sábado, 19 de agosto de 2023

 

Refresco de manga

 

     A gorda das fichas tinha um dente de ouro de um lado e um buraco onde deveria ter um dente, no outro canto da boca. Sorria torto, parecendo querer mostrar apenas o brilho dourado entre os lábios grossos e besuntados de batom. Perguntou minha idade, respondi que tinha dezoito. Ela disse duvido e ofereci meia verdade: dezessete. Diante do olhar debochado, eu resolvi abrir o jogo. Tenho dezesseis, mas já trabalho e já vim aqui um montão de vezes.

     A gorda perguntou quantas fichas eu queria e respondi duas. Uma de cerveja e uma para a máquina de música. Vai querer mulher? Depois, eu disse, meio que esnobando. Se der vontade. Pedi a cerveja à morena de pernas finas e entrei na fila da máquina de música. O baixinho com os cabelos cheios de brilhantina parecia o dono da casa. Estacionou a cadeira em frente à máquina e tinha bem uma dúzia de fichas na mão. Acabava a música, ele colocava outra ficha e ouvia novamente o vozeirão de Waldick Soriano:

 

O nosso amor durou somente uma semana

e eu pensando em conservá-lo a vida inteira.

Eu não pensava que tu fosses leviana,

pois leviana faz amor de brincadeira.

 

     Depois de me fazer ouvir a música não sei quantas vezes, até decorar a letra, o baixinho se atracou com uma baixinha que nem ele, de peitos grandes e rolos de plástico nos cabelos, e sumiu lá para os fundos da casa. A cerveja descia meio atravessada, pois eu não tinha costume, mas fiz questão de fazer pose de quem tem muita intimidade com o copo. Acendi um dos três cigarros que comprei a varejo no bar ao lado da casa e dei uma tragada forte, soltando rápido a fumaça para não engasgar. Coloquei a ficha na caixa de música e apertei no nome do cantor, Roberto Carlos, depois na canção entre as opções que apareciam na voz dele, Não chores mais. Aí veio, só para mim:

 

Esqueça, ele não te ama.

Esqueça, ele não te quer.

Não chores mais, não sofra assim.

 

     O baixinho voltou com as mãos cheias de fichas e me afastei da caixa de música. Não aguentava mais ouvir Waldick Soriano. Fui me sentar do outro lado da sala, num sofá todo manchado de cerveja e queimado de cigarros. O copo em uma mão e a garrafa de cerveja na outra, os olhos conferindo as mulheres que andavam de um lado para o outro, tentando enxergar a minha irmã.

     Não foi fácil reconhecer Dalva naquele cenário, com aquelas roupas, maquiada daquele jeito. Vi quando ela se aproximou, caminhando na direção da mesa onde estava um sujeito magricela de bigode fino e cara de personagem de história em quadrinhos. Minha irmã estava irreconhecível, com cigarro no bico e copo de cerveja entre os dedos de unhas vermelhas, demonstrando a maior intimidade com a casa, os hábitos e os figurantes todos. Pensei, é ela, não é ela, apertei os olhos porque a luz da sala não era boa, mas tomando cuidado para não ser reconhecido. O magricela a abraçou pela cintura e levantou a blusa vermelha que ela usava. A blusa era curta e ele levantou até a altura da pá. Aí eu vi, de relance, a mancha acima das costelas.

     Depois disso, minha irmã ainda passou várias vezes à minha frente, pegando cerveja para o sujeito de bigodinho, acendendo cigarros para ele e para ela, e toda vez que voltava para a mesa o tarado levantava a saia minúscula que ela usava e passava a mão na bunda de Dalva. Eu espichava os olhos para ver se reconhecia também a bunda de minha irmã, a mesma que eu ficava olhando pelo buraco da fechadura enquanto ela tomava banho. Dalva dava beijinhos no nariz e na testa do magricela, evitando beijar na boca. Puta não gosta de beijar na boca e o cara esquisito ainda tinha uns dentes todo arrebentados, possivelmente pelo efeito da nicotina. Se eu fosse ela, também não ia querer dar beijo na boca daquele sujeito. Minha irmã estava bonita e toda senhora de si. Para lá e para cá, ia e voltava, sem me reconhecer na quase penumbra.

     Levantei-me para comprar outra ficha e pegar outra cerveja. Quando voltei para o sofá, não tinha mais ninguém na mesa próxima, nem Dalva nem o magricela. Decidi esperar. Afinal, fiquei tanto tempo remoendo essa visita. Dei o primeiro gole na cerveja e senti que estava meio enjoado. O cigarro também ajuda no mal-estar. Acendi outro. Espichei os olhos pelos quatro cantos da sala, procurando minha irmã, que não estava em lugar nenhum. Disse não para a moça feia que se sentou ao meu lado, antes mesmo que a pobre falasse qualquer coisa. Ela se levantou e saiu dali, não parecia ter se ofendido, se encostou em outro sujeito solitário. Minha irmã devia estar no quarto com aquele traste, e isso me aborreceu.

     Sou caçula. Dalva, a irmã mais velha. Eu ainda era pequeno quando ela saiu de casa, depois de uma discussão com minha mãe e meu irmão. Anunciou que ia morar com uma amiga. Minha mãe parecia não acreditar nem um pouco na história, mas recomendou vai com Deus, sem drama nem lágrimas. Quando Dalva bateu a porta da rua, meu irmão disse vai ser puta, eu sei. Bate na boca e pede perdão, minha mãe falou. Perdão nada, vai ser puta. Meu irmão já era um rapazinho, sabia das coisas.

     Eu adorava ver minha irmã saindo do banho, uma toalha enrolada no corpo, cobrindo metade dos peitos. Uma toalha menor enrolada nos cabelos. Passava pelo corredor, onde eu jogava futebol de botão, derramando pela casa um cheiro vago de sabonete e alfazema. Vestia-se com a porta do quarto entreaberta, atirava a toalha sobre a cama e escolhia a calcinha quase sempre branca.

     Quando minha irmã retornou à sala, de mãos dadas com o esqueleto branco de desenho animado, eu me perdia na canção desconhecida da caixa de música e na voz distante do Juca, o ex-amigo que um dia quebrei a cara exatamente por causa de Dalva. Juca repetindo tua irmã é da vida, foi vista no puteiro de Laura. Puta é a tua irmã, a tua mãe e a tua avó. E tome tapas, chutes e pescoções. Mergulhei no gelo daquela noite provinciana e despertei quando ela se sentou ao meu lado, depois de se despedir do cliente.

     A voz que há tantos anos eu não ouvia: está sozinho, garotão? Oi, Dalvinha. Os olhos arregalados sob os cílios anormais. Depois o susto. Depois tristes. O que você está fazendo aqui, menino? Vim pegar mulher. Você não tem idade para isso. Eu me afogando numa lágrima que não passava pela garganta. Você não devia ter vindo aqui. Como vai a mãe? Por que me fazer passar esta vergonha? — e aí não lembro se era a voz de Dalva ou de Linda Batista, cantando Lupicínio Rodrigues. Como vai a mãe? Como vão todos? Eu tonto de cerveja morna. Não queria nunca que você me visse aqui. O gosto do cigarro na boca, a fumaça ardendo na alma. Suor e angústia, suor de angústia. Justo você.

     Não veio procurar mulher nenhuma, não foi? Você veio me ver. Como descobriu que eu trabalhava aqui? Resmunguei isto não é trabalho e ela disse claro que é, seu bobo, enxugando minhas lágrimas com a blusa, eu abraçando minha irmã com a blusa levantada, minha cabeça em seu ombro, a visão novamente próxima da mancha na pele mais marcante da minha infância.

     Se você quiser mesmo uma mulher eu falo com uma amiga que conheço bem, sei que é limpa, mas pare de chorar, disse minha irmã. Eu não queria mulher nenhuma, nem queria que ela falasse naquele tom maternal comigo, nem pensasse que seria a minha primeira vez. Restava um pouco de cerveja, bastante quente. Beba mais não, a voz delicada de Dalvinha, me abraçando e dando beijos no meu cabelo. Volte outro dia, volte no meio da tarde, para a gente conversar e tomar um refresco de manga.

     A gorda cochilava e babava em cima das fichas, restavam poucos clientes madrugadores quando me despedi. Na calçada acertei um chute violento em uma tampa de garrafa, que voou baixinho e acertou o poste do outro lado da rua. Ainda sou bom nisto, pensei. A noite é uma criança de colo. Minha irmã ainda tem aquela marca só sua nas costelas e não esqueceu que eu gosto de refresco de manga.

