sábado, 5 de outubro de 2024

Cabelos molhados

      Ananias deu banho nos meninos, ajudou a vestirem a roupa, penteou seus cabelos e colocou um ao lado do outro na mesa, diante do feijão, arroz, carne e abóbora que ele mesmo preparou. Depois de andar um quilômetro com os filhos e colocá-los na condução que os levariam até a escola, no vilarejo, se preparava para pegar o caminho da roça, onde ajeitaria uma cerca caída. A freada do jipe com placa do município mudou os seus planos.

     Polícia, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil, o padre, a responsável pela Delegacia da Mulher e até um repórter do jornal da capital chegaram em caravana. Falavam em nome da ordem, da justiça, do povo e até de Deus, atendendo a denúncias anônimas dando conta de que Almerinda estava morta, vítima de maus-tratos. Foram logo informando que não traziam mandado de busca nem era preciso. Ananias não exigiu nada nem parecia saber do que se tratava.

     Gente de Cristo, onde já se viu?! choramingava o suspeito, olhos em brasa e pânico, tremendo diante dos homens e da delegada, chorando no ombro do padre.

     Era um homem temente, sempre fora. Tinha um São Jorge Guerreiro na sala e o Sagrado Coração na parede do quarto, na cabeceira da cama.

     As lágrimas e o desespero de Ananias não impediram os invasores de continuar a investigação. “É melhor o senhor confessar de uma vez por todas”, dizia o policial. “Vamos derrubar paredes até encontrar o corpo”, confabulavam bombeiros e agentes da defesa. A delegada chamou o acusado num canto:

     Onde foi parar a coitada, Seu Ananias? Sabemos que você batia nela.

     Almerinda desapareceu, doutora.

     Ninguém desaparece, homem. E está desaparecida desde quando?

     Desde a semana passada. Sumiu numa noite de lua cheia. Almerinda andava muito esquisita, Deus me livre.

     Deixe de crendice à toa e mostre onde enterrou a infeliz. É melhor para você, criatura.

     O tal do repórter parecia um carro de boi no atoleiro:

     O senhor matou? Matou ou não matou? O senhor matou?

     Nenhuma panela mais nos armários. Roupas arrancadas do baú. Móveis e a cama de pernas para o ar. Os homens quebravam tudo, em algum lugar o corpo estaria. Viram o poço no fundo do quintal, correram até lá. “Vai ver, está ali, afogada”. Ananias enxugava as lágrimas nos pelos da mão e futucava os dentes com um palito de fósforo.

     Na água que bebo? Que uso para dar de beber às crianças?

    O padre tentou negociar:

     Confesse, filho, depois se apegue com o Salvador. Ele dará o perdão e mostrará o bom caminho.

     Ananias gemeu. Mais ainda quando os homens arrebentaram o depósito de mantimentos, caroço de milho correndo por toda a despensa. “Em algum lugar ele escondeu o corpo”, dizia o bombeirinho, o mais franzino de todos.

     O padre se roía em remorsos:

     E se o pobre não tiver culpa de nada? — perguntou à delegada.

     Como? Judiava dela. Arrastava a mulher pelos cabelos, ela tinha cabelos lindos e longos, submetia a instintos animais, dizem até que um dia marcou com o instrumento de ferrar o gado a bunda da infeliz.

     O pároco pigarreou, envergonhado. Bombeiro e policial voltaram do tanque, trazendo uma cabaça em forma de cuia.

     Só achamos isto.

     Pois é com isto que encho a lata d´água, o cocho dos porcos, o vasilhame das galinhas. Antes quem fazia tudo era ela — e caiu mais uma vez em pranto.

     As ordens se atropelavam, quase sempre aos gritos:

     Verifiquem o chiqueiro! Cavem a terra no curral! Sacudam os galhos das árvores!

     Gente da lei sabe que não existe limite para as astúcias assassinas. Ananias apenas repetia não saber de nada, enquanto implorava baixinho: “Volta, Almerinda, me tira deste pesadelo”.

     Já estava ficando noitinha quando as visitas indesejáveis ligaram o jipe, prometendo voltar dia seguinte bem cedo, para retomar as buscas e as investigações. Ananias ficou sentado no banquinho ao lado da porta, coçando os olhos ardidos de tanto choro, criando coragem para pôr ordem na mente e começar a trabalheira de botar no lugar tudo o que aquela gente sem modos esparramou.

     Mas antes iria até o quintal, levantar a pedra do fundo do poço e fazer submergir mais uma vez o corpo de Almerinda, o vestido de chita se desfazendo de tanto limo grudado. Oferecer a sopa que a morta recusaria, pentear seus lindos e longos cabelos molhados e dessa vez pedir, por tudo o que é mais sagrado, que ela não conte o que sabe para aquele povo do município. Antes disso, não ia conseguir dormir.

 (Do livro A viagem e outros contos, Editora Patuá, 2024) 

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