segunda-feira, 11 de novembro de 2024

 

Tudo na vida passa

      Tem gente que gosta de ganhar muito dinheiro, de comprar fazendas cheias de bois, prédios inteiros, de viajar pelo mundo afora. Eu não. Gosto mesmo é de ficar parado aqui, na porta da loja de discos, escutando música e dançando na calçada suja. Só para dar uma freada na correria dos desavisados que passam para lá e para cá. Esse é o meu único programa na vida.

     Um ou outro até para e fica assistindo à minha dança, depois dá um dinheirinho. Mas dá porque quer, eu não peço. Não é para ganhar dinheiro que exerço a minha arte, é só para me divertir. Tem gente até que acha que sou um sujeito engraçado, cai na gargalhada, aplaude e balança a cabeça em sinal de aprovação. Deve ser por falta do que fazer. Mas têm uns que pensam que eu sou é maluco mesmo, olham enviesado com caras de poucos amigos, puxam a mulher pelo braço, afastam as crianças. Não faz mal, Deus está vendo.

     Conto ainda aqui com a vantagem de poder ficar o dia inteiro apreciando os movimentos da praça, tomando pé da vida dos transeuntes assustados, escutando conversas e reparando nas roupas e sapatos de todo mundo que circula nessa passarela. Estou há tanto tempo na porta dessa loja que já fiz até algumas amizades boas. Recebo bom-dia e dou bom-dia para um montão de gente que trabalha perto ou almoça no restaurante aqui do lado, falo com vadios, bêbados e indivíduos de paletó e gravata.

     — Como é, Zé, curtindo aí o seu sonzinho legal? — pergunta um.

     — Pois é, doutor. Essa é a vida que se leva e isso é o que se leva dessa vida — dou uma de filósofo e ensaio mais uns passos de dança moderninha, que afinal de contas eu não sou de ontem.

     Só quem não me cumprimenta direito quando passa nessa calçada é Rosa Alice, aquela ingrata. Logo ela, por quem tenho um amor danado, coisa séria, paixão mesmo, desesperadora. Ah, se eu pudesse um dia me casar com Rosa Alice, que passa toda manhã a caminho da loja de sucos, carregando toda a beleza que o Salvador achou por bem lhe dar e que jamais sobrará para um nordestino feio assim que nem eu.

     — Bom dia, Rosa Alice — insisto na ladainha de todo dia. E nada. É como se eu não existisse, se é que existo mesmo.

     Outro dia escutei uma música aí na loja, dessas paradonas que nem dá para a gente dançar, mas que é uma gostosura de se ouvir. Dizia que não sei quem passa todo dia não sei onde, "sem ver seu vigia, catando a poesia que entornas no chão". É comigo, pensei logo. O vigia sou eu. Vigia baratinado da propriedade alheia que é Rosa Alice, essa moça desatenta, que passa em frente à loja de discos deixando cair a poesia que eu não apanho do chão.

Olho para a loja de sucos e lá está ela, compenetrada atrás do balcão. Fazendo suco de manga, de laranja, de morango e de tudo quanto há para os que podem pagar.

     "Vê se te enxerga, Zé feio", ela não diz, mas eu penso. E dou mais umas reboladas acompanhando a música movimentada que está tocando, para ver se desenferrujo os ossos e afasto os pensamentos.

     Essa mania de ficar parado em porta de loja de discos eu tenho desde o meu tempo no interior. Ficava horas escutando música e dançando sozinho em frente ao Rei do Disco, em Feira de Santana. Só que naqueles tempos as melodias eram outras, eram outras as danças. "Esqueça/Ele não te ama/Esqueça/Ele não te quer". Essa tocava sempre e era das minhas preferidas.

     Mas isso já faz muito tempo. Eu vivia lá com meu pai, minha mãe, uma fileira de irmãos abestalhados assim que nem eu. Não conhecia nenhuma Rosa Alice, essa que é a mulher mais bonita de todo o Rio de Janeiro, de São Sebastião. Agora façam o favor de abrir a roda porque lá vem um baião e eu vou acompanhar no arrasta-pé e no jogo de cintura.

     Ontem entrei na loja de sucos e pedi um suco. Rosa Alice me olhou de cima até embaixo e foi logo avisando que só com o dinheiro na frente. Mostrei o dinheiro, mas ela disse que eu tinha que pagar primeiro na caixa e depois apanhar o suco no balcão. Deixei a droga do suco em cima do balcão e fui tomar uma cachaça com o dinheiro. Nem sei se pegou bem ou se pegou mal.