(Publicado na antologia "Contos para ler no bar", diversos autores, organização de Miguel Sanches Neto, Editora Recordo, 2007)


 

domingo, 30 de julho de 2023

 

A farinha e o sonho

 

O homem velho deixa a vida e a morte para trás

 Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais.

Caetano Veloso

 

     Sentado no batente da porta, cavoucando as unhas dos pés que se roçam nas pedras, o velho Severino, mais morte do que vida, coça com as juntas dos dedos o osso da cabeça do cachorro Capibaribe. Cheio de fome e de pulgas, o cachorro olha sem qualquer paixão para o umbuzeiro carregado de frutos e de passarinhos.

     Severino diz mais dia menos dia tudo isto se acaba, meu amigo.

     Capibaribe entende tudo e late para o nada.

     O animal estava para o velho como o papagaio Aruaí esteve para o grande imperador Macunaíma. Depois de acompanhar os passos do herói sem caráter e de fazer parte do seu séquito, foi encontrado um dia pelo escritor a quem relatou tudo o que se passara, antes de bater asas no rumo de Lisboa.

     A tribo de Macunaíma se acabara, devorada pelo tempo e por intempéries humanas; a do velho Severino estava chegando ao fim.

     – Cadê a farinha que guardei aqui?

     O papagaio sabia conservar no silêncio as frases e feitos do herói.

     O cachorro também.

     O calor provoca coceiras em cachorro e ensopa de suor o peito do velho Severino. Ele pede a Deus que mande chuva bem forte, daquelas que parecem que vão derrubar o mundo, água limpa escorrendo pela cumeeira, cada pingo enchendo um pote.

     Cadê os raios que desciam em disparada, dançando feito minhocas luminosas e tontas? E o barulho que se ouvia por trás da serra, quando pipocavam os trovões, enquanto o muque forte empurrava para lá e para cá a pá de madeira na casa de farinha?

     A casa de farinha. Meu Deus, a casa. A farinha.

     – Quem foi o desalmado que sumiu com a ferramenta de trabalho que guardei como lembrança?

     Tudo muito antes de o progresso chegar, do veneno das latas, do barulho das motos. Quando carregava a mandioca no lombo, colocava as raízes na água fresca retirada do tanque para preparar a massa e torrar a farinha. E dividi-la com os filhos e netos e irmãos e amigos, depois encher os cestos para vender o que sobrava. Foi antes de acordar no meio da noite, sonhando com um camaleão de aço que mastigava tudo e lhe triturava as costelas.

     A miséria é a mesma quando o velho Severino apura a vista, na linha do horizonte, no rumo da capoeira, e sente bater-lhe nas faces o vento rebelde que o tropel faz circular entre as umburanas, na perseguição ao touro fugido. E vê, novamente, a boiada no caminho do curral, a água juntando golfos no alagadiço, os bem-te-vis animados no fim da tarde.

     – Eu enterrava a pá de mexer a mandioca no forno, massa pra lá, farinha pra cá, e depois a desenterrava. Lembra disse, meu amigo?

     O cão o olha com intraduzível benevolência.

     – Vou abrir uma cova. É a parte que me cabe.

     Olha para dentro de casa, para se certificar de que não é visto por ninguém, e bota os bagos para fora:

     — Aqui pra vocês, filhos de uma égua!

     Capibaribe corre atrás de um preá que circula o lajedo lá longe.

     Severino sente medo de ficar sozinho, de ser perturbado pelo espírito do camaleão a tocar fogo nos cestos e no paiol.

     Num tempo em que os homens eram feitos à imagem e semelhança de Deus, vivera a bonança de suas terras, mastigando farinha com rapadura, com tripa de bode, com carne de teiú assada, se fartando com abóboras e melancias, dizendo como queria e como não queria o funcionamento do mundo, com esteira na varanda, rede e água fresca na beira da estrada.

     Dormira em colchão de capim macio, tivera uma fêmea de peitos e bunda talhados pelo criador para limpar os cabelos, arear os pés, catar piolhos e carrapatos. Sobretudo, para cavoucar suas unhas.

     – Naquele tempo, eu que mandava chover. Depois eu que mandava parar. Depois ordenava que chovesse de novo.

     A filha Maria retorna do tanque com o cesto de roupas na cabeça.

     – Falando sozinho, meu pai?

     – Com o cachorro.

