quinta-feira, 27 de dezembro de 2018


O presente não veio embrulhado para presente, porque não podia. Nem veio dentro de uma caixa especial, porque não cabia.

     O presente veio andando, do jeito que sabia.

     E também mugindo, mastigando, berrando, fazendo cocô pelo caminho entre o pasto e o terreiro.

     O presente era uma vaca. Melhor dizendo, uma bezerra – que é uma vaca pequenina, quando ainda menina e antes de virar novilha (que é a vaca quando já mocinha).

     A menina ganhou a vaca de presente do avô, que morava numa fazenda, onde o animal morava e deveria continuar morando.

     A menina estava fazendo sete anos. A bezerra tinha sete meses, o que significa mais ou menos a mesma idade da menina.

     Uma vaca vive entre 10 e 12 anos. Até um ano de idade, ela é uma menina-bezerra. Entre os dois e os quatro anos é novilha-mocinha. Depois, adulta-vaca, até ficar mais velha e continuar vaca até o fim dos seus dias.

     Não foi difícil para a menina entender, porque ela era uma menina; sua mãe, uma adulta; e velho já estava o seu avô.

     – Velho, não! Apenas gasto – dizia o avô.
     E todos riam.
     E a vaca mugia.
     E a vida era de uma simplicidade só.

     A princípio, a menina só visitava a fazenda do avô nas férias de fim ou de meio de ano. Mas aí começou a querer visitar o avô todo final de semana, para brincar com o seu presente.
   
 Brincar com uma vaca? Maneira de dizer.

     Mas acreditem: brincava mesmo.

   
    Para ela, a vaca era montaria.

     Era companhia.

     Para andar nos campos.

     Para a correria.

     Na Índia, a vaca é animal sagrado. Mas disto a menina não sabia. Nem queria saber.

     A menina levava a vaca à porta da casa,  para que ela conhecesse bem toda a sua família.

     A vaca levava a menina aos pastos, onde estavam os seus pais, irmãos, primos, os parentes todos, todo mundo pastando e mugindo. E, claro, fazendo muito cocô no capim.

     A menina tinha fotos da vaca na cortiça do quarto, entre as lembranças dos parentes e amigos.

     Desenhou um retrato da vaca na mochila.
  
     E falava sobre a vaca para todos os amigos e colegas de escola.
    
     Na fazenda, não era diferente. Quando a menina ficava muitos dias sem aparecer, a vaca dava plantão na porta, esperando. Os olhos de vaca, espichados e compridos na direção da estrada.

     – Ela sente saudades – dizia o avô.

     E quando a menina chegava, os três sempre saíam a passear juntos: a menina, a vaca e o avô.

     Um dia o grupo deixou de ser um trio. Velhinho, o avô partiu.

     Mas a dupla continuou unida.

     No eito, no estio, na beira do rio.

     Do rio que passava bem ao lado do pasto, silencioso, observador.

     Que observou a menina crescendo. A bezerra, a novilha, a vaca envelhecendo.

     E que banhou os olhos da menina, agora moça, durante o mergulho mais demorado, no dia em que ela percebeu que a felicidade não dura para sempre (a dor também não): a vaca partiu ao encontro do avô.

     Agora os dois estão guardados bem próximos um do outro, num pedaço de terra que se espalha entre o pasto e o rio.

     E ali a menina coloca flores, em todas as férias, e diz que é o altar sagrado que um dia será mostrado aos filhos dela.

(A menina, a vaca e o avô. Editora Positivo, 2011)


sábado, 8 de dezembro de 2018


A farinha e o sonho


O homem velho deixa a vida e a morte para trás
 Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais.
Caetano Veloso


     Sentado no batente da porta, cavoucando as unhas dos pés que se roçam nas pedras, o velho Severino, mais morte do que vida, coça com as juntas dos dedos o osso da cabeça do cachorro Capiberibe. Cheio de fome e de pulgas, o cachorro olha sem qualquer paixão para o umbuzeiro carregado de frutos e de passarinhos.
     Severino diz mais dia menos dia tudo isto se acaba, meu amigo.
     Capiberibe late para o nada.
     O animal estava para o velho como o papagaio Aruaí esteve para o grande imperador Macunaíma. Depois de acompanhar os passos do herói sem caráter e de fazer parte do seu séquito, foi encontrado um dia pelo escritor a quem relatou tudo o que se passara, antes de bater asas no rumo de Lisboa. A tribo de Macunaíma se acabara, a do velho Severino estava chegando ao fim.
     — Cadê a farinha que guardei aqui?
     O papagaio sabia conservar no silêncio as frases e feitos do herói. O cachorro também.
     O calor provoca coceiras em Capiberibe e ensopa de suor o peito de Severino. Ele pede a Deus que mande chuva bem forte, daquelas que parecem derrubar o mundo, água limpa escorrendo pela cumeeira, cada pingo enchendo um pote. Cadê os raios que desciam em disparada, dançando feito minhocas luminosas e tontas? E o barulho que se ouvia por trás da serra, quando pipocavam os trovões, enquanto o muque forte empurrava para lá e para cá a pá de madeira na casa de farinha?
     — Quem sumiu com a ferramenta de trabalho que guardei como lembrança?
     Foi antes de o progresso chegar, do veneno das latas, do barulho das motos. Quando carregava a mandioca no lombo, colocava as raízes na água fresca retirada do tanque para preparar a massa e torrar a farinha. E dividi-la com os filhos e netos e irmãos e amigos, depois encher os cestos para vender o que sobrava. Foi antes de acordar no meio da noite, sonhando com um camaleão de aço que mastigava tudo e lhe triturava as costelas.
     A miséria é a mesma quando o velho Severino apura a vista, na linha do horizonte, no rumo da capoeira, e sente bater-lhe nas faces o vento rebelde que o tropel faz circular entre as umburanas, na perseguição ao touro fugido. E vê, novamente, a boiada no caminho do curral, a água juntando golfos no alagadiço, os bem-te-vis animados no fim da tarde. Enterra a pá de mexer a mandioca no forno, massa pra lá, farinha pra cá, e depois a desenterra:
     — Vou abrir uma cova. É a parte que me cabe.
     Olha para dentro de casa, para se certificar de que não é visto por ninguém, e bota os bagos para fora:
     — Aqui pra vocês!
     Capiberibe corre atrás de um preá que circula o lajedo lá longe. Severino sente medo de ficar sozinho, de ser perturbado pelo espírito do camaleão a tocar fogo nos cestos e no paiol.
     Num tempo em que os homens eram feitos à imagem e semelhança de Deus, vivera a bonança de suas terras, mastigando farinha com rapadura, com tripa de bode, com carne de teiú assada, se fartando com abóboras e melancias, dizendo como queria e como não queria o funcionamento do mundo, com esteira na varanda, rede e água fresca na beira da estrada.
     Dormira em colchão de capim macio, tivera uma negra de peitos e bunda talhados pelo criador para limpar os cabelos, arear os pés, catar piolhos e carrapatos. Sobretudo, para cavoucar suas unhas.
     — Naquele tempo, eu que mandava chover. Depois eu que mandava parar.
     A filha Maria retorna do tanque com o cesto de roupas na cabeça.
     — Falando sozinho, meu pai?
     – Com o cachorro.
     Maria sorri e pisa no alpendre, cantando:
     “Não é cova grande, é cova medida/É a terra que querias ver dividida...”.
     Capiberibe acompanha os passos dela, na esperança de uma sobra de osso na cozinha. Ouvir conversa de velho caduco não enche barriga.
     Cobertor, alpercatas de correia, roupa lavada tinha. O que lhe faltava, então? A filha fazia o possível; mas a vida, não. A vida não tem compromissos. Tivera dias de sonhos, touro na unha, cercas refeitas.
     É assim mesmo, fala pros seus botões, na ausência do cachorro:
     — E depois eu mandava que a chuva chovesse novamente. Para logo ordenar que ela estancasse.
     Sonho ruim vem e muda o verbo do princípio. Vida vem e leva a gente. Vida vem e lava a gente. Vida vem e leva tudo. Como na enxurrada, animais morrendo afogados, mulher e meninos gemendo. O velho vira a moringa e toma uma talagada de aguardente. Começa a dançar no meio do quintal. Capiberibe se anima e morde os seus calcanhares.
     “É a terra que querias...”
     Começa a chover e Severino interrompe a dança, cansado.
     Olha em direção ao tanque, aponta o dedo e atira com a boca — Têi! Tei! — na linha do voo da juriti. O cachorro, também ofegante, pensa em empreender busca ao pássaro imaginário, mas desiste. 
     Senta-se ao lado do velho. O velho deita-se no chão, sobre o travesseiro das lembranças.
     Vai lá longe.
     Vai morar na casa de farinha. Mandioca no lombo, forno de lenha queimando a raiz, o alimento nascendo em seus braços. Matando o porco no quintal, rodeado de netos, a mulher matando galinhas, recolhendo os ovos no ninho, meu Deus, os pequenos morros onde brotavam cactos e que não tapavam a luz do sol, os bodes, lajedos, os preás, a cabeça rodando, a chuva, a barba molhada, o nariz escorrendo, um olhar de tristeza no olhar do papagaio de Macunaíma, uma vontade louca de chorar, se entregando à lama, se mijando todo, o soluço do porco, o sangue da galinha, Maria, minha filha, está chovendo farinha, essa água que não para de cair.
     Não para.    

(Publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras e no livro "Contos da vida absurda)

segunda-feira, 12 de novembro de 2018


Irmandade

     Lá em casa era assim: a gente apanhava no atacado e no varejo. No atacado, quem agia era o pai. Juntava todo mundo num canto da casa, um colado no outro para não dispersar, e descia o braço. Braço era maneira de dizer. Na verdade, ele vinha com bainha de facão, ripa de madeira, corrente de ferro com cadeado e tudo, e até chapa de aço. Uma lenha. A mãe, com menos força no muque, cuidava da ação no varejo, exemplando de um em um, apoiada no cinturão de couro, tomada de ferro elétrico, cabo de vassoura, o que lhe caísse à mão. Tudo dividido, irmãmente.
     O pai batia melhor quando bêbado. Quando chegava do bar tropeçando nas cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia ser caprichado. Pelo menos um tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos assim. A mãe já tinha outras manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de cabeça crônica, que tinha desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento físico, mais vontade de sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta dor, a pobre, suando frio na fronte. E tome esforço, na tortura da molecada; então, suava mais ainda. O suor materno era um terror para nós.
     A dor da mãe não era mania, não. Nem combustível para animar as surras. Descobrimos isso no dia em que sua cabeça explodiu e os médicos disseram pro pai que ela tinha coisa muito ruim nos miolos. O pai ficou triste. E preocupado, porque não teria mais com quem dividir a tarefa sôfrega. Tanto filho para espancar sozinho, coitado, ninguém merece. Ainda mais com a tropa se desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio taludos e dificultando o manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente, lamentou.
     Mas até que os dias difíceis não foram muitos, porque logo, logo o pai começou a inchar; primeiro as mãos e os pés, depois as maçãs do rosto, e um dia foi carregado pelos vizinhos depois de botar muito sangue pelo nariz. E não foi, como pensaram a princípio, reação violenta de nenhum de nós. Nunca fomos de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que atendeu a nossa mãezinha disse para a gente que o papai não passaria daquela noite. E não passou.
     — Cirrose — disse ele.
     — Surra bastante o fígado, não é, doutor? — eu perguntei.
     — Surra bastante tudo, meu jovem. Todos os órgãos, no atacado e no varejo — respondeu, com um sorriso de canto de boca.
     O doutor era um sujeito engraçado.
     Depois de deixar o corpo do pai no cemitério, dentro de um caixão que os vizinhos fabricaram, voltei para casa e reuni os irmãos. Na qualidade de mais velho, eu tinha que dizer algumas palavras, nem que fosse apenas para desejar boa sorte a todos na novíssima vida que nos esperava.
     Disse a eles que sem mãe, e agora sem o pai, cada um ia ter que cuidar do próprio destino. Depois de tanto tempo apanhando em casa, estava na hora de neguinho aprender a tropeçar com as próprias pernas. Pancada garantida, três vezes ao dia, nunca mais. As meninas, pelo menos, poderiam arranjar maridos que, com sorte, gostassem da pancadaria. Para os meninos, seguramente, o futuro seria mais incerto.
     Fiz a mochila de cada um, passei batom e alfazema nas moças, cortei as unhas e penteei os cabelos dos moleques, e ordenei que pegassem a trilha desejada, em busca do próprio caminho. Também ganhei a estrada, depois de trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o que havia lá dentro, lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o vigor do chute do pai.
     Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei me ajeitando aqui na obra. O trabalho é duro e à noite, depois de um dia de labuta, o corpo reage como se tivesse levado uma surra de vara: entre moído e relaxado, meio sofrido e meio orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá feito deles, se batem nos próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida. Lembro mais deles nos fins de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia um caboclo bebedor. Nesses dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe parece que aumentava.

(Do livro "Contos da vida absurda". Editora Casarão do Verbo,  2014)



segunda-feira, 24 de setembro de 2018


Garras

      A senhoria tinha garras afiadas, sempre pintadas de um vermelho sangue, da mesma cor dos lábios que ela vivia mordendo e exibindo, fazendo beicinhos.
     O que matava era o cheiro de vodca barata.
     – Quero que você seja muito feliz aqui.
     É possível ser feliz dentro de um quarto minúsculo no Catumbi? Engoli em seco:
     – Não tenho do que me queixar.
     Estava quase na hora em que o amante da senhoria costumava chegar. Era enorme. Dava dois de mim.
     – Você tem uns olhos lindos – ela gemeu.
     Ele empurrava a porta sempre a essa hora, com cara de poucos amigos. Às vezes dizia uns palavrões. Às vezes cobria a infeliz de pancada.
     – Gosto muito desse seu sorrisinho safado – ela insistiu.
     O amante era cabo ou soldado da polícia, encostado por
invalidez: perturbações mentais.
     Tem hora que parece que Deus abandonou a gente.
– Não precisa ficar nervoso, seu bobo – a mão melosa em minha perna trêmula.
     – Seu marido deve estar chegando a qualquer momento.
     – Não é meu marido. E hoje ele chega mais tarde.
     As garras no meu queixo, tentando me beijar à força. O cheiro e o gosto de vodca me deixavam tonto. A língua no meu pescoço, o joelho esfregando no meu colo.
     – Essa coisa não fica dura?
     Fechou as janelinhas do cubículo e arrancou as roupas às pressas. Muito feia, coitada.
     Me fechei, as mãos protegendo as partes ameaçadas. Fez pose de zangadinha:
     – Não me quer?
     – Não é bem isso.
     A chave na porta, graças a Deus. O amante chegando do bar, se arrastando pesado. A infiel correndo para o seu quarto, catando roupas íntimas pelo chão. Tranquei a porta por dentro e respirei fundo. Só consegui ouvir o grito, cadela, e o som do que deve ter sido um soco. Ou um chute no armário.
     Tomara que não tenha matado a pobrezinha.
(Do livro "Um cometa cravado em tua coxa", Editora Record, 2003)




