sexta-feira, 4 de novembro de 2016


A música

     – Tem horas que a vida é que nem aquela música – ele disse, pegando a xícara e a garrafa térmica.

     – Que música? – Ela perguntou, picando cebola e esfregando o olho com as costas da mão.

     – Aquela da tarde e do viaduto. Um dia cai tudo mesmo em cima da gente. Geralmente, quando a gente pensa que as coisas estão nos conformes.

     Ela não disse nada. Começou a lavar o pimentão.

     – Está fazendo uma salada? – ele perguntou.

     – Refogado para a carne moída – ela disse.

     Ele pingou adoçante no cafezinho, bebeu e foi até a área de serviço. Olhou pelo basculante.

     – Parece que vai chover.

     – É. Está previsto.

     Voltou para a cozinha e botou a xícara na pia.

     – Por que você falou aquilo? – ela perguntou.

     – Aquilo, o quê?

     – Da música que diz que cai a tarde feito um viaduto.

     – Cai, não. Caía.

     – Isso. Caía a tarde...

     – Porque é assim que estou me sentindo, como se um viaduto de aço e concreto tivesse desabado sobre a minha cabeça.

     – É por causa de ontem? Você vai arrumar outro emprego logo.

     – Sei não.

     – Vai. Você é um profissional conhecido e respeitado.

     – É pouco.

     – Meu Deus! Onde já se viu? O que é que conta mais do que isso, criatura?

     – A idade. Estou começando a ficar fora do perfil desejado.

     – Perfil uma ova! – ela disse, misturando os temperos ao óleo e ao caldo de legumes, mexendo com a colher de pau. – Você é bom, meu amor. E isso é o que importa.

     – Quem é bom não perde emprego.

     – Como não? Você não disse que pediram a vaga para um protegido do diretor? Então?! Você não perdeu, tomaram. Essa lei não é de mercado, é de mercadorias.

     O telefone tocou e ele foi atender. Quando voltou, ela misturava a carne moída ao refogado.

     – Era da empresa. Me deram a lista de documentos para a rescisão.

     – O que esse rapaz que entrou em seu lugar sabe fazer?

     – Nada. Era meu estagiário até ontem. Estava começando a aprender. Um garoto, podia ser meu filho.

     – Não é um caso isolado – ela disse, provando a comida.

     – Eu sei.

     – Acontece a toda hora.

     – Eu sei.

     – Nas melhores empresas.

     – Pois é.

     Ele perguntou se ela queria ajuda para pôr a mesa. Ela disse que ele poderia abrir um vinho. Ele disse que não tinha motivos para brindar.

     – Brindemos à falta de motivos – ela respondeu.

     E riu.

     Ele não riu.

     – Não conta para o Júnior não, tá? – ele pediu, durante o jantar.

     – Por que? O nosso filho conhece a vida, sabe como é que a banda toca.

     – Prefiro. Conto quando arrumar outro emprego. Digo que  fiz uma troca.

     – Você que sabe – ela disse, enchendo os copos.

     Ele começou a servir a massa e a carne moída:

     – E o Júnior, não vem jantar?

     – Disse que chegaria tarde. Tinha um chope com uns amigos.

     Ela levantou-se e foi até o aparelho de som.

     – Vou colocar uma música.

     – A que fala da tarde e do viaduto?

     – Não. Uma que diz que amanhã será outro dia.

     Ela sorriu novamente.

     Eles brindaram.

     O  Júnior chegou.

     – Oi, pai. Oi, mãe. Já jantaram?

     – Acabamos neste momento. Ainda está tudo quente – disse a mãe.

     – Foi bom o chope? – perguntou o pai.

     – Foi. Comemoramos a promoção de um amigo. Era estagiário, virou chefe. Lá na empresa que você trabalha.

     Ela pegou as xícaras para o café. Ele preferiu um conhaque. Na cabeça, o verso e a melodia martelavam: “Um bêbado trajando luto...”
Do livro "Aquela música" (Contos), Editora Myrrha, 2016
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário