sexta-feira, 4 de maio de 2018


Gertrud

Luís Pimentel

Conheci Gertrud numa casa de shows na Lapa carioca. A noite fervia, com muito samba no palco e gente animada, cantando e dançando no salão. Ela estava com amigos, em uma mesa ao lado da minha. Fui me aproximando e me apaixonando aos poucos. Primeiro pela maneira sensual com que a loura de olhos claros e cabelos escuros mordia os pasteizinhos de carne e grunhia (sempre achei que alemão fala grunhindo, desde os filmes de guerra a que assistia na infância):
Exprêêndidô!
A linda moça entornava chope com disposição típica dos povos germânicos e derramava corajosamente molho de pimenta no petisco, o que a deixava com as bochechas vermelhas e os olhinhos cheios d´água.
Esplêndida.
Depois me apaixonei pelo sotaque (me apaixono fácil por sotaques em vozes femininas, seja alemão, libanês, cearense), enquanto Gertrud acompanhava o som que vinha do pequeno palco e entoava, com delicada alegria:
“Vixto assim do arrto, mas parrece um ceô no chão... Em Mangueirra a poesia...”
Como resistir?
Os dias eram de véspera da Copa do Mundo de 2014, aquela mesma, a fatídica, mas a minha amada germânica não estava aqui por causa do futebol (não gostava nem um pouco do esporte, para o qual se dizia sem “tolerrância” nem “disposición”). Cursava uma espécie de pós-graduação numa universidade pública e fazia pequenos serviços de tradução, para se sustentar por aqui.
No primeiro encontro a dois, em minha casa, vivi a primeira pequena decepção: Gertrud não só não tinha o menor interesse por futebol, como o detestava. O torneio mundial corria solto e, fanático que sou desde menino pelo esporte bretão, assistia a todos os jogos pela tevê. Àquela altura do campeonato, ela já se esforçava para falar sem sotaque, o que demonstrava certa inclinação para me cativar. Essa disposição já facilitava um pouco as coisas.
Chegou-se com jeitinho brasileiro, até estranho para uma representante de povo tão duro, seco e objetivo:            
‒ Que jogo é esse, querido?
‒ México e Camarões!
‒ Vai ver inteiro?
‒ Pretendo, meu amor.
‒ Jura?! México e Camarões?!
‒ Você não entende de futebol, Gertrud. Isso é jogão. Senta aqui, vai! Assiste um pouquinho.
Silêncio… Minutos depois:
‒ Pronto. Já assisti.
‒ Gostou?
‒ Adorei.
‒ De que você gostou mais?
‒ Das pernas desse jogador camaronês.
Pausa. Depois ela disse:
‒ Vamos pra Lapa, beber cerveja e dançar?
‒ Alemão só pensa em beber cerveja e dançar, não é?
‒ Não. Pensa em namorar também.
‒ Ah, bom!
‒ Vamos namorar?
‒ Agora?
‒ Depois do jogo.
‒ Aí tem outro jogo.
‒ Ah, é? Qual?
‒ Espanha e Holanda.
‒ E você vai ver também?
‒ Claro!
‒ Mas você não é nem espanhol nem holandês...
‒ Não seja boba. Em Copa do Mundo todo jogo é importante.
‒ Então, vamos beber cerveja e dançar, depois de Espanha e Holanda?
‒ Sem chance. Tem Costa do Marfim e Japão.
‒ Não acredito!
‒ Não acredita em quê?
‒ Que você vai ver Costa do Marfim e Japão.
‒ Claro que eu vou! E vou torcer pros japoneses.
‒‒  Eu nem sabia que japonês jogava futebol.
‒Não jogavam. Mas se tornaram experts, depois que o Zico andou como treinador por lá.
‒ Quem é Zico?
‒ Nunca ouviu falar no Zico, o Galinho de Quintino?
‒ Não, de jeito nenhum.
– Meu Deus! Você não entende nada de Brasil nem de futebol brasileiro!
‒ Mas estou começando a entender de você. Não vai levantar mais desse sofá hoje, é isso?
‒ Nos intervalos dos jogos, para fazer xixi, claro!
‒ Não vai nem comer?
‒ Aquela salsicha com molho tártaro e mostarda preta deliciosa que uma moça gentil vai preparar para mim… Isso eu quero!
‒ Não faço comida para homem preguiçoso, detesto machismo!
‒ Foi só uma brincadeirinha, fräulein!
Ela não perdia uma deixa:
‒ Tá. Sairemos no fim de semana, então? Poderemos ouvir música e dançar samba no Trapiche Gamboa… Ou ir à roda de samba do Bip Bip, que dizem estar entre as melhores da cidade…
‒ É a melhor da cidade, do país e do mundo, Gertrud. Mas domingo é dia dos melhores jogos desta Copa. Lamento!
A disputa prosseguia nos gramados, com jogos cada vez mais duros. Dura, também, era a marcação de Gertrud, cada vez mais acirradas. A Seleção, com o seu ataque ,que comecei a chamar de ataque dos nervos, prosseguia nos gramados, em boa medida graças a algumas defesas adversárias. Chegamos às semifinais, e a insistência da moça não saía de campo:
‒ Já sei. Iremos na terça-feira. Terça é dia tranquilo, o Carioca da Gema fica quase vazio e perfeito para se beber, dançar e namorar.
‒ Terça-feira? Justo nesta terça-feira? Pirou de vez> Viajou na salada de batata com cerveja quente, foi? É dia de grande semifinal!
‒ Ah, é? E quem vai disputar essa semifinal?
‒ Ora, Brasil e Alemanha. Nossa seleção de ouro vai triturar os seus patrícios, menina, sem dó nem piedade!
Aí o sotaque voltou com tudo:
‒ Verremos! Verremos entón quem vai vencerrrrrr!
A terça-feira, dia 8 de julho de 2014, começou esquisita. Nublada e neurótica. A manhã se arrastou em meio a um pesaroso mormaço, e à tarde o time do Brasil entrou no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, meio descadeirado. A vértebra fraturada do Neymar pelo zagueiro colombiano, em partida válida pelas quartas de final, não só o tirou da partida como aleijou a coluna vertebral de toda a equipe canarinho. Os conterrâneos da doce Gertrud estavam salgados e dispostos a estragar a nossa feijoada comemorativa. Schweinsteiger, Khedira, Kroos, Özil e Müller se mostraram infernais. Miroslav Klose, que chegara na competição aos 16 gols e batera o recorde de Ronaldo, como maior artilheiro das Copas, era o capeta-maestro, dono do tridente, dos chifres e do rabo maior para surrar nossa defesa.
Gertrud me pediu, com antecedência, para levar à minha casa, para ver o jogo, “um grupinho de três ou quatro” alemães, amigos seus, que como ela também não tinham família nem conhecidos no Rio de Janeiro.
‒ Somos os desgarrados, ressaltou ela, dobrando todos os erres.
Não vi inconveniente em encher a minha sala de adversários e dividir a televisão com eles. Tudo em nome da solidariedade, da amizade, do espírito esportivo e, sobretudo, da deliciosa Gertrud.
Uma hora antes do jogo eles chegaram, trazendo cervejas, vodca, chucrute e salsicha para tira-gosto, pães, muitos pães, além das inacreditáveis bandeiras, camisas e bonés nas cores da seleção alemã. Considerei um abuso, é claro, mas fiz vista grossa, mais uma vez em nome da hospitalidade brasileira.
Antes do jogo começar eu já estava achando a torcida inimiga (logo, logo tornou-se inimiga) um pouco ruidosa para o meu gosto, o que me fez silenciar e passar pelo constrangimento de ser minoria dentro de minha própria casa. Claro que me arrependi por ter aceitado o pedido de Gertrud, quando me vi acossado por aquele bando de gringos. Mas pensei: deixa o jogo começar, o Brasil meter logo duas ou três bolas na caçapa, que eles baixam a crista.
Amarga ilusão.
O futebol, como se sabe, tem essa capacidade de fazer o torcedor não enxergar a realidade e, o que é pior, de fazer uma antidesportista convicta – como era o caso do meu amor alemão – se transformar em torcedora apaixonada. Foi o que aconteceu naquela tarde, para mexer com os meus nervos e mudar os nossos destinos.
Ah, os destinos!
Se ainda me recordo bem, o jogo começou às cinco da tarde. Dez minutos depois teve início o sofrimento que parecia não ter fim, com a primeira bola invadindo as redes do nosso trêmulo e desesperado goleiro. Só no primeiro tempo meteram logo mais quatro gols, um atrás do outro, aos vinte e dois, aos vinte e três, aos vinte e cinco e aos vinte e oito minutos do primeiro tempo. No segundo tempo enfiaram mais dois, antes de pisarem o pé no freio, como se a humilhação não já estivesse sacramentada.
No primeiro gol deles, os meus “convidados” vibraram discretamente, demonstrando algum respeito pelo anfitrião. À medida  que o massacre ia se desenhando, eles se soltavam, urrando expressões que eu desconhecia, mas que provavelmente eram de palavrões próprios dos estádios alemães, brindando, sorrindo, esmurrando a mesa e escalando meu sofá com suas patas aroamas Claro que à essa altura eu também não poderia mais manter qualquer elegância.
Senti uma profunda vontade de expulsar a vassouradas aquele esquadrão nazista, mas me contive; o amor acovarda a gente.
Só no final do jogo fizemos o nosso golzinho de honra.
Honra de Pirro, claro.
Quando o juiz apitou pela última vez e a lambança acabou no Estádio do Mineirão, a confusão começou em minha casa. Os alemães pareciam estar novamente invadindo territórios alheios em período de guerra, agitando bandeiras, tocando cornetas, subindo no sofá e gritando da janela.
Penso que a vodca e a cerveja quentes subiram à cabeça dos bárbaros que começaram a se sentir em território medieval.
Sempre ouvi dizer que o amor a tudo supera. Até aquele dia.
Orgulho próprio e sentimento de torcedor ofendido, entrei em campo. Expulsei a “alemoada” de minha casa, sem dó nem piedade, muito menos consideração ou nobreza de sentimentos.
Espírito esportivo é o cacete!
Saíram pelas ruas do Rio de Janeiro, comemorando a goleada brilhante como se estivessem em Berlim. Pedi a Gertrud que ficasse comigo, o desabafo não era extensivo a ela, mas a ingrata preferiu ser solidária com o bando de invasores. Sumiu de minha vida batendo portas, para nunca mais voltar.
Fechei a porta, abaixei a cabeça, peguei vassoura e panos de chão e me lancei ao trabalho de colocar minha casa em ordem. Desliguei imediatamente a tevê, claro, pois não havia qualquer interesse naqueles comentários.
Vez em quando ainda dou uns bordejos pelas imediações da Lapa, entrando e saindo de casas noturnas, na esperança de bater o olho naquela linda “alemoa”. Agora, que mais uma Copa do Mundo mexe com os meus sentimentos, volto a me instalar diante do aparelho, sozinho no mundo e no meu sofá preferido. A seleção brasileira está entrando em campo novamente, o coração de torcedor volta a bater forte e uma lembrança amarga, bem amarga, loura de olhos claros e cabelos escuros vem com ela e se instala em meu peito.
(Publicado na antologia de contos "Sete a um", editoras Cousa e Dália Negra, 2018)


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