Cabelos molhados
Ananias deu banho nos meninos, ajudou a vestirem a roupa, penteou seus cabelos e colocou um ao lado do outro na mesa, diante do feijão, arroz, carne e abóbora que ele mesmo preparou. Depois de andar um quilômetro com os filhos e colocá-los na condução que os levariam até a escola, no vilarejo, se preparava para pegar o caminho da roça, onde ajeitaria uma cerca caída. A freada do jipe com placa do município mudou os seus planos.
Polícia, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil, o padre, a responsável pela
Delegacia da Mulher e até um repórter do jornal da capital chegaram em
caravana. Falavam em nome da ordem, da justiça, do povo e até de Deus,
atendendo a denúncias anônimas dando conta de que Almerinda estava morta,
vítima de maus-tratos. Foram logo informando que não traziam mandado de busca
nem era preciso. Ananias não exigiu nada nem parecia saber do que se tratava.
– Gente de Cristo, onde já se
viu?! – choramingava o suspeito,
olhos em brasa e pânico, tremendo diante dos homens e da delegada, chorando no
ombro do padre.
Era um homem temente, sempre fora. Tinha um São Jorge Guerreiro na sala
e o Sagrado Coração na parede do quarto, na cabeceira da cama.
As lágrimas e o desespero de Ananias não impediram os invasores de
continuar a investigação. “É melhor o senhor confessar de uma vez por todas”,
dizia o policial. “Vamos derrubar paredes até encontrar o corpo”, confabulavam
bombeiros e agentes da defesa. A delegada chamou o acusado num canto:
– Onde foi parar a coitada,
Seu Ananias? Sabemos que você batia nela.
– Almerinda desapareceu,
doutora.
– Ninguém desaparece, homem. E
está desaparecida desde quando?
– Desde a semana passada.
Sumiu numa noite de lua cheia. Almerinda andava muito esquisita, Deus me livre.
– Deixe de crendice à toa e
mostre onde enterrou a infeliz. É melhor para você, criatura.
O tal do repórter parecia um carro de boi no atoleiro:
– O senhor matou? Matou ou não
matou? O senhor matou?
Nenhuma panela mais nos armários. Roupas arrancadas do baú. Móveis e a
cama de pernas para o ar. Os homens quebravam tudo, em algum lugar o corpo
estaria. Viram o poço no fundo do quintal, correram até lá. “Vai ver, está ali,
afogada”. Ananias enxugava as lágrimas nos pelos da mão e futucava os dentes
com um palito de fósforo.
– Na água que bebo? Que uso
para dar de beber às crianças?
O padre tentou negociar:
– Confesse, filho, depois se
apegue com o Salvador. Ele dará o perdão e mostrará o bom caminho.
Ananias gemeu. Mais ainda quando os homens arrebentaram o depósito de
mantimentos, caroço de milho correndo por toda a despensa. “Em algum lugar ele
escondeu o corpo”, dizia o bombeirinho, o mais franzino de todos.
O padre se roía em remorsos:
– E se o pobre não tiver culpa
de nada? — perguntou à delegada.
– Como? Judiava dela.
Arrastava a mulher pelos cabelos, ela tinha cabelos lindos e longos, submetia a
instintos animais, dizem até que um dia marcou com o instrumento de ferrar o
gado a bunda da infeliz.
O pároco pigarreou, envergonhado. Bombeiro e policial voltaram do
tanque, trazendo uma cabaça em forma de cuia.
– Só achamos isto.
– Pois é com isto que encho a
lata d´água, o cocho dos porcos, o vasilhame das galinhas. Antes quem fazia
tudo era ela — e caiu mais uma vez em pranto.
As ordens se atropelavam, quase sempre aos gritos:
– Verifiquem o chiqueiro!
Cavem a terra no curral! Sacudam os galhos das árvores!
Gente da lei sabe que não existe limite para as astúcias assassinas.
Ananias apenas repetia não saber de nada, enquanto implorava baixinho: “Volta,
Almerinda, me tira deste pesadelo”.
Já estava ficando noitinha quando as visitas indesejáveis ligaram o
jipe, prometendo voltar dia seguinte bem cedo, para retomar as buscas e as
investigações. Ananias ficou sentado no banquinho ao lado da porta, coçando os
olhos ardidos de tanto choro, criando coragem para pôr ordem na mente e começar
a trabalheira de botar no lugar tudo o que aquela gente sem modos esparramou.
Mas antes iria até o quintal, levantar a pedra do fundo do poço e fazer
submergir mais uma vez o corpo de Almerinda, o vestido de chita se desfazendo
de tanto limo grudado. Oferecer a sopa que a morta recusaria, pentear seus
lindos e longos cabelos molhados e dessa vez pedir, por tudo o que é mais
sagrado, que ela não conte o que sabe para aquele povo do município. Antes
disso, não ia conseguir dormir.
(Do livro A viagem e outros contos, Editora Patuá, 2024)
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