terça-feira, 4 de setembro de 2018


A viagem



     O rapaz entrou em casa como quem entra no bar. Sentou em uma cadeira e estirou as pernas sobre o tamborete. Pegou a garrafa de cachaça no móvel ao lado da mesa e um copo na bandeja cheia de copos que ficava ao lado da garrafa. Serviu-se e tomou duas doses, uma seguida da outra, depois acendeu um cigarro. A sala estava na penumbra, iluminada apenas pela luz azulada da televisão que o pai assistia. O clarão do palito de fósforo iluminou o rosto do rapaz e o pai observou que ele tinha a barba por fazer. O pai viu que os sapatos do rapaz estavam sujos, largando tufos de terra sobre o tamborete, mas não reclamou. Apenas perguntou você vai mesmo e ele disse vou.
     O pai quis saber se ele estava aborrecido com alguma coisa e ele disse que não. O pai então perguntou por que resolvera partir assim, tão de repente? Ele respondeu que era para não perder a oportunidade, o caminhão alugado pela empresa sairia de manhã bem cedo, levando todos os candidatos ao emprego. Queria aproveitar para não ser obrigado a ir depois, sozinho, ainda tendo que pagar a passagem.
     Que tipo de trabalho é esse, meu filho?, o pai quis saber.
     O rapaz não respondeu e amarrou a cara. E se serviu de mais uma dose.
     O pai insistiu, me diga ao menos onde é. Respondeu que era na capital. A contragosto. O pai perguntou ao filho se já tinha separado todos os documentos, sem esquecer identidade e carteira profissional, e ouviu um muxoxo como resposta: não sou abestalhado, meu pai. O pai disse eu sei, filho, é só uma preocupação.
     Está levando algum dinheiro?
     Estou. O pouco que tenho.
     Precisa de uma ajuda?
     De jeito nenhum. Guarde suas economias, para as necessidades.
     O pai perguntou se o filho sabia quanto ia ganhar e ele respondeu que não. Sabia ao menos se o ganho seria suficiente para as despesas? Ele respondeu que sim. Derramou mais uma dose de cachaça no copo e o pai disse pare de beber, vá se alimentar. Vá fazer essa barba e tomar um banho. Depois descansar, de manhã cedo precisa estar preparado para encarar a estrada.
     Não sou eu quem vai dirigindo, reagiu o rapaz.
     Mesmo assim, disse o pai.
     O rapaz perguntou pela mãe e o pai respondeu que estava no quarto, onde mais estaria? Melhora nenhuma?, perguntou. Melhora nenhuma, foi a resposta. O pai disse vá se despedir dela, já que você vai sair bem cedo, e o rapaz disse que preferia não se despedir. Disse não quero olhar para a mãe daquele jeito que ela está. O pai disse você é quem sabe e reparou que o filho tinha os olhos molhados. O pai se levantou para desligar a televisão e o filho observou que ele também tinha os olhos molhados.
     O pai disse vou dormir e já estava até mesmo de pijama. O rapaz desejou um bom sono. Pode aguardar que mandarei notícias. E não se preocupe com nada. O pai disse me despeço de você amanhã. O rapaz respondeu que ia madrugar.
     Não tinha importância. O pai estaria acordado.
     Bem cedo estava em pé diante do fogão, preparando café e esquentando na chapa umas bolachas que tirava do saco de papel. O rapaz acabava de colocar as roupas na sacola e penteava o cabelo diante do espelho do banheiro. O pai apontou o corte abaixo do queixo e o filho disse que fora gilete cega. O pai ofereceu uma loção pós-barba. Gosto mais de passar álcool mesmo, disse o rapaz, mas dessa vez sem qualquer impaciência.
     Quer ovos quentes, para forrar bem o estômago?, o pai quis saber. O rapaz disse que não era preciso. Aí o pai lembrou que talvez ele não conseguisse comer nada tão cedo e o rapaz disse deixe, pai, que eu me ajeito. O deixe, pai, soou de maneira carinhosa. E foi com mais carinho ainda que o pai acabou de esquentar as bolachas.
       O pai ficou olhando para o filho, enquanto ele tomava café, acendia o cigarro, entrava e saía do banheiro, conferia as peças de roupas na sacola, olhava para o quarto da mãe, parecia entrar no quarto, se afastava, bebia água do filtro que estava no canto, ao lado do fogão, olhava para o quintal e depois para as paredes, assoviava para o passarinho, coçava a cabeça do cachorro.
     O pai ficou olhando para o filho enquanto ele fechava o zíper da sacola, dizia até breve, pai, fique com Deus, e se afastava.
     E assim o homem desconhecido que bateu na porta dois dias depois encontrou o pai. Era um fim de tarde e ele tomava uma cachaça no copo que o filho gostava de usar, olhando ora para a porta por onde o filho saiu e ora para o quarto onde o filho não entrou para se despedir da mãe.
     O moço perguntou o senhor é o pai dele? Falou calmamente do acidente com o caminhão, como foi e como não foi, quem teve culpa e quem não teve, que o motorista da carreta é que descia a ladeira dirigindo desembestado, e foi falando tanta coisa que o pai não conseguia mais ouvir nem entender.
     Por fim o moço disse como o pai deveria proceder para retirar o corpo, as roupas e os documentos do filho do instituto médico legal de não sei onde. Que outro caminhão da empresa estava à disposição para trazer todos os corpos de volta, mas que o pai tinha que ir até lá tal dia e tal hora, para aproveitar o carreto.
     E do jeito que entrou, o moço saiu. Falando sem parar, agora já dizendo coisas como meus sentimentos, isso acontece, é da vida, descansou, Deus chamou, era um rapaz tão jovem, tão forte, tão bom e outras falas que o pai já não conseguia ouvir, pois só queria que ele fosse logo embora, para entrar no quarto escuro e abafado da doente e dar de uma vez por todas a notícia que estava para dar há quarenta e oito horas: o nosso filho viajou.
(Do livro "Contos da vida absurda", Editora Casarão do Verbo, 2014)

