Irmandade
O pai batia melhor quando bêbado. Quando chegava do bar tropeçando nas
cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia ser caprichado. Pelo menos um
tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos assim. A mãe já tinha outras
manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de cabeça crônica, que tinha
desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento físico, mais vontade de
sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta dor, a pobre, suando frio na
fronte. E tome esforço, na tortura da molecada; então, suava mais ainda. O suor
materno era um terror para nós.
A dor da mãe não era mania, não. Nem combustível para animar as surras.
Descobrimos isso no dia em que sua cabeça explodiu e os médicos disseram pro
pai que ela tinha coisa muito ruim nos miolos. O pai ficou triste. E
preocupado, porque não teria mais com quem dividir a tarefa sôfrega. Tanto
filho para espancar sozinho, coitado, ninguém merece. Ainda mais com a tropa se
desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio taludos e dificultando o
manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente, lamentou.
Mas até que os dias difíceis não foram muitos, porque logo, logo o pai
começou a inchar; primeiro as mãos e os pés, depois as maçãs do rosto, e um dia
foi carregado pelos vizinhos depois de botar muito sangue pelo nariz. E não
foi, como pensaram a princípio, reação violenta de nenhum de nós. Nunca fomos
de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que atendeu a nossa mãezinha disse
para a gente que o papai não passaria daquela noite. E não passou.
– Cirrose — disse ele.
– Surra bastante o fígado, não
é, doutor? — eu perguntei.
– Surra bastante tudo, meu
jovem. Todos os órgãos, no atacado e no varejo — respondeu, com um sorriso de
canto de boca.
O doutor era um sujeito engraçado.
Depois de deixar o corpo do pai no cemitério, dentro de um caixão que os
vizinhos fabricaram, voltei para casa e reuni os irmãos. Na qualidade de mais
velho, eu tinha que dizer algumas palavras, nem que fosse apenas para desejar
boa sorte a todos na novíssima vida que nos esperava.
Disse a eles que sem mãe, e agora sem o pai, cada um ia ter que cuidar
do próprio destino. Depois de tanto tempo apanhando em casa, estava na hora de
neguinho aprender a tropeçar com as próprias pernas. Pancada garantida, três
vezes ao dia, nunca mais. As meninas, pelo menos, poderiam arranjar maridos
que, com sorte, gostassem da pancadaria. Para os meninos, seguramente, o futuro
seria mais incerto.
Fiz a mochila de cada um, passei batom e alfazema nas moças, cortei as
unhas e penteei os cabelos dos moleques, e ordenei que pegassem a trilha
desejada, em busca do próprio caminho. Também ganhei a estrada, depois de
trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o que havia lá dentro,
lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o vigor do chute do pai.
Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei me ajeitando aqui na obra. O
trabalho é duro e à noite, depois de um dia de labuta, o corpo reage como se
tivesse levado uma surra de vara: entre moído e relaxado, meio sofrido e meio
orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá feito deles, se batem nos
próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida. Lembro mais deles nos fins
de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia um caboclo bebedor. Nesses
dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe parece que ficava muito pior.
(Do livro "A viagem e outros contos", de Luís Pimentel. Editora Patuá, 2024)
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