     Noite passada eu sonhei que me casava com Rosa Alice na Igreja da Matriz, lá em Feira de Santana. Ela toda vestidinha de branco e eu de paletó e gravata. Os bancos de madeira da Catedral apinhados de gente. Minha mãe, meu pai, meus irmãos todos, meus amigos de infância, a cidade inteira. Todos orgulhosos de mim, porque eu havia escolhido uma mulher muito bonita para ser a mãe dos meus filhos. Meu sonho é ter um filho, que vai se chamar José Neto, pois eu sou José Filho e José puro é o meu velho pai. Mas era só um sonho mesmo e no dia seguinte eu já estava aqui, rebolando e falando besteiras.

     Outro dia passou uma desorientada aqui na porta da loja de discos, quando eu estava dançando ao som de uma melodia que falava "esses moços/esses pobres moços/ai, se eles soubessem o que eu sei". A mulher maluca parou e ficou me olhando dançar. Mas não olhava com a cara emburrada de alguns que passam nem prendendo o riso, que nem os outros. Olhou com um jeitinho cúmplice, como se quisesse me dar um empurrão pra frente e me tirar do atoleiro.

     Fiquei comovido e convidei a mulher para dançar comigo, esbanjando simpatia. "Me conceda a contradança", eu disse, como nos velhos tempos. E ela veio toda dengosa para os meus braços. Dançamos de rostos colados, repetindo os versos da canção.

      — Meu nome é Almerinda — ela disse.

      — Eu te batizo Rosa Alice.

     Rosa Alice desapareceu. Hoje perguntei por ela ao balconista da loja de sucos. Se casou, deixou o emprego e está morando com o marido mecânico em Nilópolis. Pobrezinha dela. Pobrezinha do meu grande amor, enterrada num quartinho minúsculo lá no fim do mundo. Senti uma dorzinha de cabeça e vontade de chorar. Tratei de cortar o mal pela raiz, correndo para a porta da loja na horinha em que começava uma música de novela, dessas bem movimentadas:

 

Tudo na vida passa

Tudo no mundo cresce

Nada é igual a nada.

 

     Assim são as coisas do mundo. Nada igual a nada. Um dia Rosa Alice volta ou não volta. Vou ficando por aqui, enfrentando a vida que insiste tanto em me contrariar.


(Do livro "A viagem e outros contos", Editora Patuá, 2024)

 

 

 

sábado, 2 de novembro de 2024

 

A farinha e o sonho

 

 

O homem velho deixa a vida e a morte para trás /

 Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais.

Caetano Veloso

 


     Sentado no batente da porta, cavoucando as unhas dos pés que se roçam nas pedras, o velho Severino, mais morte do que vida, coça com as juntas dos dedos o osso da cabeça do cachorro Capibaribe. Cheio de fome e de pulgas, o cachorro olha sem qualquer paixão para o umbuzeiro carregado de frutos e de passarinhos.

     Severino diz mais dia menos dia tudo isto se acaba, meu amigo.

     Capibaribe entende tudo e late para o nada.

     O animal estava para o velho como o papagaio Aruaí esteve para o grande imperador Macunaíma. Depois de acompanhar os passos do herói sem caráter e de fazer parte do seu séquito, foi encontrado um dia pelo escritor a quem relatou tudo o que se passara, antes de bater asas no rumo de Lisboa.

     A tribo de Macunaíma se acabara, devorada pelo tempo e por intempéries humanas; a do homem velho estava chegando ao fim.

     – Cadê a farinha que guardei aqui?

     O papagaio sabia conservar no silêncio as frases e feitos do herói.

     O cachorro também.

     O calor provoca coceiras em cachorro e ensopa de suor o peito do velho Severino. Ele pede a Deus que mande chuva bem forte, daquelas que parecem que vão derrubar o mundo, água limpa escorrendo pela cumeeira, cada pingo enchendo um pote.

     Cadê os raios que desciam em disparada, dançando feito minhocas luminosas e tontas? E o barulho que se ouvia por trás da serra, quando pipocavam os trovões, enquanto o muque forte empurrava para lá e para cá a pá de madeira na casa de farinha?

     A casa de farinha. Meu Deus, a casa. A farinha.

     – Quem foi o desalmado que sumiu com a ferramenta de trabalho que guardei como lembrança?

