Neblina
“Foi na Lapa que eu nasci / Foi na Lapa que
eu aprendi a ler /
Foi
na Lapa que eu cresci / Na Lapa eu quero morrer...” (Wilson Batista)
Bandido não fica velho, todos sabem,
porque morre antes que isto aconteça. Mas eu fiquei. Por descuido divino,
desencontro dos dias ou má pontaria dos meus inimigos, vivo a alegria de estar
vivo. E velho. Um ex-bandido pálido, terror de ontem, hoje pedinte comum,
barriga de inércia, uma perna inchada pela elefantíase e a outra vermelha, se
desmanchando na erisipela.
A mão enrugada e estendida à caridade de estranhos pode ser apenas a de
um velho doente e abandonado. E não passa disto. A não ser para um ou outro,
mais velho, que também viveu a Lapa dos meus tempos. Ou para alguém que, mesmo
sendo jovem, ouviu histórias do ontem, quase sempre mergulhadas no caldo da
fantasia. Não falta por aqui quem conheça, conte e reconte mirabolantes
passagens da vida pregressa do temível Neblina.
Dia desses eu estava ali na esquina da Lavradio, teve um que parou, a
mão no bolso, um segundo antes de me passar a moeda:
– Te conheço. Lembro de tu. É o Neblina, não é?
– Fui.
– Trocamos tiros há uns anos aí, numa disputa de boca.
– Deve fazer muito tempo. Esquece isto.
– Já esqueci.
Estendeu a mão de dedos manchados e unhas imundas:
– Prazer, meu nome é Zé Pedro. Era conhecido como Arranque.
– Claro que lembro. Você era terrível.
Pensei em dizer “bom te rever, Arranque”, mas não deu tempo. Passou-me a
moeda de real e seguiu viagem. Melhor assim, eu não estaria sendo sincero. Não
quero ressuscitar velhas encrencas nem estragar a fama de sujeito pacato que
adquiri nessa rua – para onde retorno sempre que o cata mendigos da Ação social
me libera.
A última vez que os homens da
Prefeitura passaram por aqui e me levaram, fizeram um escarcéu dos diabos.
Chegaram tocando zoada, batendo barras de ferro nas paredes dos Arcos,
acordando a vizinhança e assustando a gente. Como fazia uma noite fria, meio
entre a chuva e a garoa, me lembrei de certa noite dos velhos tempos, quando
passei aqui mesmo, por este lugar, e subi a ladeira ao lado, rumo a Santa
Teresa, também acordando todo mundo. Eu comandava uma invasão ao morro da Coroa,
produzindo o pipocar de fogos que deixou a noite do velho bairro imersa na
neblina de pavor e de fumaça.
Foi quando ganhei o apelido.
Não gosto do sentimento de vingança, acho que é prato que não se deve
comer nem mesmo quente. Jamais persegui um desafeto do passado. Zerada a
contenda, é vida que segue, do ponto de partida. Mas nem todo mundo pensa
assim. Hoje é véspera de Natal e o cata mendigos está fazendo a limpa, do
Estácio até a Cinelândia, para deixar a cidade mais respirável. A promessa é a
de que teremos banho, ceia farta e até presentes lá na Fundação.
Entro no ônibus sem reclamar, pois já aprendi que não vale a pena
aborrecer os capatazes. Os funcionários são todos jovens e hoje, ao contrário
dos outros dias, nos tratam com alguma consideração. Deve ser o tal do espírito
natalino. Um deles, trajando camisa polo com marca da Prefeitura no peito,
exibindo os músculos trabalhados no halteres, se aproxima, sorridente:
– Feliz Natal, Neblina.
– O amigo me conhece?
– Desde menino. Você matou o meu pai.
Penso em me levantar e fugir, mas o canalha do motorista já está dando a
partida. Não gosto de vingança, mas sei que tem muita gente que pensa diferente
de mim.
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