quarta-feira, 9 de novembro de 2016


Trilha sonora

      A toada que ele conhecia desde menino diz “Adeus, Rosinha, guarda contigo meu coração”. Cantarolando esses versos, Herculano embarcou no ônibus da Viação São Geraldo, em Glória do Goitá, preparado para três dias e duas noites de estradas ruins e travessias na alma. Para trás ficaram mulher e dois filhos pequenos que ele um dia voltaria para buscar. O Rio de Janeiro o esperava de braços abertos – que nem o Cristo da folhinha que ganhou na loja de tecidos e pregou na parede da cozinha – e cheio de amor para dar.

   Fã do lamento sonoro de Zezé Di Camargo e Luciano, Helenice entoou “É o amor... que mexe com minha cabeça e me deixa assiiiiiiimmmm...”, largando o marido para trás com dois filhos pequenos, batendo a porta de casa ainda aqueles chororôs nas ideias, o da música e o dos meninos que ficaram sem mãe.  “Faz eu pensar em você e esquecer de miiiimm”. Tocou para a rodoviária de Feira de Santana, onde embarcou no ônibus da Itapemirim com destino ao Rio de Janeiro, pois já tinha até passagem comprada com antecedência e às escondidas.

     No saguão, ao lado da escada, tinha um cego agachado sobre os calcanhares, chapéu de palha para recolher os cobres e rádio de pilha no colo, de onde se ouvia “Mundo novo, Adeus, Adeus minha amada... Eu vou pra Feira de Santana, vou vender minha boiada”. Quando o ônibus de Helenice deu a partida, o de Herculano encostou na mesma plataforma, pois Feira era uma das paradas para abastecimento e esticada de pernas na longa viagem. Na subida da escada para usar o banheiro e tomar um café, ainda estava lá o cego e o mesmo radio tocando “Vou vender minha boiada... Eu sou um pobre vaqueiro, boiadeiro é meu patrão”.

     Atirou uma moeda no chapéu de palha:

     – Segure aí, meu velho, para tomar um refresco. Foi o rei do baião quem mandou.

     Quando retomou o caminho, quarenta minutos depois, Herculano enfiou uma ponta do readfone no celular que tocava musiquinha (comprado em dez vezes nas Casas Bahia) e outro no ouvido. Começou a cantar sozinho e despreocupado, como se não tivesse mais ninguém no expresso da São Geraldo, “Que falta eu sinto de um bem, que falta me faz um xodó.” Além das músicas de Luiz Gonzaga, ele gostava de ouvir Dominguinhos, Jackson do Pandeiro, Alceu Valença, repertório a que chamava de cantos do nosso povo, expressão ouvida em um programa de rádio e que achou muito bacana.

     Quarenta quilômetros à frente, Helenice enfiou uma ponta do readfone no celular que tocava musiquinha (comprado em dez vezes na loja Ricardo Eletro) e outro no ouvido. Cantava, alheia ao mundo e despreocupada, como se não tivesse mais ninguém no expresso da Itapemirim, “Quando a gente ama, qualquer coisa serve para relembraaaaarrrr”.  Além das músicas de Zezé de Camargo e Luciano, ela gostava de ouvir Chitãozinho e Xororó, João Mineiro e Marciano, Milionário e Zé Rico, Cascatinha e Inhanha, o que chamava de canções representativas do legítimo sentimento brasileiro caipira, expressão ouvida em um programa de televisão e que ela achou o máximo.

     Na parada para o almoço, em Vitória da Conquista, o ônibus da Itapemirim atrasou e foi alcançado pelo da São Geraldo. Os motoristas se conheciam, trocaram um aperto de mão, fumaram um cigarro juntos e em seguida a buzina tocou três vezes, chamando Helenice e os demais passageiros retardatários. Herculano e Helenice cruzaram-se no hall dos banheiros, um entrando apertado e outra saindo apressada. Deram uma paradinha diante do espelho, ela reforçou o batom e ele usou o pente de plástico que carregava no bolso para arrumar o cabelo.

     Olharam-se. Não se viram. O rádio ligado na lojinha que vendia café, refrigerante, biscoito e bolo de aipim tocava “Nosso destino quem sabe é Deus, é Deus, é Deus”, na voz de Dolores Duran, mostrando que havia outras trilhas sonoras no mundo.

     Na parada para o jantar, já em Minas Gerais, Herculano comeu um sanduíche de linguiça e tomou uma cerveja no balcão, depois ficou fumando, ouvindo e acompanhando baixinho uma música que não sabia de onde vinha e dizia “Já chegou contando a história, bebeu água e foi-se embora... Nem se despediu de mim”. Sentiu um aperto no coração e quase que chorou um pouquinho, com saudade dos filhos.

