quinta-feira, 5 de junho de 2025

 

Mania de outono

 

 

“Surge a alvorada, folhas a voar

 E o inverno do meu tempo começa a brotar, a minar”.

Cartola

 

      Outono era a moringa na mesa forrada de papel crepom. A caneca de alumínio deixava a água fresquinha, gosto de terra no fundo mais fundo, cheiro de chuva no gargalo. Vento encanado que podia constipar, menino remelento de nariz a escorrer pelos lábios. Peito apertado na cor doce e melancólica de um quase maio.

     A mania de outono eu tenho desde muito cedo. Desde bem pequeno mesmo, lá na província, onde as pessoas nem davam muita bola para essa história de estação do ano. Tinha o verão, com aquele calor medonho dos tempos sem ar-condicionado nem ventilador, e o inverno, que trazia frio de doer nos dedos e obrigar a dormir de pijama. Outono e primavera também existiam, mas a esses ninguém dava muita confiança.

     Comecei a prestar atenção no outono no dia em que a professora Alda exibiu o livrão cheio de fotos coloridas, mostrando como a natureza reagia às boas ou más influências climáticas, como se comportava diante de cada uma delas, se derretendo toda quando o outono anunciava a chegada triunfal. O papel do livro ficava mais cheiroso nas páginas que mostravam árvores se descabelando, montanhas abrindo os braços para os dentes do sol que banhavam tudo de um amarelo meio laranja avermelhado, sol que parecia vir de outro mundo e que jamais passara nem mesmo de passagem pela minha cidade.

     Peguei mania e comecei a colecionar folhas caídas na praça, sobre calçadas e muros da alameda que acompanhava o caminho da escola. E passei a observar, encantado, que aquelas folhas, meio marrom amareladas, disputavam em beleza com os frutos da última primavera, foram verdes sobre verdes no verão que acabou de acabar e estarão renascendo daqui a pouco, no inverno que o vento mais fino já anuncia. Fazia as contas e cálculos das transformações pelas quais deveria passar a minha vida até a explosão do próximo outono.

     Por que o declínio e a decadência? De onde tiraram as explicações encontradas no verbete do primeiro dicionário que me caiu às mãos? Até aquele dia, outono para mim era beleza e renascimento. Coloquei as impressões no poeminha outonal que fez os colegas rirem bastante e a professora condescender um “ele é sensível”. Também li para minha mãe, à noite, enquanto ela lavava pratos. Depois do ponto final, disse “vá dormir, você está cansado”, e até hoje não sei se o comentário significou uma aprovação. Mas a reação generalizada me mostrou que a compreensão do outono é para poucos.

     Quantas vezes, ainda no meu pequeno mundo, me deitei à tardinha sobre a esteira de folhas das palmeiras, da cajazeira, dos umbuzeiros? Cabeça recostada no travesseiro improvisado de outono e os olhos na impenetrável luz dos fotógrafos e dos pintores, até o sol se cansar de mim e fugir para detrás das montanhas. Logo, logo vem o inverno e eu me fecho em copas, que nem as árvores, escondo os meus frutos.

     Catei folhas na volta da escola, na ida para o trabalho, na vinda dos filhos, na despedida dos pais, sem precisar dar explicações para ninguém. Hoje não mais. Recolho apenas as que as máquinas de limpeza não enxergam, escondidas na grama da beira da piscina. Quando eles descuidam, apanho algumas no tonel de lixo. Só que pouco descuidam e os olhos de verão são fogo em brasa nos meus calcanhares.

     Declínio e decadência. O segurança chuta para longe a belíssima folha da mangueira que veio caindo, caindo e se aproximando de mim. A bota do animal quase esmaga os meus dedos, enquanto se aproxima o enfermeiro vestido de inverno, sem uma gota de luz no semblante, bordando um sorriso de falsa primavera, o mundo girando, girando e me devolvendo o outono que ele traz na pontinha da agulha.


(Do Livro "A viagem e outros contos", Editora Patuá, 2024)



 

 

domingo, 13 de abril de 2025

No dia em que vim me embora

     A vida de um homem se borda no amor ou no desamor. No afeto ou na indiferença. Pode ser a soma de todas as sobras, de tudo aquilo que não teve, da indelicadeza de uma mãe, o bigode de um pai, a ausência de um cachorro. Também se desenha e se borda em um diálogo assim:

Você se apresse, que não tenho todo o tempo do mundo para ficar à sua disposição.

Quase pronto, pai. Posso saber para onde vamos?

Já disse. Para o tal do seminário.

E por que o senhor resolveu que tenho que ir para um seminário?

Não resolvi nada. É coisa de sua mãe. Ideia lá dela.

Meu pai falava tudo assim, de um jeito próprio, parecia escarrar e cuspir as frases, sem muito cuidado com as palavras.

      Entendi, mas fiz que não. Com o pé, ensaiei um carinho no cachorro, que parecia estar tão triste quanto eu. Meu pai percebeu.

    – E desmonta essa cara de tristeza. Parece um bezerro a caminho da castração. Não é o fim do mundo, menino.

     – Porque não é o senhor que está deixando sua casa para ir não sei para onde.

     – Você não vai para não sei onde. Vai para um seminário, estudar para se tornar um homem sabido e temente a Deus.

– Grande coisa!

– Você está sendo mal-agradecido.

– Eu não queria, pai.

– Sua mãe decidiu.

– Eu sei.

– Tá decidido.

– Eu sei.

– É assim que a banda toca. São assim as coisas neste mundo.

– Vou poder levar o meu cachorro?

– Não. Eles não aceitam bicho lá.

    O sol, sempre intenso naquele pedaço de mundo, parecia mais intenso ainda no dia da minha partida.

     Subimos na carroceria do caminhão que levaria até a rodoviária da cidade mais próxima, onde tomaríamos o ônibus. Minha mãe me entregou a sacola de couro com o que chamou de “minhas coisas”: um sapato surrado, alpercatas, camisas mal engomadas, duas ou três calças curtas. O cachorro não veio. Minha mãe me deu um beijo na testa e disse secamente “Se cuide”. Meu pai não disse nada. Nem eu.

     Era muito cedo ainda e fazia frio. Quando nos acomodamos nos bancos de madeira da carroceria, meu pai esfregou a mão em minha perna, para me esquentar. Mordia o lábio inferior e apertava com os dentes os fios mais compridos do bigode.

– Vai ser bom para você – ele disse.

– Fingi que não ouvi e tentei me distrair contando as árvores que passavam correndo na estrada, na direção contrária à do caminhão.

– Você vai aprender a ler, conhecer todas as histórias bonitas que existem nos livros, e vai ter comida nas horas certas.

Voltei minha atenção para a conversa dos outros homens sentados nos bancos, os companheiros de viagem. Eles fumavam, sorriam mostrando os dentes estragados e falavam sem parar de gado, de porco, de cabras, cercas e falta de água nas cacimbas.

– Vai ter roupas sempre limpas, filho. E no fim do ano vem passar as férias em casa.

– Não venho – reagi.

– Não vem?

    Meu pai apertava mais os lábios, coçava a barba e tinha um olho que parecia tremer sem parar. Devia estar triste, nervoso, com saudades de minha mãe.

     Continuei impiedoso:

– Não venho.

– Eu busco você.

– Mas não me traz de volta. Não piso nunca mais os pés em sua casa.

No ônibus que nos levava para o seminário, ele tratou de voltar ao assunto. Eu repeti toda a malcriação.

     A paisagem era mais verde do que na estrada anterior. Uns pingos de chuva dançavam no vidro da janela. Eu via o céu, as árvores passando, e o perfil do meu pai refletindo no vidro da janela do ônibus. Ele estava triste, mas tentou novamente ser gentil:

– Pensando na morte da bezerra?

– Em meu cachorro.

– Sua mãe vai cuidar bem dele.

– Minha mãe não cuida bem de ninguém nem de nada.

– Eu cuido dele.

 O senhor não tem tempo.

– Vou cuidar muito bem do seu cachorrinho, você vai ver. Como é o nome dele?

– Não tem. É cachorro mesmo.

– Vou cuidar muito bem de Cachorro – repetia meu pai, enquanto me entregava com a sacola de couro à recepcionista. Que me levou até o quarto onde já estavam uns quinze meninos, que me mostrou o banheiro coletivo e a toalha de banho, que tentava sorrir para mim e que me trouxe de volta até a recepção do seminário quando eu disse, aos prantos, que estava arrependido por não ter aceitado o abraço nem o beijo de despedida que o meu pai deixou parado no ar.

