Tudo na vida passa
Um ou outro até para e fica assistindo à
minha dança, depois dá um dinheirinho. Mas dá porque quer, eu não peço. Não é
para ganhar dinheiro que exerço a minha arte, é só para me divertir. Tem gente
até que acha que sou um sujeito engraçado, cai na gargalhada, aplaude e balança
a cabeça em sinal de aprovação. Deve ser por falta do que fazer. Mas têm uns
que pensam que eu sou é maluco mesmo, olham enviesado com caras de poucos
amigos, puxam a mulher pelo braço, afastam as crianças. Não faz mal, Deus está
vendo.
Conto ainda aqui com a vantagem de poder ficar o dia inteiro apreciando
os movimentos da praça, tomando pé da vida dos transeuntes assustados,
escutando conversas e reparando
nas roupas e sapatos de todo mundo que circula nessa passarela. Estou há tanto
tempo na porta dessa loja que já fiz até algumas amizades boas. Recebo bom-dia
e dou bom-dia para um montão de gente que trabalha perto ou almoça no
restaurante aqui do lado, falo com vadios, bêbados e indivíduos de paletó e
gravata.
— Como é, Zé, curtindo aí o seu sonzinho
legal? — pergunta um.
— Pois é, doutor. Essa é a vida que se
leva e isso é o que se leva dessa vida — dou uma de filósofo e ensaio mais uns
passos de dança moderninha, que afinal de contas eu não sou de ontem.
Só quem não me cumprimenta direito quando
passa nessa calçada é Rosa Alice, aquela ingrata. Logo ela, por quem tenho um
amor danado, coisa séria, paixão mesmo, desesperadora. Ah, se eu pudesse um dia
me casar com Rosa Alice, que passa toda manhã a caminho da loja de sucos,
carregando toda a beleza que o Salvador achou por bem lhe dar e que jamais
sobrará para um nordestino feio assim que nem eu.
—
Bom dia, Rosa Alice — insisto na ladainha de todo dia. E nada. É como se eu não
existisse, se é que existo mesmo.
Outro
dia escutei uma música aí na loja, dessas paradonas que nem dá para a gente
dançar, mas que é uma gostosura de se ouvir. Dizia que não sei quem passa todo
dia não sei onde, "sem ver seu vigia, catando a poesia que entornas no
chão". É comigo, pensei logo. O vigia sou eu. Vigia baratinado da
propriedade alheia que é Rosa Alice, essa moça desatenta, que passa em frente à
loja de discos deixando cair a poesia que eu não apanho do chão.
Olho para a loja de sucos e lá está ela, compenetrada
atrás do balcão. Fazendo suco de manga, de laranja, de morango e de tudo quanto
há para os que podem pagar.
"Vê se te enxerga, Zé feio", ela
não diz, mas eu penso. E dou mais umas reboladas acompanhando a música
movimentada que está tocando, para ver se desenferrujo os ossos e afasto os
pensamentos.
Essa mania de ficar parado em porta de
loja de discos eu tenho desde o meu tempo no interior. Ficava horas escutando
música e dançando sozinho em frente ao Rei do Disco, em Feira de Santana. Só
que naqueles tempos as melodias eram outras, eram outras as danças.
"Esqueça/Ele não te ama/Esqueça/Ele não te quer". Essa tocava sempre
e era das minhas preferidas.
Mas isso já faz muito tempo. Eu vivia lá
com meu pai, minha mãe, uma fileira de irmãos abestalhados assim que nem eu.
Não conhecia nenhuma Rosa Alice, essa que é a mulher mais bonita de todo o Rio
de Janeiro, de São Sebastião. Agora façam o favor de abrir a roda porque lá vem
um baião e eu vou acompanhar no arrasta-pé e no jogo de cintura.
Ontem entrei na loja de sucos e pedi um
suco. Rosa Alice me olhou de cima até embaixo e foi logo avisando que só com o
dinheiro na frente. Mostrei o dinheiro, mas ela disse que eu tinha que pagar
primeiro na caixa e depois apanhar o suco no balcão. Deixei a droga do suco em
cima do balcão e fui tomar uma cachaça com o dinheiro. Nem sei se pegou bem ou
se pegou mal.
Noite passada eu sonhei que me casava com
Rosa Alice na Igreja da Matriz, lá em Feira de Santana. Ela toda vestidinha de
branco e eu de paletó e gravata. Os bancos de madeira
da Catedral apinhados de gente. Minha mãe, meu pai, meus irmãos todos, meus
amigos de infância, a cidade inteira. Todos orgulhosos de mim, porque eu havia
escolhido uma mulher muito bonita para ser a mãe dos meus filhos. Meu sonho é
ter um filho, que vai se chamar José Neto, pois eu sou José Filho e José puro é
o meu velho pai. Mas era só um sonho mesmo e no dia seguinte eu já estava aqui,
rebolando e falando besteiras.
Outro dia passou uma desorientada aqui na
porta da loja de discos, quando eu estava dançando ao som de uma melodia que
falava "esses moços/esses pobres moços/ai, se eles soubessem o que eu
sei". A mulher maluca parou e ficou me olhando dançar. Mas não olhava com
a cara emburrada de alguns que passam nem prendendo o riso, que nem os outros.
Olhou com um jeitinho cúmplice, como se quisesse me dar um empurrão pra frente
e me tirar do atoleiro.
Fiquei comovido e convidei a mulher para
dançar comigo, esbanjando simpatia. "Me conceda a contradança", eu
disse, como nos velhos tempos. E ela veio toda dengosa para os meus braços.
Dançamos de rostos colados, repetindo os versos da canção.
— Meu nome é Almerinda — ela disse.
— Eu te batizo Rosa Alice.
Rosa Alice desapareceu. Hoje perguntei por
ela ao balconista da loja de sucos. Se casou, deixou o emprego e está morando
com o marido mecânico em Nilópolis. Pobrezinha dela. Pobrezinha do meu grande
amor, enterrada num quartinho minúsculo lá no fim do mundo. Senti uma dorzinha
de cabeça e vontade de chorar. Tratei de cortar o mal
pela raiz, correndo para a porta da loja na horinha em que começava uma música
de novela, dessas bem movimentadas:
Tudo
na vida passa
Tudo
no mundo cresce
Nada
é igual a nada.
Assim
são as coisas do mundo. Nada igual a nada. Um dia Rosa Alice volta ou não
volta. Vou ficando por aqui, enfrentando a vida que insiste tanto em me
contrariar.
(Do livro "A viagem e outros contos", Editora Patuá, 2024)
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