     Maria sorri e pisa no alpendre, cantando:

     “Não é cova grande, é cova medida/É a terra que querias ver dividida...”.

     Capibaribe acompanha os passos dela, na esperança de uma sobra de osso na cozinha. Ouvir conversa de velho caduco não enche barriga.

     Cobertor, alpercatas de correia, roupa lavada tinha. O que lhe faltava, então? A filha fazia o possível; mas a vida, não. A vida não tem compromissos. Tivera dias de sonhos, touro na unha, cercas refeitas.

     É assim mesmo, fala pros seus botões, na ausência do cachorro:

     – E depois eu mandava que a chuva chovesse mais uma vez, quantas eu quisesse. Para logo ordenar que ela estancasse.

     Sonho ruim vem e muda o verbo do princípio. Vida vem e leva a gente. Vida vem e lava a gente. Vida vem e leva tudo. Como na enxurrada, animais morrendo afogados, mulher e meninos gemendo.

     O velho vira a moringa e toma uma talagada de aguardente. Começa a dançar no meio do quintal. O amigo entende o recado e logo se anima, mordendo os seus calcanhares.

     “É a terra que querias...”

     Começa a chover e Severino interrompe a dança, cansado.

     Olha em direção ao tanque, aponta o dedo e atira com a boca – Têi! Tei! – na linha do voo da juriti. O cachorro, também ofegante, pensa em empreender busca ao pássaro imaginário, mas desiste e senta-se ao lado do velho.

     O velho deita-se no chão, sobre o travesseiro das lembranças.

     Vai lá longe.

     Vai morar na casa de farinha. Mandioca no lombo, forno de lenha queimando a raiz, o alimento nascendo em seus braços. Matando o porco no quintal, rodeado de netos, a mulher matando galinhas, recolhendo os ovos no ninho, meu Deus, os pequenos morros onde brotavam cactos e que não tapavam a luz do sol, os bodes, lajedos, os preás, a cabeça rodando, a chuva, a barba molhada, o nariz escorrendo, um olhar de tristeza no olhar do papagaio de Macunaíma, uma vontade louca de chorar, se entregando à lama, se mijando todo, o soluço do porco, o sangue da galinha, Maria, minha filha, está chovendo farinha, essa água que não para de cair.

     Não para.   

(Do livro "Contos da vida absurda", Casarão do Verbo, 2014)



 

 

domingo, 19 de março de 2023

 

A música

     – Tem horas que a vida é que nem aquela música – ele disse, pegando a xícara e a garrafa térmica.

     – Que música? – Ela perguntou, picando cebola e esfregando o olho com as costas da mão.

     – Aquela da tarde e do viaduto. Um dia cai tudo mesmo em cima da gente. Geralmente, quando a gente pensa que as coisas estão nos conformes.

     Ela não disse nada. Começou a lavar o pimentão.

     – Está fazendo uma salada? – ele perguntou.

     – Refogado para a carne moída – ela disse.

     Ele pingou adoçante no cafezinho, bebeu e foi até a área de serviço. Olhou pelo basculante.

     – Parece que vai chover.

     – É. Está previsto.

     Voltou para a cozinha e botou a xícara na pia.

     – Por que você falou aquilo? – ela perguntou.

     – Aquilo, o quê?

     – Da música que diz que cai a tarde feito um viaduto.

     – Cai, não. Caía.

     – Isso. Caía a tarde...

     – Porque é assim que estou me sentindo, como se um viaduto de aço e concreto tivesse desabado sobre a minha cabeça.

     – É por causa de ontem? Você vai arrumar outro emprego logo.

     – Sei não.

     – Vai. Você é um profissional conhecido e respeitado.

     – É pouco.

     – Meu Deus! Onde já se viu? O que é que conta mais do que isso, criatura?

     – A idade. Estou começando a ficar fora do perfil desejado.

     – Perfil uma ova! – ela disse, misturando os temperos ao óleo e ao caldo de legumes, mexendo com a colher de pau. – Você é bom, meu amor. E isso é o que importa.

     – Quem é bom não perde emprego.

     – Como não? Você não disse que pediram a vaga para um protegido do diretor? Então?! Você não perdeu, tomaram. Essa lei não é de mercado, é de mercadorias.

     O telefone tocou e ele foi atender. Quando voltou, ela misturava a carne moída ao refogado.

     – Era da empresa. Deram-me a lista de documentos para a rescisão.

