´água, o cocho dos porcos, o vasilhame das galinhas. Antes quem fazia tudo era ela — e caiu mais uma vez em pranto.

     As ordens se atropelavam, quase sempre aos gritos:

     — Verifiquem o chiqueiro! Cavem a terra no curral! Sacudam os galhos das árvores!

     Gente da lei sabe que não existe limite para as astúcias assassinas. Ananias apenas repetia não saber de nada, enquanto implorava baixinho: “Volta, Almerinda, me tira deste pesadelo”.

     Já estava ficando noitinha quando as visitas indesejáveis ligaram o jipe, prometendo voltar dia seguinte bem cedo, para retomar as buscas e as investigações. Ananias ficou sentado no banquinho ao lado da porta, coçando os olhos ardidos de tanto choro, criando coragem para pôr ordem na mente e começar a trabalheira de botar no lugar tudo o que aquela gente sem modos esparramou.

     Mas antes iria até o quintal, levantar a pedra do fundo do poço e fazer submergir mais uma vez o corpo de Almerinda, o vestido de chita se desfazendo de tanto limo grudado. Oferecer a sopa que a morta recusaria, pentear seus lindos e longos cabelos molhados e dessa vez pedir, por tudo o que é mais sagrado, que ela não conte o que sabe para aquele povo do município. Antes disso, não ia conseguir dormir.

(Do livro "Contos da vida absurda", Editora Casarão do Verbo, 2014)


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