     Daí em diante, foi contar os dias até a chegada das primeiras férias, para ficar parado horas no portão, esperando a chegada do meu pai, os olhos parados na direção da estrada e as calças cada vez mais curtas.

     Mas quem veio foi minha mãe e disse que eu iria com ela para o período de férias em casa, que podia desmanchar a pose de enfezado e parar de esperar pelo meu pai porque ele não viria. Meu pai morreu pouco tempo depois de me deixar no seminário. Não avisaram para evitar sofrimentos desnecessários.

     Cumpri orgulhosamente minha promessa de não voltar nunca mais. Hoje, que já abandonei o seminário e me perdi no mundo, lembro-me de pouquíssimas coisas daqueles dias: os dentes estragados dos homens na carroceria do caminhão, o olho comprido e acho que molhado do meu pai pesando em minha nuca, enquanto eu acompanhava a recepcionista pelo corredor, e a saudade imensa que eu sentia do meu cachorro.

(Do livro "A viagem e outros contos", Editora Patuá, 2024)




domingo, 9 de fevereiro de 2025

 

Mãos dadas

      Eu tinha verdadeira adoração por ela. Um dia perguntou se eu não sentia vergonha pelo fato de ela ser puta. Eu disse você é feliz assim e isto me faz feliz, ou uma besteira dessas. Na verdade, não me incomodava nem um pouco, estava mesmo era me lixando pros seus draminhas. Ela fingiu acreditar e abriu o quebra-vento, depois balançou o cabelo prum lado e pro outro, como gostava de fazer quando saíamos de carro.

– Mas você tem vergonha de sair de mãos dadas comigo – ela disse.

– Claro que não – respondi.

– Então por que não passeia de mãos dadas comigo por aí?

     Comcei a ficar puto com aquele papo, sempre fico puto com esses papos, mas procurei não demonstrar:

– Sabe o que é? Acho a maior besteira andar por aí de mãos dadas ou de braços dados. Não ando assim com ninguém, acho que nem sei andar desse jeito, não acerto o passo.

– Nem com a sua mulher você andava?

– Não.

     Eu disse que tinha verdadeira adoração por ela, mas que detestava aquela conversa. Sempre gostei muito de putas, mas detesto conversa de putas. Ou bebem demais e ficam escrachadas, abrindo as pernas fora de hora e dizendo palavrão, ou ficam com essa mania de mulherzinha, querendo andar de mãos dadas e de braços dados, fazer compras com a gente no shopping.

     Ela pegou uma escova enorme na bolsa e começou a ajeitar os cabelos, desarrumados pelo vento. Tinha cabelos bonitos, putas geralmente têm cabelos bonitos porque cuidam bem deles. Depois pegou o batom e começou a avermelhar os lábios.

– E à missa? Você iria à missa comigo? – perguntou.

– Claro que iria.

– Mentiroso.

– Não me chama de mentiroso. Vou à missa com você qualquer dia desses,

você pode até apostar.

– Qualquer dia desses, não. Vamos hoje – e tentou me beijar daquele jeito

que parecia beijo de cachorro, a língua para cima e para baixo, uma luva úmida no meu pescoço.

– Para.

– Tá vendo? Além de vergonha, tem nojo de mim.

     Eu disse que não tinha nojo coisa nenhuma. Ela insistiu que eu tinha nojo dela, por isso não gostava de beijo na boca nem de lambida no pescoço.

– Já disse que não tenho nojo de você, porra! – rosnei, batendo com a mão

espalmada no painel do carro.

     Ela se assustou, me olhou até com medo, mas mesmo assim voltou ao lengalenga. Puta é foda mesmo:

– Então passeia de mãos dadas, me leva à missa, ao cinema, ao restaurante,

me dá um beijo de novela.

– Não vejo novela.

– Então me dá um beijo de cinema.

Eu disse não enche o saco e ela berrou não fala assim comigo, seu cavalo.

Perdi de vez paciência, meti o cotovelo nos peitos dela e gritei cala a boca agora, sua puta escrota. Ela disse cala a boca é o cacete e blasfemou que puta era minha mãe. Porra, logo minha mãe, a vaca não sabia mesmo com quem estava se metendo. Se tem uma coisa que não admito é que falem de minha mãe, desde pequeno, quando quebrei a cara de um colega de escola. O merdinha falou que minha mãe ficava na zona enquanto eu dormia.