     – O que esse rapaz que entrou em seu lugar sabe fazer?

     – Nada. Era meu estagiário até ontem. Estava começando a aprender. Um garoto, podia ser meu filho.

     – Não é um caso isolado – ela disse, provando a comida.

     – Eu sei.

     – Acontece a toda hora.

     – Eu sei.

     – Nas melhores empresas.

     – Pois é.

     Ele perguntou se ela queria ajuda para pôr a mesa. Ela disse que ele poderia abrir um vinho. Ele disse que não tinha motivos para brindar.

     – Brindemos à falta de motivos – ela respondeu.

     E riu.

     Ele não riu.

     – Não conta para o Júnior não, tá? – ele pediu, durante o jantar.

     – Por que? O nosso filho conhece a vida, sabe como é que a banda toca.

     – Prefiro. Conto quando arrumar outro emprego. Digo que  fiz uma troca.

     – Você que sabe – ela disse, enchendo os copos.

     Ele começou a servir a massa e a carne moída:

     – E o Júnior, não vem jantar?

     – Disse que chegaria tarde. Tinha um chope com uns amigos.

     Ela levantou-se e foi até o aparelho de som.

     – Vou colocar uma música.

     – A que fala da tarde e do viaduto?

     – Não. Uma que diz que amanhã será outro dia.

     Ela sorriu novamente.

     Eles brindaram.

     O Júnior chegou.

     – Oi, pai. Oi, mãe. Já jantaram?

     – Acabamos neste momento. Ainda está tudo quente – disse a mãe.

     – Foi bom o chope? – perguntou o pai.

     – Foi. Comemoramos a promoção de um amigo. Era estagiário, virou chefe. Lá na empresa que você trabalha.

     Ela pegou as xícaras para o café. Ele preferiu um conhaque. Na cabeça, o verso e a melodia martelavam: “Um bêbado trajando luto...”

(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)



 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

 

Como num quadro sacrossanto

 


     – Deus me perdoe, mas parecia que eu estava diante do quadro da Virgem e o menino Jesus – o delegado repetia.

     Na volta da praia, naquela manhã que nada prometia, os olhos dela cruzam com os olhos que a observam do outro lado da rua. Espera o sinal fechar e atravessa a pista. Ele parado. Os olhos anunciando que iriam ao seu encontro.

     Ela quer perguntar quem é, de onde veio, o que faz ali? Mas antes mesmo de abrir a boca ele diz que a esperava.

     – Desde quando?

     – Desde cedo, quando você passou por aqui, ensolarada.

    A mulher pensa em fazer um convite, mas não é preciso. O menino já caminha ao seu lado, em silêncio.

    Ela segue à frente, apontando o caminho. Ele a acompanha, feito cachorro que encontra finalmente o rumo de casa. Atravessam a rua e a portaria do prédio, entram no apartamento iluminado, até que se fechem todas as cortinas. Até que caia a tarde, depois a noite, e abram um vinho, e peçam uma pizza, e outro vinho, e ela se pergunte o que está fazendo?

     Ele traz na quase ausência de pelos uma inocente promessa de morte. Todos os temores que atravessam as portas e janelas e basculantes na madrugada que os envolve, a irremediável noção de pecado, a falta de noção, os dias e dias que anunciam a chegada do anjo vingador. Ela pensa que mais cedo ou mais tarde vai odiá-lo. Ele beija o ódio em sua boca, suga a cólera que escorre célere pelo pescoço e molha o peito. Lambe o pescoço dela, o vão entre os seios, a barriga que treme nas veias do umbigo, o sexo que se desmancha feito uma fruta.

     – O seu veneno me embriaga – diz, com o sorriso mais falso e canalha do mundo, do jeito que ela começa a aprender a gostar.

     Ele nada nas águas do seu corpo, ao mesmo tempo em que se esparrama na piscina, mergulha no sofá e se seca nos lençóis. Como se a afogasse, misturando cerveja com presunto, uvas, ovos, melancia, amassando a polpa da fruta com os lábios e deixando escorrer pelo pescoço e o peito o suco vermelho que ela trata de beber avidamente, percorrendo todos os invernos cavernosos do verão, descendo mais, querendo descer ainda mais, enquanto ele empurra sua cabeça para cima, seu corpo para o lado, e diz que vai tomar banho.

