quarta-feira, 30 de março de 2016


Partilha

 
     — Minha avó é de uma geração em que todas as mulheres sonhavam passar uma noite com o Orlando Dias, mesmo aquelas que deixavam maridos e filhos em casa quando compareciam aos shows do Imperator — diz Norma, passando uma flanelinha no vinil e colocando de volta dentro da embalagem de papelão. — Acho essa capa o máximo, ele de amante latino, terno escuro, gravata borboleta e cabelos nadando na brilhantina, segurando o lenço colorido. Esse lenço é que levava o mulherio à loucura quando Orlando o sacudia, cantava “Tu és a criatura mais linda que os meus olhos já viram, tu tens a boca mais linda que a minha boca beijou” e atirava para a plateia, dizendo “obrigado, minhas fãs”. Era um salve-se quem puder pelo troféu, que minha avó diz que tinha cheiro de perfume francês.

     — Parece que alguns homens também disputavam o lenço perfumado, com a desculpa de que levariam para a mulher ou a filha — Tavinho completa, admirando a destreza de Norma, as mãos lindas e ágeis garantindo a limpeza no disco e na capa.

     — Posso ficar com ele? — ela pergunta.

     — Claro, claro, é seu — ele responde.

     — Cada história! — diz Norma. — Toda música tem uma história na vida de alguém. Todo mundo guarda algum lampejo de vida, no passado, ligado a uma música.

     — Às vezes a música interfere no futuro, também, sem que a gente se dê conta.

     — Profundo, hein?!

     — Minha avó gostava era de Cauby Peixoto — diz Tavinho, pegando na pilha o disco Você, a música e Cauby, em que ele aparece de paletó marrom, camisa azul e gravata branca, os olhos perdidos em um ponto que ia além do fascínio. — Minha vovozinha respirava fundo, estirada no sofá, o long-play na eletrola espalhando pela casa aquela voz poderosa: “Conceição, eu me lembro muito bem...”

     — Adoro. De vez em quando eu ponho esse disco para tocar.

     — Ah, é? Você gosta? Então pode pôr aí em sua pilha.

     — Não, não, Tavinho. Esse sempre foi seu, de fato e de direito.

     — Bobagem, Norma. É que eu não sabia que você o adorava, nunca soube. Fica. Faço questão. Acho que minha avó também sonhava em passar uma noite com o Cauby, mesmo sabendo que essa possibilidade seria bem remota.

     Norma agradece a gentileza e guarda o disco, depois de limpá-lo com imenso carinho.

     — Já o meu avô gostava era de Nelson Gonçalves, de ouvir e de imitar. Soltava o vozeirão: “A Normalista linda não pode casar ainda, só depois de se formar/Eu estou apaixonado, o pai da moça zangado...”.

     — O meu avô era fiel da igreja do Lupicínio Rodrigues — diz Tavinho. — A turma da dor de corno: “Volta, vem viver outra vez ao meu lado, não consigo dormir sem teu braço...”, cantarola, segurando a mão de Norma. Ela retira a mão delicadamente e recomeça a limpeza dos vinis.

     — A geração dos nossos pais já estava noutra. Era Chico Buarque, Gil, Caetano, Milton, Paulinho da Viola...

     — Paulinho da Viola! Minha mãe, quando jovem, participava de uma associação informal com as amigas da Tijuca, boa parte formada por ex-alunas da Escola Normal, cuja sigla era AMSTPV.

     — O que é isso, Tavinho?

     — Associação das Mulheres que Sonham em Transar com o Paulinho da Viola. Juro.

     — Acredito. Minha tia Ana era louca pelo Chico Buarque. Dizia que ele compôs Ana de Amsterdam para ela.

     — Qual?

     — Aquela que diz “Sou Ana da cama, da cana, fulana, sacana, sou Ana de Amsterdam”.

     — Sua tia era de Amsterdam?

     — Não. Do Lins de Vasconcelos. Nós temos esse disco. Olha ele aqui. Só não me lembro se é seu ou meu.

     — Pode ficar.

     — Por quê, Tavinho?

     — Porque eu sou generoso.

     — Desde quando?

     — Pô, Norminha.

     — Estou brincando. Essa minha tia batizou o filho de Francisco em homenagem. Só que o priminho virou roqueiro, criou uma banda chamada Chicão e os Pedófilos.

     — Eu tenho uma tia que tem todos os discos do Roberto Carlos. Não ficava com namorado nenhum, porque nenhum pretendente a aguentava cantando “Detalhes tão pequenos de nós dois”, totalmente desafinada.

     — Eu gosto dessa música, Tavinho. E cantava ela para você, quando nos conhecemos.

     — Mas você é afinada.

     — Temos esse disco aqui. Já está no meu lote.

     — Esse eu gostaria de ter, para ouvir e me lembrar de você.

     — Esse eu não lhe dou não. Tem valor sentimental. Dou aquele Tim Maia do “Me dê motivo”. Quer?

     — Aceito.

     — E esse Raul Seixas, de quem é?

     — Meu. Ganhei de uma colega de faculdade.

     — Colega ou namorada?

     — Colega e namorada. Esse Rita Lee aí também é meu. Mas posso lhe dar, você gosta mais do que eu.

      — Adoro. “Quando meu pai me disse, filha, você é a ovelha negra da família...” Época boa, não era, Tavinho? Depois mudou muito.

     — Mudou muito. Tem um primo do meu pai que só gostava de duplas sertanejas. Arrumou até um deslocamento de mandíbula com a mania de cantar tremendo o queixo.

     — E esses Caetanos aqui? O que é meu e o que é seu?

     — Não lembro.

     — A coleção do MPB-4, que eu tinha uns e você trouxe outros?

     — Pois é.

     — Clementina de Jesus. Esse eu tenho certeza de que é seu.

     — Não tenho certeza.

     — Tavinho, assim você não está ajudando.

     — Esquece isto, Norma. Embaralha essas bolachas.

      — Olha o que você fez, Tavinho!! Vou ter que separar tudo de novo.

     — Eu ajudo. Começa do começo. Pega o Orlando Dias. “Tu és a criatura mais linda que os meus olhos já viram...”

     — “Tu tens a boca mais linda que a minha boca beijou...”
 
(Do livro "Contos da vida absurda". Editora Casarão do Verbo, 2014)
 
 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário