quarta-feira, 24 de agosto de 2016


O prejuízo



     Meu pai perguntou por que você fez isto? e não perguntou mais nada. Não respondi coisa alguma nem sabia o que responder. Fiquei olhando ora para a parede, ora para o telhado, morrendo de vergonha.

     Meu pai entrou no banheiro, sem me olhar, mijou e fez a barba, depois saiu de lá novamente sem olhar para mim. Sentou para tomar café da manhã, sem me chamar, como sempre fazia. Eu não aguentava mais o peso do seu silêncio, quando ele resolveu abrir a boca ainda cheia de café com leite e cuscuz, para desabafar, entre enraivecido e queixoso:

     – Vou ter que trabalhar o final de semana inteiro, fazer hora extra, para poder pagar a vidraça do seu Nestor que você destruiu, moleque.

     Aí criei coragem e disse não precisa, quem vai pagar a vidraça sou eu.

     Meu pai me olhou indiferente e incrédulo, como se olhasse para uma parede que fala, e tomei a dianteira antes que ele dissesse qualquer coisa:

     – Deixe, pai. Vendo meu time de botão, vendo laranja descascada na porta de casa, e pago essa merda.

     Meu pai arregalou os olhos e depois desamarrou a cara. Abriu um sorriso que até hoje lembro como o mais bonito que já vi na cara do meu pai. Só não sei se foi porque eu disse que pagava o prejuízo ou se foi por causa do essa merda.
(O homão e o menininho. Editora Abacate, 2010. Programa Nacional Biblioteca da Escola 2013)
 

sábado, 20 de agosto de 2016


 

A farinha e o sonho

 
O homem velho deixa a vida e a morte para trás

 Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais.

Caetano Veloso

 
     Sentado no batente da porta, cavoucando as unhas dos pés que se roçam nas pedras, o velho Severino, mais morte do que vida, coça com as juntas dos dedos o osso da cabeça do cachorro Capiberibe. Cheio de fome e de pulgas, o cachorro olha sem qualquer paixão para o umbuzeiro carregado de frutos e de passarinhos.

     Severino diz mais dia menos dia tudo isto se acaba, meu amigo.

     Capiberibe late para o nada.

     O animal estava para o velho como o papagaio Aruaí esteve para o grande imperador Macunaíma. Depois de acompanhar os passos do herói sem caráter e de fazer parte do seu séquito, foi encontrado um dia pelo escritor a quem relatou tudo o que se passara, antes de bater asas no rumo de Lisboa. A tribo de Macunaíma se acabara, a do velho Severino estava chegando ao fim.

     — Cadê a farinha que guardei aqui?

     O papagaio sabia conservar no silêncio as frases e feitos do herói. O cachorro também.

     O calor provoca coceiras em Capiberibe e ensopa de suor o peito de Severino. Ele pede a Deus que mande chuva bem forte, daquelas que parecem derrubar o mundo, água limpa escorrendo pela cumeeira, cada pingo enchendo um pote. Cadê os raios que desciam em disparada, dançando feito minhocas luminosas e tontas? E o barulho que se ouvia por trás da serra, quando pipocavam os trovões, enquanto o muque forte empurrava para lá e para cá a pá de madeira na casa de farinha?

     — Quem sumiu com a ferramenta de trabalho que guardei como lembrança?

     Foi antes de o progresso chegar, do veneno das latas, do barulho das motos. Quando carregava a mandioca no lombo, colocava as raízes na água fresca retirada do tanque para preparar a massa e torrar a farinha. E dividi-la com os filhos e netos e irmãos e amigos, depois encher os cestos para vender o que sobrava. Foi antes de acordar no meio da noite, sonhando com um camaleão de aço que mastigava tudo e lhe triturava as costelas.

     A miséria é a mesma quando o velho Severino apura a vista, na linha do horizonte, no rumo da capoeira, e sente bater-lhe nas faces o vento rebelde que o tropel faz circular entre as umburanas, na perseguição ao touro fugido. E vê, novamente, a boiada no caminho do curral, a água juntando golfos no alagadiço, os bem-te-vis animados no fim da tarde. Enterra a pá de mexer a mandioca no forno, massa pra lá, farinha pra cá, e depois a desenterra:

     — Vou abrir uma cova. É a parte que me cabe.

     Olha para dentro de casa, para se certificar de que não é visto por ninguém, e bota os bagos para fora:

     — Aqui pra vocês!

     Capiberibe corre atrás de um preá que circula o lajedo lá longe. Severino sente medo de ficar sozinho, de ser perturbado pelo espírito do camaleão a tocar fogo nos cestos e no paiol.

     Num tempo em que os homens eram feitos à imagem e semelhança de Deus, vivera a bonança de suas terras, mastigando farinha com rapadura, com tripa de bode, com carne de teiú assada, se fartando com abóboras e melancias, dizendo como queria e como não queria o funcionamento do mundo, com esteira na varanda, rede e água fresca na beira da estrada.

     Dormira em colchão de capim macio, tivera uma negra de peitos e bunda talhados pelo criador para limpar os cabelos, arear os pés, catar piolhos e carrapatos. Sobretudo, para cavoucar suas unhas.

     — Naquele tempo, eu que mandava chover. Depois eu que mandava parar.

     A filha Maria retorna do tanque com o cesto de roupas na cabeça.

     — Falando sozinho, meu pai?

     – Com o cachorro.

     Maria sorri e pisa no alpendre, cantando:

     “Não é cova grande, é cova medida/É a terra que querias ver dividida...”.

     Capiberibe acompanha os passos dela, na esperança de uma sobra de osso na cozinha. Ouvir conversa de velho caduco não enche barriga.

     Cobertor, alpercatas de correia, roupa lavada tinha. O que lhe faltava, então? A filha fazia o possível; mas a vida, não. A vida não tem compromissos. Tivera dias de sonhos, touro na unha, cercas refeitas.

     É assim mesmo, fala pros seus botões, na ausência do cachorro:

     — E depois eu mandava que a chuva chovesse novamente. Para logo ordenar que ela estancasse.

     Sonho ruim vem e muda o verbo do princípio. Vida vem e leva a gente. Vida vem e lava a gente. Vida vem e leva tudo. Como na enxurrada, animais morrendo afogados, mulher e meninos gemendo. O velho vira a moringa e toma uma talagada de aguardente. Começa a dançar no meio do quintal. Capiberibe se anima e morde os seus calcanhares.

     “É a terra que querias...”

     Começa a chover e Severino interrompe a dança, cansado.

     Olha em direção ao tanque, aponta o dedo e atira com a boca — Têi! Tei! — na linha do voo da juriti. O cachorro, também ofegante, pensa em empreender busca ao pássaro imaginário, mas desiste. 

     Senta-se ao lado do velho. O velho deita-se no chão, sobre o travesseiro das lembranças.

     Vai lá longe.

     Vai morar na casa de farinha. Mandioca no lombo, forno de lenha queimando a raiz, o alimento nascendo em seus braços. Matando o porco no quintal, rodeado de netos, a mulher matando galinhas, recolhendo os ovos no ninho, meu Deus, os pequenos morros onde brotavam cactos e que não tapavam a luz do sol, os bodes, lajedos, os preás, a cabeça rodando, a chuva, a barba molhada, o nariz escorrendo, um olhar de tristeza no olhar do papagaio de Macunaíma, uma vontade louca de chorar, se entregando à lama, se mijando todo, o soluço do porco, o sangue da galinha, Maria, minha filha, está chovendo farinha, essa água que não para de cair.

     Não para.    
 
(Contos da vida absurda. Editora Casarão do Verbo, 2014)

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Puta conto

 

        – Você pretendia ser escritora e virou prostituta. Poderia ser uma puta escritora.

     – Já está gravando?

     – Está.

     – O que você pretende com essa entrevista comigo?

     – Quem faz as perguntas aqui sou eu. Eu sou o entrevistador. Você, a entrevistada.

     – Combinado. Você está pagando.

     – Como é o seu nome?

     – Shirley. Alexandra. Simone.

     – E na Carteira de Identidade?

     – Maria das Graças Ribeiro da Cunha. Filha de Maria Auxiliadora Ribeiro e de Salvador Amorim da Cunha. Sou sergipana, de Itabaiana. Tenho vinte e um anos.

     – E na Carteira de Identidade?

     – Trinta e dois.

     – Filhos?

     – Lindos. Um casal. Anderson e Michele. Estão lá, com minha mãe.

     – Bonitos nomes. De onde você os tirou?

     – De uma revista de nomes. Tinha nomes de todo tipo: de americano, de alemão, de francês, todos Jean, Pierre ou Jean-Pierre. Até nome de chinês, Ching, Ling, Ling-Ching. Para que você quer essas informações?

     – Vou escrever um conto.

     – Como vai se chamar.

     – A puta.

     – Interessante.

     – O que aconteceu que empurrou você para essa vida?

     – Que vida?

     – De puta, ora essa.

     – Não aconteceu nada. Um dia resolvi abraçar a profissão de prostituta. Todo mundo precisa ter uma profissão, não é verdade?

     – Você não foi violentada e abandonada, quando novinha?

     – Que nada. Minha primeira vez foi tarde. Eu já era bem crescidinha. Ninguém me violentou nem me abandonou. Dei por prazer e faço isto até hoje.

     – Você não foi expulsa de casa pelo seu pai? Não teve que cair nessa vida por absoluta falta de opção e aí comeu o pão que o diabo amassou?

     – Nada disso. Acho que não sou a personagem ideal para o seu conto. Opções não faltaram e optei pelo prazer.

     – Já apanhou?

     – Já. Mas não gostei. 

     – Qual o seu tipo de homem?

     – Todos. Sobretudo aqueles que pagam bem, são carinhosos, limpos e atenciosos. Que são clientes, mas também sabem ser amantes. Tenho uma queda especial por escritores. Afinal, quase me tornei uma escritora também. Há algo em comum entre as nossas profissões, sabia?

     – Ah, é? O quê?

     – Vocês também se vendem.

     – E quando você desistiu de ser escritora?

     – Não desisti. Apenas optei por viver. Mas vou escrever um conto.

     – Ótimo. E como vai se chamar?

     – O contista.

     – Que interessante.

     – Continue com suas perguntas. Vou precisar muito delas na hora de escrever a minha história.