     Ela não o conhece, não sabe se é serra ou serpente. E esse mundo anda tão perigoso. Ele sorri. Diz que é verdade, a mais pura das verdades, o mundo anda muito perigoso. Também não a conhece, e está morrendo de medo do que pode lhe acontecer.

     – O pior, claro, sempre acontece o pior nessas ocasiões, o mundo está cheio de histórias assim – ela geme.

     – Você quer que eu vá embora? – ele pergunta.

     Ela responde que sim. Ele diz que não demora, e já começa a arrumar a mochila, colocando lá dentro a bermuda, a camiseta, a sandália de dedos, o livro, o caderno, a caneta, o pente, a escova de dentes e a carteira de dinheiro sem dinheiro. Assim, tudo um. A outra bermuda e a outra camiseta, únicas peças que tem duplicadas, já estão no corpo, juntamente com o tênis.

     Ela observa os movimentos dele, fingindo indiferença, assobiando e fumando, como se não tivesse o coração em frangalhos. É quando ele pede um beijo de despedida, apenas um beijo, e tudo recomeça da tempestade, como uma catástrofe, uma vertigem, uma corredeira. E se pergunta quando vai aprender, será que um dia vai finalmente aprender?

     Ele diz que estava mesmo na hora, já não se sente bem ali. Ela se atira nos braços dele, aos prantos, não sabe onde estava com a cabeça.

     – Se você for embora, não sei o que será de mim.

     Ele levanta o corpo dela, abraça-a pela cintura, carrega-a até o quarto e a atira na cama, de um jeito que ela fica sem saber se o gesto foi de carinho, de indiferença ou de repulsa.

     Então ela o fotografa de diversas maneiras com a câmera do celular, dizendo que é para compor a próxima instalação que fará em Paris, que se chamará O menino nu. Em Paris, já pensou? Seu corpo em Paris. Não só sem roupas como entre os lençóis, mergulhado nos travesseiros, com a cueca nos ombros, a calcinha dela entre os dentes, e até uma selfie com ele aconchegado em seu colo, a cabeça mergulhada em seus peitos.

     Ela vai até a imensa janela de vidro, de onde contempla o mar e se vê lá embaixo, na areia, o corpo ainda jovem e vigoroso, bronzeado, explodindo no biquíni minúsculo. Ali estão todos os vendedores de mate e de limão e de biscoito que cruzam o passado para lá e para cá, outros meninos tão lindos quanto o que cochila em sua cama,  

     Então se vê novamente voltando para casa, ainda menina, e da janela olha para trás em direção à porta, para ver se aproximando a lembrança mais amarga, aquela que o tempo tragou. Mas quem se aproxima é ele, de passagem em direção ao chuveiro, toalha enrolada na cintura, abraçando-a por trás e perguntando:

     – Por que você está chorando, coração?

     Ela diz que chora porque não consegue segurar o tempo. Porque a menina que um dia habitou o seu corpo está tão longe, foi embora sem se despedir. Porque as despedidas, como as do pai e da mãe em seus leitos de morte, também não valem a pena. E porque sabe que ele irá embora tão logo acabe a festa e antes mesmo que os músicos recolham os instrumentos.

     Ele vai à janela e fica balançando a cabeça como se acompanhasse o movimento das ondas. Ela diz que caso ele pense na alternativa do roubo seguido de morte, não precisa revirar o quarto, desarrumar as gavetas nem quebrar objetos, pois o cofre está aberto e as joias moram na mesinha de cabeceira. Ele sorri e diz que ela é mesmo maluca, vive no passado, não sabe nada dos apavorantes amores modernos nem conhece os seus métodos. Depois sussurra:

     – Não se assuste comigo, moça das cavernas, eu sou apenas um moleque carente.

     – De rua? – ela pergunta.

     – Das ruas – responde ele.

     Depois do tradicional discurso para os gravadores, onde enfatiza “a beleza física estonteante do jovem, a letalidade do veneno utilizado e a frieza da assassina”, o delegado diz que no celular encontrado entre o colchão e a lateral da cama havia fotos inocentes, indecentes, lúdicas, cínicas, românticas e até sacras – como a que mandou fazer cópias em papel e distribuir à imprensa: o casal reproduzindo teatralmente a cena do quadro de Pompeo Batoni, em que a Virgem Mãe amamenta candidamente o menino Jesus.

(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema", Editora Faria e Silva, 2022)