quinta-feira, 23 de agosto de 2018


Quem que eu era?
      Todo dia ele faz diferente, que nem na canção do Chico. Mas hoje, não. Ao chegar, perguntando “Lila, você sabe mesmo quem eu sou?”, vi que o Beto voltava a ser, pelo menos naquele dia, o bom e velho Beto de nunca.
     E vi que isto não seria bom.
     Dia é força de expressão, porque na verdade era à noite que o Beto se transfigurava, inventando personagens que transformavam a nossa cama na galeria mais improvável de tipos humanos.
     “Quem que eu era?”
     E antes mesmo que parasse para pensar, ele emendava:
    “Eu era um marujo grego que chegou aqui em um navio transportando minério. Desembarquei no cais e procurava lugar para tomar uma caipirinha, dizem que a caipirinha daqui é uma delícia, quando conheci você”.
     E vinham ritmos, melodias, acordes e compassos desconhecidos. O nosso quarto hospedava uma orquestra mirabolante, onde os instrumentos nem sempre se entendiam; mas aí é que estava a graça.
     “Beto, só você mesmo...”
     “Não ri, Lila, que desconcentra!”
     E ao contrário do verso de Chico, me desmanchava o vestido, me adivinhava os desejos, e ligava o ar-condicionado, no barulho máximo, para a vizinhança não tirar casquinha em nossas construções harmônicas.
     Deus etíope, intelectual nórdico, cavaleiro negro, senhor de engenho, mercador de joias, construtor de sonhos, diabos e santos vindos nem sei de onde.
     “Quem que eu era hoje?”
     Um valente, gay, um gigolô, um negro, um asiático, um vadio, valetes, rufiões, aventureiros.
     Depois não dormia pesado, botava o disco para tocar, e boca cadeado, corpo fogueira, saía de fininho, deixando o quarto em chamas, sem açúcar, sem afeto, eu e o Chico, eu e o medo, eu e o terço a que me agarrava, contando os rosários até sua volta.
     “Beto, quem você era?”
     Até que hoje o novíssimo personagem que era ele mesmo disse “Não dá mais, Lila, não quero mais, não sou nenhum daqueles, nem sequer sou eu mesmo, Lila”, e foi recolhendo os seus pertences, as lembranças dos muitos e tantos, a bota do caçador, o chapéu do pirata, o cinturão do soldado romano, a espada do Robin Hood, as chaves do carcereiro, o nariz do palhaço, o azedume do senhor do mato, o suor, a salmoura, o lenho, as lembranças, o cheiro, tudo, tudo, e disse fui.
     Corri à janela e ainda o vi dobrando a esquina, pulando em uma perna só, fazendo diferente, vestindo o Saci que jamais despiu para mim.
(Do livro "Aquela música", editora Myrrha, 2016)


quarta-feira, 15 de agosto de 2018


Danadinha
      Quando minha mãe diz “Boa noite, filhinha, durma com Deus”, o sangue muda de temperatura em minhas veias. Toda noite é assim. Quando ela apaga a luz, joga o beijinho com “Eu te amo” e fecha a porta do quarto, a adrenalina dispara a partir do dedão do pé, fazendo acrobacias nas zonas erógenas e se espalhando pelo corpo.
     Toda noite é assim.
     Espero alguns minutos, até minha mãe entrar e sair do banheiro, pegar a jarra de água na cozinha e fechar a porta dos seus aposentos. Sei que daí a pouco estará dormindo, que o meu pai já dorme há mais de uma hora, que nesse instante a casa passa a ser só minha, do meu computador e dos meus amantes virtuais.
     Pulo da cama para a mesinha onde fica o laptop, estrategicamente instalado de forma a que a câmera tenha um bom alcance do cenário, e começo a teclar.
     Danadinha entra na sala.
     Demorô, Danadinha.
     É o Fabão, um que parece ficar vinte e quatro horas aceso.
     Danadinha: Acordado essa hora, menino?!
     Fabão: Esperando você. Liga a câmera.
     O maluco está se masturbando, como sempre.
     Fabão faz umas caretas, se contorce todo e dá um tempo. Deve ter ido tomar banho. Além de ver, gosto de imaginar o que os amigos fazem fora do alcance da câmera.
     Entra um novato, cheio de intimidades.
     Macho Viril: Oi, gostosa. Tira essa camiseta.
     Eu tiro.
     Macho Viril: Tira a calcinha.
     Eu tiro.
     Danadinha: Sou muito obediente.
     Ele já está nu.
     Viúva entra e sai da sala.
     Madruga está só espiando.
     Entram Foderoso, Maguila, Cruel, Macho2015 e até uma tal de Afrodite, perguntando se eu gosto de meninas. Não gosto, mas respondo que só curto as feias.
     Afrodite: kakakakakaka!!!
     Macho Viril sai
     Aí ele entra, na hora de sempre.
     Deixo sem respostas as perguntas de Gostoso Solitário, Casalsacana, Caio de Boca, Louro Pelado, Gato Sarado, Piruzão e Putaça.
     Toda madrugada é assim.
     Zebu: Oi, princesa!
     Danadinha: Oi, meu touro bravo!
     Zebu: Todos dormem aí?
     Danadinha: Todos! Menos uma!
     Zebu: Quem?!
     Danadinha: A sua peludinha...
     Zebu: Eu sabia!
     Danadinha: Acordada, quente e molhada. Carne em brasa!
     Zebu: Só acredito vendo!
     Danadinha: Estou indo aí!
    Saio da sala de bate papo, mas não desligo a máquina. Ponho uma camisola por cima do corpo nu e pego a bolsa de lona preta no fundo do armário, escondida sob as roupas. Abro a porta do quarto, prendendo a respiração, descalça para não fazer barulho. Aravesso o corredor, a sala, a cozinha, e saio pela porta dos fundos. Desço os lances de escada que separam o meu apartamento do quarto do zelador do prédio, na garagem.
     Empurro a porta, que está apenas encostada. Cícero sorri, esparramado na cama de solteiro, peladão. Abro a bolsa, retiro um por um os objetos que vou colocando em cima da cama: algemas, chicote, um estilete de ponta fininha e a coleira que ele gosta tanto quando eu uso.
     Repetimos as brincadeiras que me deixam machucada, porém feliz. Quando ponho a coleira, ele aperta até eu quase desmaiar. Vai me conduzindo de quatro, a chicotadas, de um lado para o outro do quartinho. Põe para tocar o funk horroroso, que fica repetindo “Vem cachorro, vem cachorro, diz que vai me enlouquecer... “ Só depois consegue se satisfazer, aos gritos de “Cadela vadia”.
    “Vai acordar o prédio inteiro, maluco!”
     Lembro-me de minha amiga Tati, que é toda certinha. Quando conto essas histórias que minha avó diria “do arco da velha”, ela diz que não consegue imaginar alguém que fala três idiomas e estudou filosofia praticando “uma baixaria dessas”.
    “Para você ver”, eu digo.
    “Tudo tem limite. Coleira no pescoço é demais!”
     “Relaxa, Tati. A modelo e atriz, famosíssima, usou coleira no desfile da escola de samba e ninguém achou estranho.”
     “Ali era de brincadeira. Uma declaração de amor ao marido.”
     “No meu caso também é uma declaração de amor, ao Zebu.”
     “Maluca!”
     Vou dizer mais o quê? Cada um sabe de si.
     Quando Cícero afrouxa o meu pescoço, eu consigo respirar, mas ainda com dificuldade. Ele diz que qualquer dia aperta até eu não poder respirar.
     “E depois?”, eu pergunto.
     “Jogo seu corpo na lixeira do prédio!”
     “E depois?”
     “Depois o caminhão do lixo completa o serviço.”
     “Ui! Malvado.”
     Volto para casa, novamente na ponta dos pés. Arrumo os objetos na bolsa e a bolsa no fundo do armário. Preciso de um banho, urgente.
     Lembro-me das palavras de Cícero Zebu, no meu ouvido:
     “Qualquer dia eu aperto até você não poder respirar.”
     Só então me dou conta de que não tirei a coleira.
     Cruzo com minha mãe no corredor, ela saindo do banheiro.
     “Acordada, filhinha?”
     “Estou, mamãe.”
     “O que é isso no seu pescoço?”
     “Uma coleira antidistônica. Ajuda a dormir.”
     Minha mãe balança a cabeça. E segue lentamente para o quarto.
(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)