     Segurei o volante do carro com uma mão e com a outra dei uma bofetada certeira. Ela chorou, xingou e gritou olha para a frente, seu débil mental. E quando olhei para a frente já estava enfiando o carro em cima do poste.

     Não foi por querer que direcionei para o poste o lado do carona. Não foi por cafajestada que salvei a minha pele e acabei com a vida da única mulher que talvez tenha amado na vida. Eu tinha, mesmo, verdadeira adoração por ela. Juro que se ainda desse tempo eu iria de mãos dadas com ela até para o inferno.


(Do livro "A viagem e outros contos", Editora Patuá, 2024)

 

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

 

Tudo na vida passa

      Tem gente que gosta de ganhar muito dinheiro, de comprar fazendas cheias de bois, prédios inteiros, de viajar pelo mundo afora. Eu não. Gosto mesmo é de ficar parado aqui, na porta da loja de discos, escutando música e dançando na calçada suja. Só para dar uma freada na correria dos desavisados que passam para lá e para cá. Esse é o meu único programa na vida.

     Um ou outro até para e fica assistindo à minha dança, depois dá um dinheirinho. Mas dá porque quer, eu não peço. Não é para ganhar dinheiro que exerço a minha arte, é só para me divertir. Tem gente até que acha que sou um sujeito engraçado, cai na gargalhada, aplaude e balança a cabeça em sinal de aprovação. Deve ser por falta do que fazer. Mas têm uns que pensam que eu sou é maluco mesmo, olham enviesado com caras de poucos amigos, puxam a mulher pelo braço, afastam as crianças. Não faz mal, Deus está vendo.

     Conto ainda aqui com a vantagem de poder ficar o dia inteiro apreciando os movimentos da praça, tomando pé da vida dos transeuntes assustados, escutando conversas e reparando nas roupas e sapatos de todo mundo que circula nessa passarela. Estou há tanto tempo na porta dessa loja que já fiz até algumas amizades boas. Recebo bom-dia e dou bom-dia para um montão de gente que trabalha perto ou almoça no restaurante aqui do lado, falo com vadios, bêbados e indivíduos de paletó e gravata.

     — Como é, Zé, curtindo aí o seu sonzinho legal? — pergunta um.

     — Pois é, doutor. Essa é a vida que se leva e isso é o que se leva dessa vida — dou uma de filósofo e ensaio mais uns passos de dança moderninha, que afinal de contas eu não sou de ontem.

     Só quem não me cumprimenta direito quando passa nessa calçada é Rosa Alice, aquela ingrata. Logo ela, por quem tenho um amor danado, coisa séria, paixão mesmo, desesperadora. Ah, se eu pudesse um dia me casar com Rosa Alice, que passa toda manhã a caminho da loja de sucos, carregando toda a beleza que o Salvador achou por bem lhe dar e que jamais sobrará para um nordestino feio assim que nem eu.

     — Bom dia, Rosa Alice — insisto na ladainha de todo dia. E nada. É como se eu não existisse, se é que existo mesmo.

     Outro dia escutei uma música aí na loja, dessas paradonas que nem dá para a gente dançar, mas que é uma gostosura de se ouvir. Dizia que não sei quem passa todo dia não sei onde, "sem ver seu vigia, catando a poesia que entornas no chão". É comigo, pensei logo. O vigia sou eu. Vigia baratinado da propriedade alheia que é Rosa Alice, essa moça desatenta, que passa em frente à loja de discos deixando cair a poesia que eu não apanho do chão.

Olho para a loja de sucos e lá está ela, compenetrada atrás do balcão. Fazendo suco de manga, de laranja, de morango e de tudo quanto há para os que podem pagar.

     "Vê se te enxerga, Zé feio", ela não diz, mas eu penso. E dou mais umas reboladas acompanhando a música movimentada que está tocando, para ver se desenferrujo os ossos e afasto os pensamentos.

     Essa mania de ficar parado em porta de loja de discos eu tenho desde o meu tempo no interior. Ficava horas escutando música e dançando sozinho em frente ao Rei do Disco, em Feira de Santana. Só que naqueles tempos as melodias eram outras, eram outras as danças. "Esqueça/Ele não te ama/Esqueça/Ele não te quer". Essa tocava sempre e era das minhas preferidas.