     Tudo muito antes de o progresso chegar, do veneno das latas, do barulho das motos. Quando carregava a mandioca no lombo, colocava as raízes na água fresca retirada do tanque para preparar a massa e torrar a farinha. E dividi-la com os filhos e netos e irmãos e amigos, depois encher os cestos para vender o que sobrava. Foi antes de acordar no meio da noite, sonhando com um camaleão de aço que mastigava tudo e lhe triturava as costelas.

     A miséria é a mesma quando o velho Severino apura a vista, na linha do horizonte, no rumo da capoeira, e sente bater-lhe nas faces o vento rebelde que o tropel faz circular entre as umburanas, na perseguição ao touro fugido. E vê, novamente, a boiada no caminho do curral, a água juntando golfos no alagadiço, os bem-te-vis animados no fim da tarde.

     – Eu enterrava a pá de mexer a mandioca no forno, massa pra lá, farinha pra cá, e depois a desenterrava. Lembra disse, meu amigo?

     O cão o olha com intraduzível benevolência.

     – Vou abrir uma cova. É a parte que me cabe.

     Olha para dentro de casa, para se certificar de que não é visto por ninguém, e bota os bagos para fora:

     — Aqui pra vocês, filhos de uma égua!

     Capibaribe corre atrás de um preá que circula o lajedo lá longe.

     O velho Severino sente medo de ficar sozinho, de ser perturbado pelo espírito do camaleão a tocar fogo nos cestos e no paiol.

     Num tempo em que os homens eram feitos à imagem e semelhança de Deus, vivera a bonança de suas terras, mastigando farinha com rapadura, com tripa de bode, com carne de teiú assada, se fartando com abóboras e melancias, dizendo como queria e como não queria o funcionamento do mundo, com esteira na varanda, rede e água fresca na beira da estrada.

     Dormira em colchão de capim macio, tivera uma fêmea de peitos e bunda talhados pelo criador para limpar os cabelos, arear os pés, catar piolhos e carrapatos. Sobretudo, para cavoucar suas unhas.

     – Naquele tempo, eu que mandava chover. Depois eu que mandava parar. Depois ordenava que chovesse de novo.

     A filha Maria retorna do tanque com o cesto de roupas na cabeça.

     – Falando sozinho, meu pai?

     – Com o cachorro.

     Maria sorri e pisa no alpendre, cantando:

     “Não é cova grande, é cova medida/É a terra que querias ver dividida...”.

     Capibaribe acompanha os passos dela, na esperança de uma sobra de osso na cozinha. Ouvir conversa de velho caduco não enche barriga.

     Cobertor, alpercatas de correia, roupa lavada tinha. O que lhe faltava, então? A filha fazia o possível; mas a vida, não. A vida não tem compromissos. Tivera dias de sonhos, touro na unha, cercas refeitas.

     É assim mesmo, fala pros seus botões, na ausência do cachorro:

     – E depois eu mandava que a chuva chovesse mais uma vez, quantas eu quisesse. Para logo ordenar que ela estancasse.

     Sonho ruim vem e muda o verbo do princípio. Vida vem e leva a gente. Vida vem e lava a gente. Vida vem e leva tudo. Como na enxurrada, animais morrendo afogados, mulher e meninos gemendo.

     O velho vira a moringa e toma uma talagada de aguardente. Começa a dançar no meio do quintal. O amigo entende o recado e logo se anima, mordendo os seus calcanhares.

     “É a terra que querias...”

     Começa a chover e Severino interrompe a dança, cansado.

     Olha em direção ao tanque, aponta o dedo e atira com a boca – Têi! Tei! – na linha do voo da juriti. O cachorro, também ofegante, pensa em empreender busca ao pássaro imaginário, mas desiste e senta-se ao lado do velho.

     O velho deita-se no chão, sobre o travesseiro das lembranças.

     Vai lá longe.

     Vai morar na casa de farinha. Mandioca no lombo, forno de lenha queimando a raiz, o alimento nascendo em seus braços. Matando o porco no quintal, rodeado de netos, a mulher matando galinhas, recolhendo os ovos no ninho, meu Deus, os pequenos morros onde brotavam cactos e que não tapavam a luz do sol, os bodes, lajedos, os preás, a cabeça rodando, a chuva, a barba molhada, o nariz escorrendo, um olhar de tristeza no olhar do papagaio de Macunaíma, uma vontade louca de chorar, se entregando à lama, se mijando todo, o soluço do porco, o sangue da galinha, Maria, minha filha, está chovendo farinha, essa água que não para de cair.

     Não para.   

(Do livro "A viagem e outros contos", Editora Patuá, 2024)