domingo, 10 de outubro de 2021

 

O último post

 

     Eu poderia ter resolvido o assunto no tuíter, com menos de cem caracteres, algo como Quando vocês acabarem de ler isto aqui, eu terei acabado com tudo, mas ficaria faltando alguma coisa.

     Terei acabado com tudo. “Tudo” o quê?!

     Escrever é tão difícil quanto viver.

     No momento exato em que redijo esse post de despedida é dia trinta e um de dezembro de dois mil e vinte, quase meia-noite, e sou um dos sobreviventes recém-nascidos depois de nove meses no útero escuro de um confinamento forçado.

     (Isso ficou bom.)

     Último dia do ano e não há fogos na praia nem em volta da lagoa. O bilhete de despedida que a companheira deixou está em cima da mesa, me olhando com cara de sacana. A garrafa de vodca dá os últimos suspiros e Ivete Sangalo grita na televisão que “Vai rolar a festa, vai rolar”!

     Que festa, abestada?!

     Pego a porra do bilhete, já manchado de álcool, cinza e café, e leio pela milésima vez a frase intrigante:

     Eu vou em busca da felicidade, escritor!

     Sinto uma ponta de ironia desmoralizante nesse “escritor”. A que bosta de felicidade ela se refere? Como sair à procura da felicidade, com uma máscara de pano atravessada na cara e um vidro de álcool em gel na mão? E se ao invés de encontrar o infeliz que a tirou de mim, prometendo dias melhores, ela for encontrada pelo vírus do mal que continua por aí, à espreita?

     Dias melhores. A inocência comove.

     A faca amolada esteve ali na cozinha, o tempo inteiro, mas a ingrata esperou justo o último dia do ano para usar em minhas costas (se tivesse tempo para reescrever esta mensagem, eu mexeria nessa frase; ela está muito piegas. E “ingrata” eu não leio, nem ouço, desde as canções do Waldick Soriano).

     O celular faz um barulho esquisito e me dou conta de que deixei a moça do telessexo falando sozinha; que a ligação já dura algumas horas e vai custar uma fortuna; e que ninguém vai pagar por ela, porque quando a conta chegar eu já terei partido.

     Encosto o aparelho no ouvido no momento exato em que a voz suave e derretida está dizendo que quer me ver ao vivo, “peladão, com esse pinto enorme” (segurei o riso nessa hora) e que espera que eu possa leva-la “à loucura”.

     Então me lembro do velho amigo jornalista, bêbado na mesa do restaurante, declarando-se para a colega de trabalho:       

     “Se você gostar de pau mole, prometo leva-la à loucura”.

     Gargalhadas gerais. A moça cobrindo o rosto com as palmas das mãos (dedos abertos para acompanhar a cena). O garçom e amigo se equilibrando com a bandeja pelo corredor, contendo o riso para não entornar os chopes. O universo reconstruindo-se “sem ideal nem esperança”, porque embora faltasse Fernando Pessoa na mesa, era um tempo em que havia poesia em tudo.

     Até no pau mole.

     Prometi não pensar mais no assunto, mas o pensamento fica espetando a raiz do chifre: onde minha mulher conheceu o infeliz que a levou ao encontro da tal felicidade? Como eu, ela também ficou esses meses todos confinada. Aparentemente, a troca de mensagens durante a madrugada era com amigos próximos e alguns parentes.

     Taí o argumento que me faltava: o conto da mulher que conhece o amante na internet, enquanto o marido vê futebol, fala mal do presidente e se debate para escrever histórias em meio ao caos. Esse eu ainda não escrevi, embora outros já o tenham escrito. Só que, no meu caso, seria baseado em fatos reais.

     Mas agora não há mais tempo. Busquem na obra de outro. Por aí está cheio de escritor que, como eu, deita falação só sobre o que deu errado. Vou refletindo sobre o tema e esbarrando na pia e no fogão, enquanto ponho uma banda de pão puro para esquentar.

     “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

     Por conta dessa mania besta com a literatura, a paixão por Machado de Assis e pelo seu Brás Cubas, não fui pai nem tenho mais disposição (vamos chamar assim) para ser. Portanto, nenhum rebento a quem possa estar implorando por uma visita, nesta hora dura, e ouvindo dele a desculpa esfarrapada, porém perfeita e oportuna, de que não vem me visitar por recomendação científica.

     É que sou “grupo de risco”.

     Grupo de risco somos todos nós, baby, do nascimento ao último suspiro.

     Mas o post de despedida está tomando um caminho que eu não queria, por isso volto à moça do telessexo e à última dose da vodca que me espera, feminina e generosa como só as garrafas sabem ser.

     “Fale alguma coisa”, diz a voz melosa do outro lado.

     “Estou triste e bêbado”.

     “Como você está vestido? Só de cuequinha? Hummmmm”, insiste.

     “De pijama”.

     “Estou nuinha... O que você sente, ouvindo minha voz?”

     “Cheiro de queimado! É a porra do pão...”

     Corro à cozinha e, quando volto ao telefone, escuto só o barulhinho de ligação interrompida.

     Se nem a moça do telessexo me aguenta, eu é que não vou tentar.

     Desisto. Sei que amanhã não estarei mais aqui.

     E se estiver, estou perdido, porque a conta do telefone será impagável.

(Publicado na antologia "Amores confinados", Bloco Narrativo, 2021)




    

 

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