sexta-feira, 3 de agosto de 2018


O matador de aluguel



     Caruá, para quem não conhece, fica em região incerta e não sabida no sertão nordestino. Avessa a badalações, divulgação ou febres turísticas, a população local me pede que jamais dê qualquer pista que identifique a cidade no mapa; até porque, Caruá não está no mapa.
     Eis que notório homem de terras caruarenses resolveu eliminar um desafeto, com quem vivia às turras por conta de pendengas rurais. Contratou um matador de aluguel, que atendia pelo sugestivo nome de Trabuco, e encomendou o serviço. Com uma ressalva das mais curiosas:
     – Não dê conversa pro Fulano, pois ele é muito camaradeiro. Monte a arapuca, faça o serviço e venha embora, pois se cair na besteira de prosear, você desiste de cumprir a tarefa. Leve metade do dinheiro, depois do trabalho feito venha buscar o restante.
     O matador partiu e o fazendeiro foi acender uma vela pela alma do futuro defunto. Depois de aguardar o tempo regulamentar combinado neste tipo de empreitada – uma semana – pelo retorno de Trabuco, que viria trazer a prova do crime e receber a outra parte do pagamento, o fazendeiro resolveu dar uma incerta no local combinado para a tocaia, à procura de algum vestígio do serviço: o corpo, sinais de luta, um cartucho de espingarda, o que fosse.
     Lembram do aviso? Não dê conversa pro Fulano, pois ele é muito camaradeiro? Não deu outra. Debaixo de um pé de umbu, curtindo a sombra em volta de uma garrafa de pinga, cigarrinho de palha entre os dedos, estavam o ex-quase-futuro morto e aquele que deveria mandá-lo desta para uma melhor. A prosa parecia das mais animadas, o camaradeiro entregue à sua atividade principal, o exercício da camaradagem, e o (im)provável matador às gargalhadas, embevecido com as histórias deliciosas que ouvia.
     Ao ver o contratante, pasmo e incrédulo sobre o cavalo, o contratado pegou o maço recebido com adiantamento e o devolveu, com esta pérola:
     – Tome o seu dinheiro de volta, coronel. Um homem alegre desse não se mata!
(Do livro "O matador de aluguel e outras figuras", Ed. Melhoramentos, 2011)


quinta-feira, 26 de julho de 2018


Irmandade

     Lá em casa era assim: a gente apanhava no atacado e no varejo. No atacado, quem agia era o pai. Juntava todo mundo num canto da casa, um colado no outro para não dispersar, e descia o braço. Braço era maneira de dizer. Na verdade, ele vinha com bainha de facão, ripa de madeira, corrente de ferro com cadeado e tudo, e até chapa de aço. Uma lenha. A mãe, com menos força no muque, cuidava da ação no varejo, exemplando de um em um, apoiada no cinturão de couro, tomada de ferro elétrico, cabo de vassoura, o que lhe caísse à mão. Tudo dividido, irmãmente.
     O pai batia melhor quando bêbado. Quando chegava do bar tropeçando nas cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia ser caprichado. Pelo menos um tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos assim. A mãe já tinha outras manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de cabeça crônica, que tinha desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento físico, mais vontade de sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta dor, a pobre, suando frio na fronte. E tome esforço, na tortura da molecada; então, suava mais ainda. O suor materno era um terror para nós.
     A dor da mãe não era mania, não. Nem combustível para animar as surras. Descobrimos isso no dia em que sua cabeça explodiu e os médicos disseram pro pai que ela tinha coisa muito ruim nos miolos. O pai ficou triste. E preocupado, porque não teria mais com quem dividir a tarefa sôfrega. Tanto filho para espancar sozinho, coitado, ninguém merece. Ainda mais com a tropa se desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio taludos e dificultando o manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente, lamentou.
     Mas até que os dias difíceis não foram muitos, porque logo, logo o pai começou a inchar; primeiro as mãos e os pés, depois as maçãs do rosto, e um dia foi carregado pelos vizinhos depois de botar muito sangue pelo nariz. E não foi, como pensaram a princípio, reação violenta de nenhum de nós. Nunca fomos de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que atendeu a nossa mãezinha disse para a gente que o papai não passaria daquela noite. E não passou.
     — Cirrose — disse ele.
     — Surra bastante o fígado, não é, doutor? — eu perguntei.
     — Surra bastante tudo, meu jovem. Todos os órgãos, no atacado e no varejo — respondeu, com um sorriso de canto de boca.
     O doutor era um sujeito engraçado.
     Depois de deixar o corpo do pai no cemitério, dentro de um caixão que os vizinhos fabricaram, voltei para casa e reuni os irmãos. Na qualidade de mais velho, eu tinha que dizer algumas palavras, nem que fosse apenas para desejar boa sorte a todos na novíssima vida que nos esperava.
     Disse a eles que sem mãe, e agora sem o pai, cada um ia ter que cuidar do próprio destino. Depois de tanto tempo apanhando em casa, estava na hora de neguinho aprender a tropeçar com as próprias pernas. Pancada garantida, três vezes ao dia, nunca mais. As meninas, pelo menos, poderiam arranjar maridos que, com sorte, gostassem da pancadaria. Para os meninos, seguramente, o futuro seria mais incerto.
     Fiz a mochila de cada um, passei batom e alfazema nas moças, cortei as unhas e penteei os cabelos dos moleques, e ordenei que pegassem a trilha desejada, em busca do próprio caminho. Também ganhei a estrada, depois de trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o que havia lá dentro, lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o vigor do chute do pai.
     Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei me ajeitando aqui na obra. O trabalho é duro e à noite, depois de um dia de labuta, o corpo reage como se tivesse levado uma surra de vara: entre moído e relaxado, meio sofrido e meio orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá feito deles, se batem nos próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida. Lembro mais deles nos fins de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia um caboclo bebedor. Nesses dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe parece que aumentava.