     Helenice comeu um misto quente e bebeu uma fanta laranja, na mesinha de canto, depois encostou-se ao ônibus, colocou o fio no ouvido e ficou escutando uma regravação muito linda do sucesso Menino da Porteira, feita pelo cantor Daniel, um artista que ela admirava. O verso “Nos caminhos desta vida muito espinho eu encontrei” a fez chorar um pouquinho, com saudade dos seus meninos.

     No meio da manhã de um domingo lindo e ensolarado estavam na Rodoviária Novo Rio. Helenice perguntou à moça do balcão de informações como fazer para ir até a Rocinha. A moça disse que o melhor e mais prático era pegar um táxi, mas se quisesse ela poderia ir até o terminal logo em frente, entrar no ônibus para São Conrado e descer no ponto diante da comunidade. Herculano se aproximou do guarda e pergunou como fazer para ir até a Rocinha. Recebeu a mesma orientação, com a ressalva de que bom mesmo seria ir de táxi.

    Helenice resolveu comer um pão com manteiga na lanchonete, antes de qualquer coisa, e achou engraçado a atendente estar cantando “Eu vou tirar você desse lugar, vou levar você para ficar comigo”, pois também gostava muito de Odair José. Herculano resolveu passar antes no banheiro, achou ruim ter que pagar para fazer xixi e lavar o rosto, e achou engraçado o rapaz que gira a roleta de acesso estar cantando “Eu vi o sol, vi a lua clarear, eu vi meu bem dentro do canavial”, com uma voz bem parecida com a de Jackson do Pandeiro, até mesmo um pouco fanha e também cheia de malícia. Sorriu enquanto lavava as mãos na pia e usava o seu pente de plástico.

     Herculano e Helenice acharam logo que o Rio de Janeiro era uma cidade muito musical.

     No coletivo da linha São Conrado – Rodoviária, Helenice contava os minutos para encontrar a prima Rosicleide, que trabalhava como manicure e já tinha conseguido uma vaga para ela no salão pertinho de casa. O salário seria pequeno nos meses de experiência e aprendizado, então ficaria morando com a prima, mas logo alugaria o próprio barraco. Três bancos atrás, Herculano fazia planos de encontrar o cunhado Roserval, com quem dividiria moradia no primeiro momento. Não sabia muito bem com que o sujeito trabalhava, mas ele fora muito seguro no último telefonema:

     “Pode vir que está garantido. O servicinho é um pouco arriscado, mas o dinheiro é bom e isso é o que importa.”

     Motorista e cobrador do ônibus iam cantando, juntos, um quase pagode gostoso que dizia assim:

     “Deixa a vida me levar, vida leva eu...”

     Passageiros os acompanhavam, pois se tratava de um sucesso popular, que tocava na novela e tudo. Helenice sorria. Herculano também. Estavam numa cidade muito musical.

     Nesta mesma noite Herculano saiu com o cunhado para tomar uma cerveja na birosca perto de casa, quando todas as informações sobre o trabalho que o aguardava seriam passadas. Estavam na segunda garrafa, ainda na troca de historinhas familiares de lá e de cá, quando o bando armado chegou, gritando e dando tiros para o alto. Roserval pulou mesas, cadeiras e muros, desaparecendo em direção às luzes que dançavam lá no alto. Herculano tentou se explicar, mas não deu tempo.

     Segunda-feira, nas primeiras horas do dia, o corpo do desconhecido ainda estava estirado na escadaria de acesso ao morro, bem diante da birosca. A caminho do trabalho, Helenice retirou o headfone que enfiara no ouvido tão logo saíra da cama e fez uma oração pela alma do morto. Catou um pedaço de jornal que voava por ali e espalhou as folhas sobre o cadáver, pois começava a cair uma chuvinha fina. O grupo de músicos amadores, que vinha de alguma domingueira noturna e descera da Van animado, espantava o sono com um samba:

     “Tá lá o corpo estendido no chão. Em vez de rosto uma foto de um gol”.

     Voltou a enfiar o fio no ouvido. Sentiu saudade de casa. Vontade de ligar para os meninos e dar alguma notícia. Mas qual?

 

 

 

 

AUTORES DA TRILHA SONORA:

Asa branca. Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira

Feira de gado. Luiz Gonzaga e Zé Dantas

Eu só quero um xodó. Dominguinhos e Gilberto Gil

Fio de cabelo. Chitãozinho e Xororó

Nosso destino. Dolores Duran

Nem se despediu de mim. Luiz Gonzaga e João Silva

O menino da porteira. Teddy Vieira e Luis Raimundo

Eu vou tirar você desse lugar. Odair José

Zabelê. Refrão de samba de roda de autor desconhecido

Deixa a vida me levar. Serginho Meriti e Eri do Cais

De frente pro crime. João Bosco e Aldir Blanc

 




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