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— Minha avó é de uma geração em que todas
as mulheres sonhavam passar uma noite com o Orlando Dias, mesmo aquelas que
deixavam maridos e filhos em casa quando compareciam aos shows do Imperator —
diz Norma, passando uma flanelinha no vinil e colocando de volta dentro da
embalagem de papelão. — Acho essa capa o máximo, ele de amante latino, terno
escuro, gravata borboleta e cabelos nadando na brilhantina, segurando o lenço
colorido. Esse lenço é que levava o mulherio à loucura quando Orlando o
sacudia, cantava “Tu és a criatura mais linda que os meus olhos já viram, tu
tens a boca mais linda que a minha boca beijou” e atirava para a plateia,
dizendo “obrigado, minhas fãs”. Era um salve-se quem puder pelo troféu, que
minha avó diz que tinha cheiro de perfume francês.
— Parece que alguns homens também
disputavam o lenço perfumado, com a desculpa de que levariam para a mulher ou a
filha — Tavinho completa, admirando a destreza de Norma, as mãos lindas e ágeis
garantindo a limpeza no disco e na capa.
— Posso ficar com ele? — ela pergunta.
— Claro, claro, é seu — ele responde.
— Cada história! — diz Norma. — Toda
música tem uma história na vida de alguém. Todo mundo guarda algum lampejo de
vida, no passado, ligado a uma música.
— Às vezes a música interfere no futuro,
também, sem que a gente se dê conta.
— Profundo, hein?!
— Minha avó gostava era de Cauby Peixoto —
diz Tavinho, pegando na pilha o disco Você,
a música e Cauby, em que ele aparece de paletó marrom, camisa azul e
gravata branca, os olhos perdidos em um ponto que ia além do fascínio. — Minha
vovozinha respirava fundo, estirada no sofá, o long-play na eletrola
espalhando pela casa aquela voz poderosa: “Conceição, eu me lembro muito
bem...”
— Adoro. De vez em quando eu ponho esse
disco para tocar.
— Ah, é? Você gosta? Então pode pôr aí em
sua pilha.
— Não, não, Tavinho. Esse sempre foi seu,
de fato e de direito.
— Bobagem, Norma. É que eu não sabia que
você o adorava, nunca soube. Fica. Faço questão. Acho que minha avó também
sonhava em passar uma noite com o Cauby, mesmo sabendo que essa possibilidade
seria bem remota.
Norma agradece a gentileza e guarda o
disco, depois de limpá-lo com imenso carinho.
— Já o meu avô gostava era de Nelson
Gonçalves, de ouvir e de imitar. Soltava o vozeirão: “A Normalista linda não
pode casar ainda, só depois de se formar/Eu estou apaixonado, o pai da moça
zangado...”.
— O meu avô era fiel da igreja do
Lupicínio Rodrigues — diz Tavinho. — A turma da dor de corno: “Volta, vem viver
outra vez ao meu lado, não consigo dormir sem teu braço...”, cantarola,
segurando a mão de Norma. Ela retira a mão delicadamente e recomeça a limpeza
dos vinis.
— A geração dos nossos pais já estava noutra.
Era Chico Buarque, Gil, Caetano, Milton, Paulinho da Viola...
— Paulinho da Viola! Minha mãe, quando
jovem, participava de uma associação informal com as amigas da Tijuca, boa
parte formada por ex-alunas da Escola Normal, cuja sigla era AMSTPV.
— O que é isso, Tavinho?
— Associação das Mulheres que Sonham em
Transar com o Paulinho da Viola. Juro.
— Acredito. Minha tia Ana era louca pelo
Chico Buarque. Dizia que ele compôs Ana de Amsterdam para ela.
— Qual?
— Aquela que diz “Sou Ana da cama, da
cana, fulana, sacana, sou Ana de Amsterdam”.
— Sua tia era de Amsterdam?
— Não. Do Lins de Vasconcelos. Nós temos
esse disco. Olha ele aqui. Só não me lembro se é seu ou meu.
— Pode ficar.
— Por quê, Tavinho?
—
Porque eu sou generoso.
— Desde quando?
— Pô, Norminha.
— Estou brincando. Essa minha tia batizou
o filho de Francisco em homenagem. Só que o priminho virou roqueiro, criou uma
banda chamada Chicão e os Pedófilos.
— Eu tenho uma tia que tem todos os discos
do Roberto Carlos. Não ficava com namorado nenhum, porque nenhum pretendente a
aguentava cantando “Detalhes tão pequenos de nós dois”, totalmente desafinada.
— Eu gosto dessa música, Tavinho. E
cantava ela para você, quando nos conhecemos.
— Mas você é afinada.
— Temos esse disco aqui. Já está no meu
lote.
— Esse eu gostaria de ter, para ouvir e me
lembrar de você.
— Esse eu não lhe dou não. Tem valor
sentimental. Dou aquele Tim Maia do “Me dê motivo”. Quer?
— Aceito.
— E esse Raul Seixas, de quem é?
— Meu. Ganhei de uma colega de faculdade.
— Colega ou namorada?
— Colega e namorada. Esse Rita Lee aí
também é meu. Mas posso lhe dar, você gosta mais do que eu.
— Adoro. “Quando meu pai me disse, filha,
você é a ovelha negra da família...” Época boa, não era, Tavinho? Depois mudou
muito.
— Mudou muito. Tem um primo do meu pai que
só gostava de duplas sertanejas. Arrumou até um deslocamento de mandíbula com a
mania de cantar tremendo o queixo.
— E esses Caetanos aqui? O que é meu e o
que é seu?
— Não lembro.
— A coleção do MPB-4, que eu tinha uns e
você trouxe outros?
— Pois é.
— Clementina de Jesus. Esse eu tenho
certeza de que é seu.
— Não tenho certeza.
— Tavinho, assim você não está ajudando.
— Esquece isto, Norma. Embaralha essas
bolachas.
— Olha o que você fez, Tavinho!! Vou ter
que separar tudo de novo.
— Eu ajudo. Começa do começo. Pega o
Orlando Dias. “Tu és a criatura mais linda que os meus olhos já viram...”
— “Tu tens a boca mais linda que a minha
boca beijou...”
(Do livro "Contos da vida absurda". Editora Casarão do Verbo, 2014)