(Do livro "Contos da vida absurda", editora Casarão do Verbo, 2014)


quarta-feira, 25 de julho de 2018


Traste
      –Vai lá na sala se despedir do traste do teu pai – disse minha mãe, me puxando pela orelha, torcendo a cartilagem do meu lóbulo.
     – Quando novinho eu nem sabia direito o significado da palavra; mas tinha certeza de que o meu pai não era traste, não. Minha mãe implicou muito com ele, a vida inteira. Mesmo naquele momento, ele morto mortinho, a implicância continuava, como se vê.
     Parado diante do corpo duro e estirado do meu pai, os olhos dele parecendo duas pedras de vidro, vidrados no teto, me pergunto se ele era o demônio todo que a mãe desenhava. Será? Só por que tomava cachaça, não parava em emprego nenhum, e vez em quando tinha a mania de querer bater na gente?
     Não batia, só ameaçava, quando estava com a cabeça quente e cheia de álcool. Meu pai nem sempre cumpria o que prometia, o que deixava minha mãe mais aborrecida, cobrando o conserto do fogão, a troca das telhas quebradas, o colchão novo, cadê?, cadê?
     Não havia dinheiro, não sobrava dinheiro para nada.
     “Coitado”, eu pensava.
     – Traste!  – ela dizia.
     Minha mãe não bebia cachaça, mas tinha outro vício: gostava de ouvir conversa de pai-de-santo, fazer despachos – que ela chamava de “trabalhos” – e de cantar umas cantorias estranhas, que dizia ser “pontos e cânticos”.
     Meu pai detestava essa prática, porque ele se dizia muito católico – mesmo sem jamais ter passado sequer na porta de uma igreja – e interessado nos assuntos do céu e de Deus. Quando a mãe reclamava que o pai gastava o dinheiro da gente no balcão do bar, ele retrucava:
    – Pior é gastar fazendo feitiço.
     Agora o pai está aqui, seu corpo estiradinho em minha frente, o povo rezando as rezas que pra mim são cantiga, “Com minha mãe estarei, na santa glória um dia...”, “Uma incelença, entrou no paraíso... Adeus, irmão, adeus, até o dia do juízo...”, nem de longe parecendo aquele corpo cheio de rugas e de cabelos do meu pai quando de pé no balcão da venda, onde cuspia no chão e derramava um pouco de pinga para o santo, enquanto alisava minha cabeça e perguntava se eu ia querer ganhar bananada ou bolacha fofa.
     – Os dois – eu dizia, porque o pai estava feliz e porque era domingo.
     Ele sorria e autorizava a compra. Eu quebrava a bolacha fofa no meio e envolvia a bananada com as duas bandas, fazendo um sanduíche.
     Meu pai então passava a mão peluda pela minha cabeça, de um lado pro outro, e dizia duas, três vezes pro dono da venda, com a voz a cada vez mais pastosa:
     – Esse aqui é meu filho. Você conhece ele?
     Repetia a informação e a pergunta até o moço deixar ele falando sozinho no balcão e sumir pelo interior da venda, procurando o que fazer, só para escapar da falação do meu pai.
     Aí eu me lembrava do que fui fazer ali e dizia que a mãe estava chamando para almoçar. Ele perguntava se a mãe já retornara da casa do pai-de-santo. Eu dizia que sim, e começava a rezar em silêncio, pedindo a Deus que acalmasse o coração dos dois, não permitisse briga hoje, pelo menos hoje, um dia de domingo.
     Ficava triste quando minha mãe chamava o meu pai de traste, porque eu nem sabia direito o que essa palavra queria dizer, mas tinha certeza de que traste ele não era. Nunca tive coragem de reagir, apesar de já ter sentido muita vontade, porque tinha medo que a minha mãe me batesse e também porque ela falava essas coisas, geralmente, quando o pai não estava em casa. E se ele não ouvia, que mal havia?
     Mas agora, que está estiradinho e mais morto do que nunca, que com certeza não vai reagir para começar outra briga feia com a mãe, eu acho que posso falar baixinho no seu ouvido:
     – Olha, pai, fica calmo e sereno aí. Eu nunca achei que você fosse um traste. Nunca mesmo, pai. E preciso te dizer outra coisa: eu também não gosto de pai-de-santo.
(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)