segunda-feira, 27 de março de 2017


Quem que eu era?

 
     Todo dia ele faz diferente, que nem na canção do Chico. Mas hoje, não. Ao chegar, perguntando “Lila, você sabe mesmo quem eu sou?”, vi que o Beto voltava a ser, pelo menos naquele dia, o bom e velho Beto de nunca.

     E vi que isto não seria bom.

     Dia é força de expressão, porque na verdade era à noite que o Beto se transfigurava, inventando personagens que transformavam a nossa cama na galeria mais improvável de tipos humanos.

     “Quem que eu era?”

     E antes mesmo que parasse para pensar, ele emendava:

    “Eu era um marujo grego que chegou aqui em um navio transportando minério. Desembarquei no cais e procurava lugar para tomar uma caipirinha, dizem que a caipirinha daqui é uma delícia, quando conheci você”.

     E vinham ritmos, melodias, acordes e compassos desconhecidos. O nosso quarto hospedava uma orquestra mirabolante, onde os instrumentos nem sempre se entendiam; mas aí é que estava a graça.

     “Beto, só você mesmo...”

     “Não ri, Lila, que desconcentra!”

     E ao contrário do verso de Chico, me desmanchava o vestido, me adivinhava os desejos, e ligava o ar-condicionado, no barulho máximo, para a vizinhança não tirar casquinha em nossas construções harmônicas.

     Deus etíope, intelectual nórdico, cavaleiro negro, senhor de engenho, mercador de joias, construtor de sonhos, diabos e santos vindos nem sei de onde.

     “Quem que eu era hoje?”

     Um valente, gay, um gigolô, um negro, um asiático, um vadio, valetes, rufiões, aventureiros.

     Depois não dormia pesado, botava o disco para tocar, e boca cadeado, corpo fogueira, saía de fininho, deixando o quarto em chamas, sem açúcar, sem afeto, eu e o Chico, eu e o medo, eu e o terço a que me agarrava, contando os rosários até sua volta.

     “Beto, quem você era?”

     Até que hoje o novíssimo personagem que era ele mesmo disse “Não dá mais, Lila, não quero mais, não sou nenhum daqueles, nem sequer sou eu mesmo, Lila”, e foi recolhendo os seus pertences, as lembranças dos muitos e tantos, a bota do caçador, o chapéu do pirata, o cinturão do soldado romano, a espada do Robin Hood, as chaves do carcereiro, o nariz do palhaço, o azedume do senhor do mato, o suor, a salmoura, o lenho, as lembranças, o cheiro, tudo, tudo, e disse fui.

     Corri à janela e ainda o vi dobrando a esquina, pulando em uma perna só, fazendo diferente, vestindo o Saci que jamais despiu para mim.


 

 

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