     Mas isso já faz muito tempo. Eu vivia lá com meu pai, minha mãe, uma fileira de irmãos abestalhados assim que nem eu. Não conhecia nenhuma Rosa Alice, essa que é a mulher mais bonita de todo o Rio de Janeiro, de São Sebastião. Agora façam o favor de abrir a roda porque lá vem um baião e eu vou acompanhar no arrasta-pé e no jogo de cintura.

     Ontem entrei na loja de sucos e pedi um suco. Rosa Alice me olhou de cima até embaixo e foi logo avisando que só com o dinheiro na frente. Mostrei o dinheiro, mas ela disse que eu tinha que pagar primeiro na caixa e depois apanhar o suco no balcão. Deixei a droga do suco em cima do balcão e fui tomar uma cachaça com o dinheiro. Nem sei se pegou bem ou se pegou mal.

     Noite passada eu sonhei que me casava com Rosa Alice na Igreja da Matriz, lá em Feira de Santana. Ela toda vestidinha de branco e eu de paletó e gravata. Os bancos de madeira da Catedral apinhados de gente. Minha mãe, meu pai, meus irmãos todos, meus amigos de infância, a cidade inteira. Todos orgulhosos de mim, porque eu havia escolhido uma mulher muito bonita para ser a mãe dos meus filhos. Meu sonho é ter um filho, que vai se chamar José Neto, pois eu sou José Filho e José puro é o meu velho pai. Mas era só um sonho mesmo e no dia seguinte eu já estava aqui, rebolando e falando besteiras.

     Outro dia passou uma desorientada aqui na porta da loja de discos, quando eu estava dançando ao som de uma melodia que falava "esses moços/esses pobres moços/ai, se eles soubessem o que eu sei". A mulher maluca parou e ficou me olhando dançar. Mas não olhava com a cara emburrada de alguns que passam nem prendendo o riso, que nem os outros. Olhou com um jeitinho cúmplice, como se quisesse me dar um empurrão pra frente e me tirar do atoleiro.

     Fiquei comovido e convidei a mulher para dançar comigo, esbanjando simpatia. "Me conceda a contradança", eu disse, como nos velhos tempos. E ela veio toda dengosa para os meus braços. Dançamos de rostos colados, repetindo os versos da canção.

      — Meu nome é Almerinda — ela disse.

      — Eu te batizo Rosa Alice.

     Rosa Alice desapareceu. Hoje perguntei por ela ao balconista da loja de sucos. Se casou, deixou o emprego e está morando com o marido mecânico em Nilópolis. Pobrezinha dela. Pobrezinha do meu grande amor, enterrada num quartinho minúsculo lá no fim do mundo. Senti uma dorzinha de cabeça e vontade de chorar. Tratei de cortar o mal pela raiz, correndo para a porta da loja na horinha em que começava uma música de novela, dessas bem movimentadas:

 

Tudo na vida passa

Tudo no mundo cresce

Nada é igual a nada.

 

     Assim são as coisas do mundo. Nada igual a nada. Um dia Rosa Alice volta ou não volta. Vou ficando por aqui, enfrentando a vida que insiste tanto em me contrariar.


(Do livro "A viagem e outros contos", Editora Patuá, 2024)

 

 

 

sábado, 2 de novembro de 2024

 

A farinha e o sonho

 

 

O homem velho deixa a vida e a morte para trás /

 Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais.

Caetano Veloso

 


     Sentado no batente da porta, cavoucando as unhas dos pés que se roçam nas pedras, o velho Severino, mais morte do que vida, coça com as juntas dos dedos o osso da cabeça do cachorro Capibaribe. Cheio de fome e de pulgas, o cachorro olha sem qualquer paixão para o umbuzeiro carregado de frutos e de passarinhos.

     Severino diz mais dia menos dia tudo isto se acaba, meu amigo.

     Capibaribe entende tudo e late para o nada.

     O animal estava para o velho como o papagaio Aruaí esteve para o grande imperador Macunaíma. Depois de acompanhar os passos do herói sem caráter e de fazer parte do seu séquito, foi encontrado um dia pelo escritor a quem relatou tudo o que se passara, antes de bater asas no rumo de Lisboa.

     A tribo de Macunaíma se acabara, devorada pelo tempo e por intempéries humanas; a do homem velho estava chegando ao fim.

     – Cadê a farinha que guardei aqui?

     O papagaio sabia conservar no silêncio as frases e feitos do herói.

     O cachorro também.

     O calor provoca coceiras em cachorro e ensopa de suor o peito do velho Severino. Ele pede a Deus que mande chuva bem forte, daquelas que parecem que vão derrubar o mundo, água limpa escorrendo pela cumeeira, cada pingo enchendo um pote.

     Cadê os raios que desciam em disparada, dançando feito minhocas luminosas e tontas? E o barulho que se ouvia por trás da serra, quando pipocavam os trovões, enquanto o muque forte empurrava para lá e para cá a pá de madeira na casa de farinha?

     A casa de farinha. Meu Deus, a casa. A farinha.

     – Quem foi o desalmado que sumiu com a ferramenta de trabalho que guardei como lembrança?

     Tudo muito antes de o progresso chegar, do veneno das latas, do barulho das motos. Quando carregava a mandioca no lombo, colocava as raízes na água fresca retirada do tanque para preparar a massa e torrar a farinha. E dividi-la com os filhos e netos e irmãos e amigos, depois encher os cestos para vender o que sobrava. Foi antes de acordar no meio da noite, sonhando com um camaleão de aço que mastigava tudo e lhe triturava as costelas.

     A miséria é a mesma quando o velho Severino apura a vista, na linha do horizonte, no rumo da capoeira, e sente bater-lhe nas faces o vento rebelde que o tropel faz circular entre as umburanas, na perseguição ao touro fugido. E vê, novamente, a boiada no caminho do curral, a água juntando golfos no alagadiço, os bem-te-vis animados no fim da tarde.

     – Eu enterrava a pá de mexer a mandioca no forno, massa pra lá, farinha pra cá, e depois a desenterrava. Lembra disse, meu amigo?

     O cão o olha com intraduzível benevolência.

     – Vou abrir uma cova. É a parte que me cabe.

     Olha para dentro de casa, para se certificar de que não é visto por ninguém, e bota os bagos para fora:

     — Aqui pra vocês, filhos de uma égua!

     Capibaribe corre atrás de um preá que circula o lajedo lá longe.

     O velho Severino sente medo de ficar sozinho, de ser perturbado pelo espírito do camaleão a tocar fogo nos cestos e no paiol.

     Num tempo em que os homens eram feitos à imagem e semelhança de Deus, vivera a bonança de suas terras, mastigando farinha com rapadura, com tripa de bode, com carne de teiú assada, se fartando com abóboras e melancias, dizendo como queria e como não queria o funcionamento do mundo, com esteira na varanda, rede e água fresca na beira da estrada.

     Dormira em colchão de capim macio, tivera uma fêmea de peitos e bunda talhados pelo criador para limpar os cabelos, arear os pés, catar piolhos e carrapatos. Sobretudo, para cavoucar suas unhas.

     – Naquele tempo, eu que mandava chover. Depois eu que mandava parar. Depois ordenava que chovesse de novo.

     A filha Maria retorna do tanque com o cesto de roupas na cabeça.

     – Falando sozinho, meu pai?

     – Com o cachorro.

     Maria sorri e pisa no alpendre, cantando:

     “Não é cova grande, é cova medida/É a terra que querias ver dividida...”.

     Capibaribe acompanha os passos dela, na esperança de uma sobra de osso na cozinha. Ouvir conversa de velho caduco não enche barriga.

     Cobertor, alpercatas de correia, roupa lavada tinha. O que lhe faltava, então? A filha fazia o possível; mas a vida, não. A vida não tem compromissos. Tivera dias de sonhos, touro na unha, cercas refeitas.

     É assim mesmo, fala pros seus botões, na ausência do cachorro:

     – E depois eu mandava que a chuva chovesse mais uma vez, quantas eu quisesse. Para logo ordenar que ela estancasse.

     Sonho ruim vem e muda o verbo do princípio. Vida vem e leva a gente. Vida vem e lava a gente. Vida vem e leva tudo. Como na enxurrada, animais morrendo afogados, mulher e meninos gemendo.

     O velho vira a moringa e toma uma talagada de aguardente. Começa a dançar no meio do quintal. O amigo entende o recado e logo se anima, mordendo os seus calcanhares.

     “É a terra que querias...”

     Começa a chover e Severino interrompe a dança, cansado.

     Olha em direção ao tanque, aponta o dedo e atira com a boca – Têi! Tei! – na linha do voo da juriti. O cachorro, também ofegante, pensa em empreender busca ao pássaro imaginário, mas desiste e senta-se ao lado do velho.

     O velho deita-se no chão, sobre o travesseiro das lembranças.

     Vai lá longe.

     Vai morar na casa de farinha. Mandioca no lombo, forno de lenha queimando a raiz, o alimento nascendo em seus braços. Matando o porco no quintal, rodeado de netos, a mulher matando galinhas, recolhendo os ovos no ninho, meu Deus, os pequenos morros onde brotavam cactos e que não tapavam a luz do sol, os bodes, lajedos, os preás, a cabeça rodando, a chuva, a barba molhada, o nariz escorrendo, um olhar de tristeza no olhar do papagaio de Macunaíma, uma vontade louca de chorar, se entregando à lama, se mijando todo, o soluço do porco, o sangue da galinha, Maria, minha filha, está chovendo farinha, essa água que não para de cair.

     Não para.   

(Do livro "A viagem e outros contos", Editora Patuá, 2024)

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

 

Irmandade

      Lá em casa era assim: a gente apanhava no atacado e no varejo. No atacado, quem agia era o pai. Juntava todo mundo num canto da casa, um colado no outro para não dispersar, e descia o braço. Braço era maneira de dizer. Na verdade, ele vinha com bainha de facão, ripa de madeira, corrente de ferro com cadeado e tudo, e até chapa de aço. Uma lenha. A mãe, com menos força no muque, cuidava da ação no varejo, exemplando de um em um, apoiada no cinturão de couro, tomada de ferro elétrico, cabo de vassoura, o que lhe caísse à mão. Tudo dividido, irmãmente.

     O pai batia melhor quando bêbado. Quando chegava do bar tropeçando nas cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia ser caprichado. Pelo menos um tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos assim. A mãe já tinha outras manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de cabeça crônica, que tinha desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento físico, mais vontade de sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta dor, a pobre, suando frio na fronte. E tome esforço, na tortura da molecada; então, suava mais ainda. O suor materno era um terror para nós.

     A dor da mãe não era mania, não. Nem combustível para animar as surras. Descobrimos isso no dia em que sua cabeça explodiu e os médicos disseram pro pai que ela tinha coisa muito ruim nos miolos. O pai ficou triste. E preocupado, porque não teria mais com quem dividir a tarefa sôfrega. Tanto filho para espancar sozinho, coitado, ninguém merece. Ainda mais com a tropa se desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio taludos e dificultando o manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente, lamentou.

     Mas até que os dias difíceis não foram muitos, porque logo, logo o pai começou a inchar; primeiro as mãos e os pés, depois as maçãs do rosto, e um dia foi carregado pelos vizinhos depois de botar muito sangue pelo nariz. E não foi, como pensaram a princípio, reação violenta de nenhum de nós. Nunca fomos de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que atendeu a nossa mãezinha disse para a gente que o papai não passaria daquela noite. E não passou.

     Cirrose — disse ele.

     Surra bastante o fígado, não é, doutor? — eu perguntei.

     Surra bastante tudo, meu jovem. Todos os órgãos, no atacado e no varejo — respondeu, com um sorriso de canto de boca.

     O doutor era um sujeito engraçado.

     Depois de deixar o corpo do pai no cemitério, dentro de um caixão que os vizinhos fabricaram, voltei para casa e reuni os irmãos. Na qualidade de mais velho, eu tinha que dizer algumas palavras, nem que fosse apenas para desejar boa sorte a todos na novíssima vida que nos esperava.

     Disse a eles que sem mãe, e agora sem o pai, cada um ia ter que cuidar do próprio destino. Depois de tanto tempo apanhando em casa, estava na hora de neguinho aprender a tropeçar com as próprias pernas. Pancada garantida, três vezes ao dia, nunca mais. As meninas, pelo menos, poderiam arranjar maridos que, com sorte, gostassem da pancadaria. Para os meninos, seguramente, o futuro seria mais incerto.

     Fiz a mochila de cada um, passei batom e alfazema nas moças, cortei as unhas e penteei os cabelos dos moleques, e ordenei que pegassem a trilha desejada, em busca do próprio caminho. Também ganhei a estrada, depois de trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o que havia lá dentro, lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o vigor do chute do pai.

     Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei me ajeitando aqui na obra. O trabalho é duro e à noite, depois de um dia de labuta, o corpo reage como se tivesse levado uma surra de vara: entre moído e relaxado, meio sofrido e meio orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá feito deles, se batem nos próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida. Lembro mais deles nos fins de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia um caboclo bebedor. Nesses dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe parece que ficava muito pior.

(Do livro "A viagem e outros contos", de Luís Pimentel. Editora Patuá, 2024)    

 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

 

Mãos dadas

      Eu tinha verdadeira adoração por ela. Um dia perguntou se eu não sentia vergonha pelo fato de ela ser puta. Eu disse você é feliz assim e isto me faz feliz, ou uma besteira dessas. Na verdade, não me incomodava nem um pouco, estava mesmo era me lixando pros seus draminhas. Ela fingiu acreditar e abriu o quebra-vento, depois balançou o cabelo prum lado e pro outro, como gostava de fazer quando saíamos de carro.

– Mas você tem vergonha de sair de mãos dadas comigo – ela disse.

– Claro que não – respondi.

– Então por que não passeia de mãos dadas comigo por aí?

     Comcei a ficar puto com aquele papo, sempre fico puto com esses papos, mas procurei não demonstrar:

– Sabe o que é? Acho a maior besteira andar por aí de mãos dadas ou de

braços dados. Não ando assim com ninguém, acho que nem sei andar desse jeito, não acerto o passo.

– Nem com a sua mulher você andava?

– Não.

     Eu disse que tinha verdadeira adoração por ela, mas que detestava aquela conversa. Sempre gostei muito de putas, mas detesto conversa de putas. Ou bebem demais e ficam escrachadas, abrindo as pernas fora de hora e dizendo palavrão, ou ficam com essa mania de mulherzinha, querendo andar de mãos dadas e de braços dados, fazer compras com a gente no shopping.

     Ela pegou uma escova enorme na bolsa e começou a ajeitar os cabelos, desarrumados pelo vento. Tinha cabelos bonitos, putas geralmente têm cabelos bonitos porque cuidam bem deles. Depois pegou o batom e começou a avermelhar os lábios.

– E à missa? Você iria à missa comigo? – perguntou.

– Claro que iria.

– Mentiroso.

– Não me chama de mentiroso. Vou à missa com você qualquer dia desses,

você pode até apostar.

– Qualquer dia desses, não. Vamos hoje – e tentou me beijar daquele jeito

que parecia beijo de cachorro, a língua para cima e para baixo, uma luva úmida no meu pescoço.

– Para.

– Tá vendo? Além de vergonha, tem nojo de mim.

     Eu disse que não tinha nojo coisa nenhuma. Ela insistiu que eu tinha nojo dela, por isso não gostava de beijo na boca nem de lambida no pescoço.

– Já disse que não tenho nojo de você, porra! – rosnei, batendo com a mão

espalmada no painel do carro.

     Ela se assustou, me olhou até com medo, mas mesmo assim voltou ao lengalenga. Puta é foda mesmo:

– Então passeia de mãos dadas, me leva à missa, ao cinema, ao restaurante,

me dá um beijo de novela.

– Não vejo novela.

– Então me dá um beijo de cinema.

Eu disse não enche o saco e ela berrou não fala assim comigo, seu cavalo.

Perdi de vez paciência, meti o cotovelo nos peitos dela e gritei cala a boca agora, sua puta escrota. Ela disse cala a boca é o cacete e blasfemou que puta era minha mãe. Porra, logo minha mãe, a vaca não sabia mesmo com quem estava se metendo. Se tem uma coisa que não admito é que falem de minha mãe, desde pequeno, quando quebrei a cara de um colega de escola. O merdinha falou que minha mãe ficava na zona enquanto eu dormia.

     Segurei o volante do carro com uma mão e com a outra dei uma bofetada certeira. Ela chorou, xingou e gritou olha para a frente, seu débil mental. E quando olhei para a frente já estava enfiando o carro em cima do poste.

     Não foi por querer que direcionei para o poste o lado do carona. Não foi por cafajestada que salvei a minha pele e acabei com a vida da única mulher que talvez tenha amado na vida. Eu tinha, mesmo, verdadeira adoração por ela. Juro que se ainda desse tempo eu iria de mãos dadas com ela até para o inferno.

(Do livro "A viagem e outros contos", Editora Patuá, 2024)